terça-feira, 12 de junho de 2007

História da Igreja - Parte 9

Os mestres da igreja

No fim do século II, e no princípio do III, floresceu toda uma geração de notabilíssimos pensadores cristãos. Isto se deu em parte devido ao desafio das heresias que estavam surgindo e, em parte também, a que, graças à obra de Justino e outros como ele, ia-se tornando mais fácil construir pontes entre a fé cristã e a cultura da época.
Durante os primeiros anos de vida da igreja, o que os cristãos escreviam se dirigia, normalmente, a algum problema, ou questão específica e, portanto, fica difícil reconstruir a totalidade de seu pensamento.
Isto é certo, por exemplo, quanto às epístolas de Paulo. Por elas sabemos que Paulo era um escri¬tor e pensador de muita habilidade, e estudando-as podemos chegar a conhecer muito do pensamento paulino. Mas cada uma destas epístolas está escrita em circunstâncias concretas, e Paulo se dirige a essas circunstâncias.
Portanto, as epístolas de Paulo não nos dão um quadro completo de toda a teologia paulina.
Sabemos, por exemplo, o que Paulo pensava a respeito da ressurreição, porque na igreja de Corinto havia certas dúvidas a respeito, e o apóstolo tratou de responder a essas dúvidas. Mas com relação a muitas outras questões não nos é possível conhecer o pensamento de Paulo, simplesmente porque o apóstolo nunca teve ocasião de discuti-las em suas cartas.
O mesmo é certo com referência a todos os escritos cristãos do século I, e da primeira metade do II. As epístolas de Inácio nos oferecem preciosos panoramas de sua visão do martírio. Mas foram escritas durante um período de não mais de duas semanas, e portanto seria injusto esperar encontrar nelas toda uma exposição da fé cristã.
Mas durante a segunda metade do século II, diante dos desafios dos gnósticos e de Márciom, foi necessário que alguns cristãos tratassem sobre a totalidade da fé cristã. Com efeito, pode-se dizer que os gnósticos foram os primeiros teólogos que trataram de sistematizar toda a doutrina cristã.
Nesse intento de sistematização, usaram de subterfúgios para tratar da doutrina de tal modo que os demais cristãos a viram ameaçada e se dedicaram a refutar as especulações dos hereges.
Dado o vasto alcance dessas especulações, as obras que os cristãos escreveram contra elas tiveram que ter o mesmo alcance, e assim, surgiram os pri¬meiros escritos que nos dão uma idéia da totalidade da teologia cristã nos primeiros séculos. Estes escritos são as obras de Irineu de Leão, Clemente de Alexandria, Tertuliano de Cartago e Orígenes, também de Alexandria.
Irineu de Leão
Irineu era natural da Ásia Menor — provavelmente de Esmirna — onde nasceu por volta do ano de 130 e onde foi também discípulo do bispo Policarpo, acerca de cujo martírio falamos anteriormente.
Durante toda sua vida, Irineu foi um admirador de seu mestre Policarpo, e em seus escritos se refere repetidamente aos ensinos de um "ancião" - o presbítero — cujo nome não menciona, mas que parece ser Policarpo.
Em todo caso, por razões que desconhecemos, Irineu se transladou a Leão, no que hoje é a França. Ali chegou a ser presbítero da igreja, que o enviou a Roma com uma carta para o bispo daquela cidade. Irineu estava em Roma quando houve uma perseguição em Leão e Viena.
Nessa perseguição, o bispo Fotino entregou sua vida como mártir e, portanto, quando Irineu regressou a Leão ficou encarregado da direção espiritual da igreja, que o elegeu para que fosse seu bispo.
Irineu era antes de tudo um pastor. Seu interesse não es¬tava na especulação filosófica, nem em descobrir recônditos secretos, até então desconhecidos, mas em dirigir os seus paroquianos na sã doutrina e na vida correta.
Portanto, seus escritos não intentam elevar-se em altos vôos especulativos, mas pretendem simplesmente refutar os hereges e instruir os crentes.
Ainda que Irineu compusesse outros escritos, são duas as obras dele que se conservam: "A demonstração da fé apostólica" e "A refu¬ação da falsa gnosis", esta última melhor conhecida como "Contra as Heresias".
Na primeira destas obras, Irineu está tratando de instruir os seus paroquianos sobre alguns pontos da fé cristã. Na segunda refuta os gnósticos.
Em ambas, Irineu se limita a expor a fé que recebeu de seus mestres, sem tratar de adorná-la com especulações de sua própria lavra. Portanto, muito mais do que qualquer dos outros teólogos que estudaremos, Irineu nos mostra qual era a doutrina comum da igreja até os fins do século segundo.
Irineu é antes de mais nada pastor. Desse modo, ele mesmo concebe a Deus como um pastor. Deus é um ser amante que cria o mundo e a humanidade, não por necessidade, nem por erro — como pretendiam os gnósticos — mas por causa de seu próprio desejo de ter uma criação a qual amar e a qual dirigir, como o pastor dirige o seu rebanho ao redil.
À luz desta perspectiva, toda a história aparece como o processo mediante o qual o di¬vino pastor vai dirigindo sua criação em direção à consumação final.
A coroa da criação de Deus é a criatura humana. O ser humano foi criado desde o princípio como um ser livre e portanto responsável. Essa liberdade é tal, que mediante ela podemos nos conformar mais e mais à vontade e à natureza divina, e gozar de uma comunhão sempre crescente com nosso criador.
Mas, por outra parte, a criatura humana não foi criada desde um princípio em toda sua perfeição. Como pastor que é, Deus colocou o primeiro casal no paraíso, não em um estado de perfeição, mas "como meninos" (ou "como crianças").
Isso significa que Deus tinha o propósito de que o ser humano crescesse de tal modo em comunhão com ele que, com o tempo, che¬gasse a estar ainda acima dos anjos.
Os anjos são seres superiores a nós somente provisoriamente. Quando se cumprir na humanidade o propósito divino, os seres humanos estarão acima dos anjos, pois gozaremos de uma comunhão com Deus mais estreita que a deles.
A função dos anjos é semelhante à do tutor que dirige os primeiros passos de um príncipe. Ainda por um momento o tutor está acima do príncipe, mas com o tempo será subordinado a ele.
Deus criou então a humanidade "como crianças", para que fossem crescendo e se acostumando à comunhão com o Senhor. Além dos anjos, Deus contava com suas duas "mãos" — o Verbo e o Espírito Santo — para dirigir e instruir a humanidade.
Guiados por essas mãos, os seres humanos receberiam instrução e crescimento, preparando-se cada vez mais para uma comunhão mais e mais íntima com Deus.
Isto é o que Irineu chama de "divinização". O propósito último de Deus é fazer-nos cada vez mais semelhantes a ele. Isto não quer dizer que, de algum modo, nos dissolveremos na divindade, nem que chegaremos a ser iguais a Deus. Ao contrário, Deus se encontra tão acima de nós que por mais que cresçamos em nossa semelhança a Ele, sempre haverá caminho por andar.
Mas um dos anjos, Satanás, sentiu ciúmes do destino tão elevado que Deus reservava à criatura humana e, portanto, tentou e fez pecarem Adão e Eva.
Como resultado do pecado, a criatura humana foi expulsa do paraíso, e seu crescimento ficou torcido. Portanto, a história tal como se desenvolveu é resultado do pecado.
Mas, se bem que o conteúdo concreto da história da humanidade é resultado do pecado, o fato de que haja história não o é. Deus sempre teve o propósito de que houvesse história. O paraíso não era senão o ponto de partida nos propósitos de Deus para com a humanidade.
O mesmo se pode dizer com respeito à encarnação de Deus em Jesus Cristo. A encarnação não é o resultado do pecado humano. Ao contrário, desde o princípio Deus tinha o propósito de se unir à humanidade como o fez em Jesus Cristo.
De fato, o Verbo encarnado foi o modelo que Deus utilizou ao criar o ser humano segundo sua "imagem e semelhança". Adão e Eva foram criados para que, depois de um processo de crescimento e instrução, chegassem a ser como o Verbo que havia de encarnar. Por causa do pecado, o que sucedeu é que a encarnação tomou outro propósito, e veio a ser também remédio contra o pecado e meio para a derrota de Satanás.
Ainda antes da encarnação, e desde o momento do primeiro pecado, Deus esteve dirigindo a humanidade em direção a uma comunhão mais íntima com ele. Por isso é que Deus "maldiz" à serpente e à terra, enquanto que só "castiga" ao homem e à mulher. No momento das maldições, Deus continua levando a cabo seus propósitos redentores.
Nesses propósitos, o povo de Israel cumpre um papel importantíssimo, pois é na história do povo escolhido que as mãos do Senhor têm continuado a preparar a humanidade para a comunhão com Deus. Portanto, o Antigo Testamento não é a revelação de um Deus estranho à fé cristã, mas é a história de como Deus continuou os seus propósitos redentores mesmo depois do pecado de Adão e Eva.
Por fim, ao chegar o momento adequado, quando a humanidade tivesse recebido a preparação necessária, o Verbo se encarnou em Jesus Cristo. Jesus é o "segundo Adão" porque em sua vida, morte e ressurreição foi criada uma nova humanidade, e em todas suas ações, Jesus foi corrigindo o mal que fora feito no primeiro pecado.
Mas, além disso, Jesus derrotou o maligno, e nos fez possível viver uma nova liberdade. Quem está unido a ele, mediante o batismo, a fé e a comunhão, participa de sua vitória.
Jesus Cristo é literalmente a cabeça da igreja, que é seu corpo. O corpo se nutre mediante a adoração — particularmente a eucaristia — e de tal modo está unido à cabeça que já vai recebendo os benefícios da vitória de Cristo. Em sua ressurreição começou a ressurreição final, da qual todos os que formam parte de seu corpo são participantes.
Quando chegar a consumação final, e o Reino de Deus se estabelecer, isto não vai querer dizer que a tarefa de Deus como pastor terá terminado. Ao contrário, a humanidade redimida continuará crescendo em comunhão com Deus, e o processo de divinização continuará por toda a eternidade, levando-nos sempre para mais perto de Deus.
Em resumo, a teologia de Irineu consiste em uma grandiosa e ampla visão da história, de tal modo que os propósitos de Deus vão se cumprindo através dela.
Nessa história, o ponto central é a encarnação de Jesus Cristo, não simplesmente porque Ele tenha vindo corrigir a carreira torcida da humanidade, mas também e, sobretudo, porque desde o próprio momento da criação, Deus já projetava a encarnação como o ponto culminante de sua obra. O propósito de Deus é unir-se ao ser humano, e isto ocorreu em Jesus Cristo de um modo inigualável.
Clemente de Alexandria
Muito diferentes são os interesses e a teologia de Clemente de Alexandria. Ao que parece, Clemente era natural de Atenas, a cidade que durante séculos havia sido famosa por seus filósofos.
Seus pais eram pagãos; mas o jovem Clemente se con¬verteu de algum modo que desconhecemos, e se lançou então em busca de quem pudesse ensiná-lo mais sobre o cristianismo.
Depois de viajar por uma boa parte do Mediterrâneo, encontrou em Alexandria um mestre que o satisfez. Este mestre era Panteno, de quem é pouco o que sabemos. Mas, em todo caso, Clemente permaneceu em Alexandria, e sucedeu a Panteno.
No ano 202, por causa da perseguição de Sétimo Severo, Clemente viu-se obrigado a abandonar Alexandria, e andou por várias regiões do Mediterrâneo oriental — parti-cularmente Síria e Ásia Menor — até sua morte, que teve lugar por volta do ano 215.
Alexandria, cidade onde Clemente recebeu sua formação teológica e onde primeiro exerceu seu magistério, era o centro em que se encontravam todas as diversas doutrinas que circulavam nessa época, e era também, portanto, o centro da febre sincretista que se alastrava.
Sobre isso temos um testemunho interessantíssimo em que o imperador Adriano escreve a seu cunhado, o cônsul Serviano, a respeito do Egito, cuja capital era Alexandria:
Queridíssimo Serviano, o Egito que tanto elogiavas parece-me ser leviano, vacilante e borboleteador entre os rumores de cada momento. Os que adoram a Serápis são cristãos. E os que se dão o título de bispos de Cristo são devotos de Serápis. Não há chefe da sinagoga dos judeus, nem samaritano, nem presbítero cristão, que não seja também numerólogo, adivinho e saltimbanco. (...) São gente altamente sediciosa, vã e injuriosa, e sua cidade é rica, opulenta, fecunda. Nela ninguém está ocioso. Uns sopram vidro, e outro fabricam papel, e todos parecem ser tecedores de linho ou têm algum ofício. Têm trabalho os reumáticos, os mutilados, os cegos, e até os inválidos. O único Deus de todos eles é o dinheiro, a quem adoram os cristãos, os judeus e toda classe de pessoas.
Pelo resto da carta de Adriano, sabemos que ele estava irado com os alexandrinos, e por isso tudo o que havia visto naquela cidade parecia-lhe mal.
Até o fato de que todos estivessem ocupados dava-lhe ocasião para criticar a vida dos alexandrinos. Mas ainda descontando a má vontade do imperador, esta carta nos dá a impressão de uma cidade rica, com grande atividade comercial e intelectual, em que entretanto se entremesclavam e confundiam toda sorte de doutrinas.
Por outro lado, Adriano não menciona as verdadeiras glórias de Alexandria. Além do seu farol, que era uma das sete maravilhas da antiguidade, Alexandria contava com sua famo¬síssima biblioteca e com seu Museu, ou templo das musas, isto é, algo assim como uma universidade.
Ali se encontravam os mais importantes pensadores do momento e, portanto, Alexandria era conhecida em todo o Império como o centro da vida intelectual do Mediterrâneo.
Foi nessa cidade que Clemente encontrou Panteno, e formou sua teologia. Portanto, não é de se estranhar que o seu próprio pensamento mostre notáveis afinidades ao pensamento filosófico de sua época.
Além disso, Clemente não foi pastor como Irineu, mas sim mestre, e mestre de intelectuais. Assim, o que ele busca não é tanto expor a fé tradicional da igreja, nem guiar todo o rebanho de tal modo que evite cair nas redes das heresias, mas, antes, procura ajudar os que buscam as verdades mais profundas e convencer os intelectuais pagãos de que o cristianismo não é, depois de tudo, a religião absurda que pretendem seus inimigos.
Em sua "Exortação aos pagãos", Clemente dá mostras de seu método teológico ao apelar a Platão e outros filósofos. "Busco conhecer a Deus e não só as obras de Deus. Quem me ajudará em minha busca? (...) Como então, oh Platão, há de se buscar a Deus?"
O propósito de Clemente, nesta passagem, é mostrar aos seus feitores pagãos que boa parte das doutrinas cristãs encontra apoio nos ensinos de Platão. Desse modo os pagãos poderão se aproximar do critianismo sem crer que se trata, como diziam muitos, de uma religião de pessoas igno¬rantes e supersticiosas.
Mas a razão pela qual Clemente apela a Platão não é somente a conveniência do argumento. Clemente está convencido de que a verdade é uma só e de que, portanto, qualquer verdade que Platão tenha conhecido não pode ser diferente da verdade que se revelou em Jesus Cristo e nas Escrituras.
Segundo ele, a filosofia foi dada aos gregos da mesma forma que a Lei foi dada aos judeus. E tanto a filosofia como a Lei têm o propósito de levar à verdade última, que nos foi revelada em Jesus Cristo.
Os filósofos são para os gregos o que os profetas foram para os judeus. Com os judeus, Deus estabeleceu o pacto da Lei; e com os gregos, o da filosofia.
Como então haveremos de coordenar o que nos dizem os filósofos com o que nos dizem as Escrituras? À simples vista, parece haver uma distância enorme entre ambos. Mas, segundo Clemente, um estudo cuidadoso das Escrituras nos levará às mesmas verdades que os filósofos ensinaram.
Isto se deve a que todas as Escrituras estão escritas em alegorias ou, como diz Clemente, em parábolas. O texto sagrado tem sempre mais de um sentido. O sentido literal não deve ser desprezado. Mas quem fica ali é como o menino que se contenta em beber leite e nunca chega a ser adulto.
Além do sentido literal, encontram-se outros sentidos que o verdadeiro sábio descobrirá. A relação entre a fé e a razão é muito estreita, pois uma não pode funcionar sem a outra. A razão sempre constrói seus argumentos sobre a base de certos princípios que ela mesma não pode demonstrar, mas que aceita pela fé.
Para o sábio, a fé há de ser, então, o primeiro princípio, o ponto de partida, sobre o qual a razão há de construir seu edifício. Mas o cristão que permanece na fé, semelhantemente ao que não vai além do sentido literal das Escrituras, é como um menino de leite, que não pode crescer por falta de alimento sólido.
Diante de tais pessoas, que se contentam com os rudimentos da fé, se encontra o sábio ou, como diz Clemente, o "verdadeiro gnóstico". O sábio vai mais além do sentido literal das Escrituras e dos rudimentos da fé.
O próprio Clemente concebe, então, sua própria tarefa, não como a do pastor que guia o rebanho, mas como a do "verdadeiro gnóstico" que dirige outros de inclinações semelhantes.
Naturalmente, isto tende a produzir uma teologia do tipo elitista, e Clemente tem sido criti-cado, frequentemente, por essa tendência em seu pensamento.
Quanto ao conteúdo da teologia de Clemente, diremos pouco. Ainda que ele pense estar simplesmente interpretando as Escrituras, sua exegese alegórica torna possível encontrar na Bíblia ideias e doutrinas que vêm antes da tradição platónica.
Deus é o Um Inefável, acerca do qual é impossível dizer qualquer coisa em sentido correto. Tudo o que podemos dizer de Deus consiste em negar-lhe todo limite. O mais é linguagem metafórica, que nos é útil porque não temos outra, mas que, entretanto, não descreve verdadeiramente Deus.
Este Ser Inefável dá-se a conhecer no Verbo, que revelou aos filósofos e aos profetas toda a verdade que souberam, e que ultimamente se encarnou em Jesus Cristo.
Em tudo isto. Clemente segue a Justino e, em certa medida, ao filósofo judeu alexandrino Filo, a quem já nos referimos anteriormente. Mas sua ênfase na encarnação do Verbo faz que sua teologia seja cristocêntrica.
Por outro lado, a importância de Clemente não está no que ele tenha dito sobre tal ou qual doutrina, mas no modo em que seu pensamento é característico de todo um ambiente e tradição que se forjaram na cidade de Alexandria, e que seria de grande importância para o curso posterior da teologia.
Mais adiante, ao tratarmos sobre Orígenes, vere¬mos o conteúdo desta teologia em toda sua maturidade e, por¬tanto, não é necessário que nos detenhamos aqui para expô-lo. Basta-nos dizer que se trata de um tipo de teologia cuja preocupação fundamental consiste em construir pontes entre a fé cris¬tã e a cultura que a rodeia.
É uma teologia construída mais para as pessoas cultas do que para as massas.
Tertuliano de Cartago
Todo o contrário sucede no caso de Tertuliano. Ao que parece, Tertuliano nasceu na cidade africana de Cartago por volta do ano 150, mas foi em Roma, quando contava uns qua¬renta anos, que se converteu ao cristianismo.
Algum tempo depois, regressou à sua cidade natal, onde se dedicou a escrever em defesa da fé contra os pagãos, e em defesa da ortodoxia contra os hereges.
Já que, ao que parece, era advogado — ou ao menos havia sido adestrado na ciência retórica, e nos procedimentos que usavam os advogados — toda sua obra leva o selo de uma mente legal.
Anteriormente, citamos seu comen¬tário sobre a "sentença injusta" de Trajano. Ao lermos aquelas linhas, vem-nos à mente a imagem de um advogado que apela a um tribunal superior contra a sentença injusta de um tribunal inferior.
Em outro tratado, escrito também contra os pagãos, e que leva o título de "O testemunho da alma", Tertuliano coloca a alma pagã no banco das testemunhas e, depois de interrogá-la no estilo de um advogado em um tribunal, chega à conclu¬são de que até uma alma pagã é "por natureza cristã" e que, se persiste em rejeitar o cristianismo, isto se dá por obstinação e cegueira.
Entretanto, a obra em que deveras pode-se ver o espírito legal de Tertuliano é sua "Prescrição contra os hereges". Na linguagem legal da época, o termo "prescrição" tinha pelo me¬nos dois sentidos.
Em primeiro lugar, uma "prescrição" era um argumento legal que se apresentava antes do caso mesmo, para demonstrar que o julgamento não devia existir.
Se, ainda antes de começar a debater o que se pleiteava, uma das partes podia provar que a outra não tinha direito de apresentar demanda, ou que a demanda não estava correta, ou que o tribunal não tinha jurisdição, cancelava-se o julgamento.
O outro sentido da palavra "prescrição" aparecia em geral na frase "prescrição de longo tempo". O que isto queria dizer era que, se alguém havia estado de posse de uma propriedade, ou de urn direito por certo tempo, e ninguém o havia disputado, essa pessoa ficava de posse legal da propriedade, ou do direito em questão, ainda que aparecesse depois quem o reclamasse.
Tertuliano utiliza o termo em ambos os sentidos, como se tratasse de um pleito entre a igreja ortodoxa e os hereges. Seu propósito é demonstrar, não simplesmente que os hereges não tem razão, ou que estão equivocados, mas, ainda mais, que nem sequer têm direito a entrar em discussão com os ortodoxos.
Com efeito, as Escrituras são propriedade da igreja. Durante várias gerações, a igreja as utilizou sem que ninguém as disputasse. Ainda quando não fossem originalmente sua propriedade, já de fato o são. Portanto, os hereges não têm direito algum ao utilizá-las.
Os hereges chegaram de última hora e pretendem mudar o que, por sua origem e por prescrição de longo tempo, per¬tence à igreja.
Que as Escrituras são propriedade da igreja, pode-se demons¬trar facilmente, bastando para isso olhar as igrejas apostólicas, onde essas Escrituras foram lidas e interpretadas de igual modo desde os tempos dos apóstolos.
Roma, por exemplo, pode mostrar uma linha ininterrupta de bispos que se remontam até os apóstolos Pedro e Paulo. E o mesmo se pode dizer de Antioquia e de várias outras igrejas.
Todas essas igrejas apostólicas concordam no uso e interpretação das Escrituras, segundo vieram fazendo desde os seus primórdios. Ademais, por suas próprias origens, os escritos dos apóstolos são propriedades dessas igrejas, pois foi a elas que os apóstolos os legaram.
Tudo isto quer dizer que, se as Escrituras são propriedade da igreja, os hereges não têm direito de discutir com os orto¬doxos sobre a base das Escrituras.
Aqui aparece a "prescrição" no outro sentido. Se os hereges não têm direito a interpretar as Escrituras, toda discussão com eles acerca dessa interpretação é desnecessária. A igreja, dona das Escrituras, é a única que tem o direito de utilizá-las e empregá-las.
Este argumento contra os hereges, utilizado pela primeira vez por Tertuliano, foi empregado, repetidamente, em ocasiões posteriores contra toda classe de dissidentes.
Por certo, foi um dos principais argumentos utilizados pelos católicos contra os protestantes a partir do século XVI. No caso de Tertuliano, entretanto, devemos notar que a razão última pela qual a igreja tem direito às Escrituras é que pode mostrar uma uniformidade, não só de sucessão formal, mas também de doutrina, através de todas as gerações a partir dos apóstolos.
Isto era precisamente o que se discutia no século XVI, pois os protestantes diziam que a igreja católica se havia desviado de sua própria doutrina inicial.
Mas o espírito legalista vai muito mais além destes argumentos. Com efeito, Tertuliano pensa que a promessa bíblica, no sentido de que quem busca há de achar, quer dizer que, uma vez que alguém encontrou a fé cristã, toda busca deve cessar. Para o cristão, então, toda busca é uma falta de fé.
Buscarás até que encontres, e uma vez que o hajas encontrado, hás de crer. A partir de então, tudo o que tens de fazer é guardar o que tens crido. E ademais crerás que nada mais há que tenha de ser crido, nem nada mais tenha de se buscar. (Prescrição, 9).
Isto quer dizer que basta a "regra de fé" da igreja e que toda outra busca é perigosa. Naturalmente, Tertuliano permite que os cristãos tratem de aprender mais sobre essa regra de fé.
Mas tudo o que sai dela, ou que venha de outras fontes, deve ser rejeitado. Isto é particularmente certo na filosofia pagã, ante a qual Tertuliano toma uma posição radicalmente oposta à de Clemente.
Anteriormente, citamos suas palavras contrastando Atenas com Jerusalém. A mesma ati-tude prevalece em sua opinião sobre a dialética, isto é, sobre o método da filosofia.

Miserável Aristóteles, que lhes deu a dialética! Deu-lhes a arte de construir para derribar, uma arte de sentenças escorregadias e de argumentos crus, (...) que serve para rejeitar tudo, e que, no final das contas, não trata de nada (Prescrição, 7).
Em resumo, Tertuliano opõe-se a toda especulação. Falar, por exemplo, do que Deus pode fazer baseando-se em sua onipotência, é perder tempo e arriscar-se a cair em erro.
O que devemos nos perguntar não é o que Deus pode fazer, mas sim, o que de fato Deus já fez. Isto é o que ensina a igreja. Isto é o que se encontra nas Escrituras. O mais é curiosidade ociosa e por demais perigosa.
Mas isto não implica que Tertuliano não seja capaz de utilizar argumentos lógicos contra seus adversários. Ao contrário, a lógica de Tertuliano é frequentemente esmagadora, como vimos no caso da "Prescrição".
Mas o vigor de seus argumentos se encontra, mais que em sua lógica, em sua habilidade retó¬rica, que chega até ao sarcasmo. A Márciom, por exemplo, Tertuliano diz que o Deus da igreja criou todo este mundo com suas maravilhas, e então desafia o seu contendor a mostrar-lhe um insignificante vegetal feito por Deus.
E logo lhe pergunta sarcasticamente em que se ocupava seu deus antes de se revelar há uns poucos anos atrás. Será que não amava a humanidade até a última hora?
Deste modo, mediante uma inigualável combinação de ironia mordaz com uma lógica inflexível, Tertuliano se converteu na chibata aos hereges e campeão da ortodoxia.
Entretanto, por volta do ano 207, aquele rude inimigo dos hereges, aquele tenaz defensor da autoridade da igreja, uniu-se ao movimento montanista, que o resto dos cristãos considerava herético.
Esse passo dado por Tertuliano é um dos misté¬rios insolúveis da história da igreja, pois seus próprios escritos e os demais documentos da época nos dizem pouco sobre as suas motivações.
Portanto, é impossível dizer, com segurança, por que Tertuliano se fez montanista. Mas podemos, mediante o estudo do montanismo e do caráter de Tertuliano, ver algo da afinidade que existia entre ambos.
O montanismo recebe esse nome do seu fundador, Montano, que havia sido sacerdote pagão até a sua conversão por volta do ano 155. Algum tempo depois, Montano começou a profetizar, dizendo que havia sido possuído pelo Espírito Santo.
Logo se uniram duas mulheres, Priscila e Maximila. Isto em si não era novo, pois nessa época ainda continuava a prática de permitir a quem recebesse esse dom que profetizasse nas igrejas.
E um costume corrente, desde o princípio, era assegurar-se de que o que tais profetas diziam concordava com a doutrina cristã. No caso de Montano e seus seguidores, logo as autoridades eclesiásticas começaram a ter dúvidas, pois os montanistas diziam que com eles havia começado uma nova era.
Do mesmo modo que em Jesus Cristo se havia iniciado uma nova idade, agora estava sucedendo o mesmo com a dádiva do Espírito Santo aos montanistas.
Essa nova idade se caracterizava por uma vida moral mais rigorosa, do mesmo modo que o Sermão da Montanha tinha ensinado uma doutrina mais rigorosa que a do Antigo Testamento.
A razão pela qual o resto da igreja se opôs à pregação dos montanistas não foi sua ênfase nas profecias, mas a sua pretensão de que agora começava uma nova era, o fim da história.
De acordo com o Novo Testamento, os últimos tempos começaram com a advento e a ressurreição de Jesus Cristo, e com a dádiva do Espírito Santo.
Com o correr dos anos, isto foi sendo esquecido, até ao ponto que a nós, hoje, torna-se difícil concebê-lo assim. Mas no século II a igreja seguia afirmando que o fim havia começado em Jesus Cristo.
Portanto, afirmar, como o faziam os montanistas, que o fim havia começado agora, com a dádiva do Espírito a Montano e aos seus, era diminuir a importância dos acontecimentos do Novo Testamento e pretender que o evangelho não era senão uma etapa a mais na história da salvação. Tais doutrinas a igreja não podia aceitar.
Tertuliano, entretanto, parece haver sentido atração pelo rigorismo dos montanistas. Sua mente legalista exigia uma ordem perfeita, em que tudo se fizesse como era devido.
Na igreja, apesar de todos seus esforços para cumprir a vontade de Deus, haviam demasiadas imperfeições que não se enquadravam com o legalismo de Tertuliano.
O único modo de explicar essas imperfeições, e de sobrepor-se a elas, consistia em crer que a igreja era só uma etapa intermediária, e que, agora, havia começado uma nova era do Espírito, em que todas essas imperfeições ficavam para trás.
Naturalmente, tais esperanças foram frustradas, e o fato é que, até o fim de seus dias, Tertuliano parece haver fundado a seita dos "tertulianistas", provavelmente um grupo de pessoas que cria que até os montanistas se haviam tornado demasiadamente flexíveis.
Em todo caso, o fenômeno que vemos em Tertuliano aparece repetidamente na história da igreja em dois sentidos: Primeiro, uma ou outra vez, vemos o conflito entre pessoas que insistem que a igreja deve ser uma comunidade absolutamente pura, e outras que respondem que há de ser antes de tudo uma comunidade de amor, em que todos encontrem aceitação.
Segundo, repetidamente, vemos que existe uma relação paradoxal entre a busca da "liberdade" do Espí¬rito e a insistência no rigor da lei. Tertuliano é exemplo característico de tudo isto.
Mesmo depois de fazer-se montanista, Tertuliano não deixou de atacar aqueles que, a seu parecer, torciam a fé cris¬tã. Várias de suas obras do período montanista foram de grande importância no desenvolvimento posterior da teologia. E nenhu¬ma o foi tanto como seu tratado "Contra Práxeas".
O que sabemos acerca da pessoa de Práxeas é pouco ou nada. Alguns eruditos pensam que nunca houve tal pessoa, e que "Práxeas" é simplesmente o bispo de Roma, Calixto, a quem, por alguma razão, Tertuliano evita chamar pelo nome.
Em todo caso, torna-se claro que o tal Práxeas havia chegado a ter certo poder na igreja de Roma, e que ali havia utilizado esse poder para se opor ao montanismo e para propor a sua própria interpretação acerca das relações entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Segundo Práxeas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram três modos em que Deus se manifestava, de maneira que Deus às vezes era Pai, outras Filho e outras Espírito. Esta é a doutrina que recebe o nome de "Patripassionismo". Segundo esta doutrina o Pai sofreu a paixão, pois o Filho é o Pai.
Tertuliano começa seu tratado "Contra Práxeas" com sua mordacidade característica:
Práxeas serviu ao diabo em Roma de dois modos: expulsando a profecia e introduzindo a heresia, expul¬sando o Espírito e crucificando o Pai ("Contra Práxeas", 1).
Mas logo Tertuliano deixa este tom para propor sua própria fórmula a respeito do modo em que se deve entender a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Essa fórmula é que há em Deus "uma substância e três pessoas". A importância disso é enorme, pois Tertuliano foi a primeira pessoa a referir-se à Trindade mediante o uso desta fórmula, que depois chegaria a ser aceita de um modo geral.
Isto não quer dizer, naturalmente, que Tertuliano "inventou" a doutrina da Trindade, mas sim, que ele foi a pessoa que criou o vocabulário que, com o correr do tempo, se tornou comum.
De igual modo, e também em resposta a outras opiniões de Práxeas, Tertuliano disse que há em Cristo "uma pessoa" e "duas substâncias ou naturezas": a divina e a humana.
Também esta fórmula, utilizada pela primeira vez por Tertuliano, veio a ser a fórmula geralmente aceita para expressar a relação entre a divindade e a humanidade em Jesus Cristo.
Por todas estas razões, Tertuliano é um personagem único na história da igreja. Ardente defensor da ortodoxia diante de toda classe de heresias, terminou por se unir a um dos movimentos que o resto da igreja considerava herético.
E, ainda de¬pois de herege, continuou produzindo obras e fórmulas teológicas que seriam de grande importância no curso futuro da igreja. Além disso, foi ele o primeiro teólogo cristão que escreveu em língua latina, que era a língua comum na metade ocidental do Império e, portanto, seu pensamento influiu notavelmente sobre toda a teologia ocidental.
Orígenes de Alexandria
O mais importante discípulo de Clemente de Alexandria, e o último dos quatro grandes mestres da igreja que discutiremos agora, é Orígenes.
Diferentemente de seu mestre Clemente, Orígenes era filho de pais cristãos. Durante a perse¬guição de Sétimo Severo — a mesma que obrigou Clemente a abandonar Alexandria — o pai de Orígenes foi feito prisioneiro e sofreu o martírio.
Orígenes, que na época era ainda um jovenzinho, quis se unir a seu pai no cárcere para sofrer o martírio junto com ele. Mas sua mãe escondeu suas roupas, e Orígenes viu-se obrigado a permanecer em casa, onde dedicou a seu pai um tratado em que o exortava a ser fiel até a morte.
Pouco tempo depois destes acontecimentos, Demétrio, o bispo de Alexandria, pôs sobre os ombros de Orígenes, que apenas contava com dezoito anos de idade, a tarefa de preparar os candidatos ao batismo: os "catecúmenos".
Esta era uma grande responsabilidade, e o jovem Orígenes, que sem dúvida alguma era um gênio excepcional, chegou a ser famoso como mestre da fé cristã.
Depois de alguns anos de ensino aos catecúmenos, Orígenes viu a necessidade de se dedicar a discí¬pulos mais adiantados, pois muitas pessoas cultas vinham pedir sua instrução.
Então deixou o ensino aos catecúmenos nas mãos de alguns de seus discípulos, e dedicou-se por inteiro ao trabalho docente em uma escola cristã organizada no estilo que os grandes filósofos pagãos haviam tido anteriormente.
Ali vinham escutá-lo, não só cristãos de diversas partes do Império, mas também pagãos como a mãe do imperador e o governador da Arábia.
Por diversas razões, entre as quais não faltaram ciúmes, houve conflitos entre Orígenes e o bispo de Alexandria. O resultado desses conflitos foi que Orígenes viu-se obrigado a abandonar Alexandria e ir viver em Cesaréia, onde continuou se dedicando ao estudo e ao ensino por vinte anos mais.
Por fim, no tempo da perseguição de Décio, Orígenes teve ocasião de mostrar a firmeza de sua fé. Dado o caráter dessa perseguição, Orígenes não foi morto, mas torturado até o ponto em que, posto em liberdade, morreu em pouco tempo.
Morreu na cidade de Tiro quando tinha uns setenta anos de idade. A obra literária de Orígenes foi imensa. Uma vez que seus conhecimentos bíblicos eram enormes e estava consciente de que o texto das Escrituras continham ligeiras variantes, compôs a "Hexapla".
Esta era uma coleção, em seis colunas, do Antigo Testamento em diversas formas: o texto hebraico, uma transliteração em letras gregas desse mesmo texto — de modo que o leitor que desconhecia o hebraico, pudesse conhecer o som do hebraico, sobre a base do grego — e quatro versões distintas do grego.
Ademais, dedicou-se a comparar os diversos textos do Antigo Testamento, e produziu toda uma série de símbolos para designar variantes, omissões e adendos.
Além disso, Orí¬genes compôs comentários e sermões sobre boa parte do texto bíblico. E a isto devem ser acrescentados sua apologia "Contra Celso", que já citamos, e sua grande obra sistemática, "Dos primeiros princípios", mais conhecida como "De principiis".
O modo pelo qual Orígenes pôde escrever tantas obras dá-nos a idéia do seu gênio, pois boa parte de sua produção literária foi ditada diretamente ao discípulo ou ao escriba. E até conta-se que, em algumas ocasiões, ele chegou a ditar obras diferentes a sete amanuenses simultaneamente.
A teologia de Orígenes segue um espírito muito parecido ao de seu mestre Clemente. Trata-se de uma tentativa de relacionar a fé cristã com a filosofia que estava em voga em Alexandria nessa época.
Essa filosofia era o que os historiadores chamam "o neoplatonismo". Mas Orígenes está muito mais consciente que Clemente da necessidade de assegurar-se que esse interesse filosófico não o leve a negar alguma das doutrinas fundamentais do cristianismo.
De acordo com ele, "nada que difira da tradição dos apóstolos e da igreja deve ser aceito como verdadeiro" (De Principiis, prefácio, 2).
Essa tradição inclui, antes de tudo, a doutrina segundo a qual há um só Deus, criador e ordenador do universo e, portanto, as especulações gnósticas que pretendem que outro criou este mundo devem ser rejeita¬das.
Em segundo lugar, a doutrina apostólica nos ensina que Jesus Cristo é o Filho de Deus, nascido antes que todas as cria¬turas, e que se encarnou de tal modo, que, ao mesmo tempo que se fez homem, continuou sendo Deus.
Sobre o Espírito Santo, segundo Orígenes, a tradição apostólica não está de todo clara, exceto no sentido de que sua glória é a mesma do Pai e do Filho.
Por último, essa tradição afirma que a alma vai rece¬ber recompensa, ou castigo, segundo sua vida neste mundo e que, no final, haverá uma ressurreição do corpo, que se levantará incorruptível.
Uma vez afirmado isto, entretanto, Orígenes se sente livre para alçar-se em altos vôos especulativos. Por exemplo, desde que a tradição dos apóstolos e da igreja não nos dá detalhes acerca do modo como o mundo foi criado, Orígenes lança-se a investigar esta questão.
Nos primeiros capítulos de Génesis, há duas histórias da criação, fato este que conheciam os sábios judeus mesmo antes dos tempos de Orígenes, o que o deve ficar claro a quem quer que leia esses capítulos com atenção.
Em uma dessas histórias, a primeira, conta-se que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, e que "homem e mulher os criou".
Na segunda, conta-se que Deus fez primeiro Adão, de cuja costela formou depois Eva, Na primeira história, o verbo grego que se utiliza para a ação de Deus corresponde ao nosso verbo "criar", enquanto que o que aparece na segunda corresponde ao nosso "plasmar". Como explicar estas diversidades?
Naturalmente, Orígenes não pode recorrer, como o fazem os eruditos modernos, à explicação de acordo com a qual o que temos aqui é a conjunção de duas tradições distintas. Segundo ele, se há duas histórias da criação, isto se deve a que houve duas criações.
A primeira criação, segundo Orígenes, foi puramente espiritual. Os seres que Deus fez eram espíritos carentes do corpo. É por isso que o texto diz que eram "varão e fêmea", isto é, sem distinções sexuais. Também é por isso que se utiliza o verbo "criar" antes que "plasmar".
O propósito de Deus era que os espíritos que havia criado se dedicassem à sua contemplação. Mas alguns deles se apartaram da vista do Criador, e por isso caíram.
Foi então que Deus produziu a segunda criação. Esta criação é material, e foi posta como refúgio, ou lar provisório, para os espíritos caídos.
Desses espíritos, os que caíram mais baixo se tornaram demônios, e os demais se tornaram seres humanos. Foi para estes seres humanos que Deus criou os corpos que agora possuímos, dos quais se diz que os "plasmou" do pó da terra, e que uns são varões e outros fêmeas.
Naturalmente, isto quer dizer que todos os seres humanos existiam antes de nascer neste mundo, e que a razão pela qual estamos aqui é que pecamos nessa existência anterior e puramente espiritual.
É interessante notar que, embora Orígenes creia derivar suas ideias do texto bíblico, na realidade elas derivam de Platão, que havia ensinado que as almas se acham nesse mundo porque caíram do mundo superior das ideias puras.
Neste mundo, o diabo e seus demónios nos têm submetidos, e Jesus Cristo veio, portanto, para destruir o poder do diabo e para nos mostrar o caminho que devemos seguir em nosso regresso ao mundo espiritual.
Mas, segundo Orígenes, desde que afinal de contas o diabo é também um espírito como o nosso, e desde que Deus é amor, ao final, até o diabo se salvará, e toda a criação regressará ao seu estado inicial, quando tudo era espírito.
Entretanto, os espíritos seguirão sendo livres e, portanto, nada impede que haja uma nova queda, um novo mundo material e uma nova história e que, portanto, o ciclo de queda-restauração-queda continua para sempre.
Ao tratar de julgar tudo isto, o primeiro que temos de fazer é render tributo à amplitude de horizontes que Orígenes trata de englobar. Isto é o que tem ganho admiradores nas diversas gerações.
Além disso, devemos recordar que Orígenes propõe tudo isto, não como a verdade que tem de ser aceita por todos, nem como algo que será substituto, ou superará as doutrinas da igreja, mas como suas próprias especulações, que nunca deverão ter a mesma autoridade da tradição apostólica.
Mas, uma vez dito isto, é necessário assinalar que em muitos pontos Orígenes parece ser mais platônico do que cristão. Assim, por exemplo, Orígenes nega a doutrina dos gnósticos e de Márciom segundo a qual este mundo teria sido criado por um ser inferior.
Mas, no final das contas, chega à conclusão de que a existência do mundo material é o resultado do pecado, e que os propósitos iniciais de Deus não incluíam a existência deste mundo, nem da história.
Nisto, Orígenes contrasta com Irineu, para quem a história era parte fundamental do plano de Deus. E no que se refere à preexistência das almas e o ciclo eterno da quedas e restaurações, não há dúvidas de que Orígenes se aparta do que foi sempre a doutrina da igreja.
Conclusão geral
Vimos três tendências teológicas distintas. Irineu é o defensor da doutrina tradicional da igreja, o pastor que se preocupa em que prevaleça a sã doutrina na sua igreja.
Tertuliano é também defensor da doutrina tradicional, mas seu próprio legal ismo nessa defesa o leva com o tempo a romper com a mesma igreja que pretendia defender.
Clemente e Orígenes são mais pensadores do que pastores e, ainda que se ocupem de defender a fé diante dos pagãos, sua verdadeira preocupação está em descobrir os segredos mais elevados de Deus e de sua criação.
Das três correntes teológicas, é provavelmente Irineu quem mais se aproxima do espírito original do evangelho. Infelizmente, com o correr dos séculos a teologia de Irineu ficou relativamente esquecida, enquanto que o influxo dos outros dois tipos de teologia se fez sentir cada vez mais.

Um comentário:

Anônimo disse...

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