sexta-feira, 29 de junho de 2007

História da Igreja - 20

A Era dos Reformadores
Parte 7
JOÃO CALVINO
Sem dúvida, o mais importante sistematizador da teologia protestante no século XVI foi João Calvino. Enquanto Lutero foi o espírito fogoso e propulsor do novo movimento, Calvino foi o pensador cuidadoso que forjou, das diversas doutrinas protestantes, um todo coerente. Além disso, para Lutero sua busca tormentosa da salvação e sua descoberta da justificação pela fé foram tais que sempre dominaram toda sua teologia. Calvino, como homem da segunda geração, não permitiu que a doutrina da justificação eclipsasse o restante da teologia cristã e, por isso, deu maior atenção a aspectos do cristianismo que foram postergados por Lutero: em particular, a doutrina da santificação.

A formação de Calvino
Calvino nasceu na pequena cidade de Noyon, na França, em 10 de julho de 1509, quando Lutero já havia ditado suas primeiras conferências na universidade de Wittenberg. Seu pai pertencia à classe média da cidade e trabalhava, principalmente, como secretário do bispo e procurador da biblioteca da catedral. Fazendo uso de tais conexões, procurou para seu filho João os benefícios eclesiásticos com os quais custeasse seus estudos.
Com esses recursos, o jovem Calvino foi estudar em Paris, onde conheceu tanto o humanismo como a reação conservadora que se lhe opunha. A discussão teológica que tinha lugar nos seus dias levou-o a conhecer as doutrinas de Wyclif, Huss e Lutero. Porém, segundo ele mesmo disse: "estava obstinadamente atado às superstições do papado". Em 1529, completou seus estudos em Paris, ao obter o grau de Mestre em Artes, e decidiu dedicar-se à jurisprudência. Com esse propósito, continuou seus estudos em Orleans e em Bourges, sob a orientação dos dois mais célebres juristas daquela época: Pierre de l'Estoile e Andrea Alciati. O primeiro seguia os métodos tradicionais no estudo e na interpretação das leis, enquanto o segundo era um humanista elegante e talvez algo vaidoso. Quando houve um debate entre ambos, Calvino interveio em favor do primeiro. Isto é importante porque indica que, ainda nesses tempos em que começava a desejar cultivar um espírito humanista, Calvino não sentia simpatias pela elegância vã de que frequentemente se viam possuídos alguns dos mais famosos humanistas.
Contudo, apesar de seu conflito com Alciati, Calvino estava disposto a seguir o caminho dos humanistas. Logo se uniu a um pequeno círculo de estudiosos e admiradores de Erasmo e se dedicou aos estudos humanistas. Logo, ainda que recebesse sua licença para praticar a advocacia em 1530, sua principal ocupação durante os anos seguintes parece ter sido a preparação de um comentário sobre a obra de Sêneca, De clementia. Este comentário, publicado em 1532, foi relativamente bem recebido, embora não colocasse seu autor entre os mais ilustres humanistas.

A Conversão
Não se sabe o motivo certo que levou Calvino a abandonar a fé romana, nem a data exata em que isso ocorreu. Diferentemente de Lutero, Calvino nos diz muito pouco sobre o estado interior de sua alma. Todavia, o mais provável parece ser que, no meio do círculo de humanistas que frequentava e através de seus estudos das Escrituras e da antiguidade cristã, Calvino chegou à convicção de que teria de abandonar a comunhão romana e seguir o caminho dos protestantes.
Em 1534, se apresentou em sua cidade natal de Noyon e renunciou aos benefícios eclesiásticos que seu pai havia conseguido e que eram a sua principal fonte de sustento econômico. Se ele já estava decidido, nesse momento, a abandonar a igreja romana, ou se esse ato foi simplesmente um passo a mais na sua peregrinação espiritual, nos é impossível saber. O fato é que em outubro de 1534, Francisco I, até então relativamente tolerante com os protestantes, mudou sua política e, em janeiro do ano seguinte, Calvino se exilava na cidade protestante de Basileia.

As Institutas da Religião Cristã
Calvino sentia-se chamado a dedicar-se ao estudo e às obras literárias. Seu propósito não era de modo algum chegar a ser um dos líderes da Reforma, mas sim encontrar um lugar tranquilo onde pudesse estudar as Escrituras e escrever sobre a nova fé. Pouco antes de chegar a Basileia, havia escrito um breve tratado sobre o estado das almas dos mortos antes da ressurreição. Segundo ele encarava sua própria vocação, sua tarefa consistiria em escrever outros tratados como esse, que serviriam para aclarar a fé da igreja numa época de tanta confusão.
Portanto, seu principal projeto era um breve resumo da fé cristã do ponto de vista protestante. Até então, quase toda literatura protestante, chegava pela urgência da polêmica, e assim tratava somente dos pontos em discussão, e havia dito pouca coisa sobre outras doutrinas fundamentais do cristianismo, como por exemplo a Trindade, a Encarnação, e outras. O que Calvino se propunha então era cobrir esse vazio com um breve manual ao qual deu o título de Institutas da Religião Cristã..
A primeira edição surgiu em Basileia, no ano de 1536. Era um livro de 516 páginas, porém de formato pequeno, de modo que cabia facilmente nos amplos bolsos que se usavam antigamente, e podia, assim, circular dissimuladamente pela França. Constava de apenas seis capítulos. Os primeiros quatro tratavam sobre a lei, o Credo, o Pai Nosso e os sacramentos. Os últimos dois, de tom mais polêmico, resumiam a posição protestante com respeito aos "falsos sacramentos" romanos e a liberdade cristã.
O êxito desta obra foi imediato e surpreendente. Em nove meses se esgotou a edição, que, por estar em latim, era acessível a leitores de diversas nacionalidades.
A partir de então Calvino continuou preparando edições sucessivas das Institutas que foi crescendo segundo iam pas¬sando os anos. As diversas polêmicas da época, as opiniões de vários grupos que Calvino considerava errados e as necessi¬dades práticas da igreja, foram contribuindo para o crescimento da obra, de tal maneira que para seguirmos o curso do desenvolvimento teológico de Calvino e das polêmicas em que se envolveu, bastaria comparar as edições sucessivas das Instituías. Visto que não podemos fazer tal coisa aqui, nos limitaremos a fazer constar as datas e os idiomas em que as diversas edições surgiram durante a vida de Calvino, terminando com um breve resumo da última edição.
Após a edição de 1536, em latim, surgiu em Estrasburgo a edição de 1539, no mesmo idioma. Em 1541, Calvino publicou em Genebra a primeira edição francesa, que é uma obra mestra da literatura nesse idioma. A partir de então, as edições surgiram em pares, uma latina seguida de sua versão francesa, como segue: 1543 e 1545, 1550 e 1551, 1559 e 1560. Visto que as edições latina e francesa de 1559 e 1560 foram as últimas produzidas durante a vida de Calvino, são elas as que nos dão o texto definitivo das Institutas.
Esse texto definitivo dista muito de ser o pequeno manual de doutrina que Calvino tinha tido em mente publicar quando da primeira edição, pois os seis capítulos de 1536 se haviam transformado em quatro livros com um total de oitenta capítulos. O primeiro livro trata sobre Deus e sua revelação, assim como da criação e da natureza do ser humano, porém sem Incluir a queda e a salvação. O segundo livro trata sobre Deus como redentor e o modo em que se nos dá a conhecer, primeiramente, no Antigo Testamento, e depois em Jesus Cristo.
O terceiro livro trata sobre como, pelo Espírito, podemos participar da graça de Jesus Cristo e dos frutos que ele produz. Por último, o quarto livro trata dos "meios externos" para essa participação, isto é, fala-nos sobre a igreja e os sacramentos. Por toda obra se manifesta um conhecimento profundo, não só das Escrituras, mas também de antigos escritores cristãos, particularmente Santo Agostinho, e as controvérsias teológicas do século XVI. Sem dúvida alguma, esta foi a obra-prima de teologia sistemática protestante em todo aquele século.

O Reformador de Genebra
Calvino não tinha a menor intenção de dedicar-se à vida ativa de seus muitos correligionários que em diversas partes levaram a cabo a obra reformadora. Mesmo que sentisse para com eles profundo respeito e admiração, estava convencido de que seus dons não eram os de pastor, ou um "cabo de guerra", mas sim os de estudioso e de escritor.
Depois de uma breve visita a Ferrara, e outra à França, decidiu estabelecer seu domicílio em Estrasburgo, onde a causa reformadora havia triunfado e onde havia uma grande atividade teológica e literária que lhe parecia oferecer um ambiente propício para seus trabalhos.
Mas o caminho mais direto para Estrasburgo estava fechado por razões de uma guerra, e Calvino teve que se desviar e passar por Genebra. A situação nessa cidade era confusa. Algum tempo antes, a cidade protestante de Berna havia envia¬do missionários a Genebra, e estes tinham conseguido o apoio de um pequeno núcleo de leigos instruídos que ansiavam pela reforma da igreja e de um forte contingente de burgueses cujo principal desejo parece ter sido o de ganhar certas vantagens e liberdades que não tinham sob o regime católico. O clero, em geral de escassa instrução e menor convicção, simplesmente havia seguido ordens do governo de Genebra quando este decidiu abolir a missa e optar pelo protestantismo. Isto tinha ocorrido poucos meses antes da chegada de Calvino a Genebra e, portanto, os missionários procedentes de Berna, cujo chefe era Guilherme Farei, se encontravam à frente da vida religiosa de toda uma cidade e carentes de pessoal necessário.
Calvino chegou a Genebra com a intenção de não passar ali mais que um dia e prosseguir seu caminho para Estrasburgo. Porém alguém avisou a Farei que o autor das Instituías se encontrava na cidade, e assim se produziu uma entrevista inolvidável, que o próprio Calvino nos conta.
Farei, que "ardia com um maravilhoso zelo pelo avanço do evangelho", apresentou a Calvino várias razões pelas quais precisava de sua presença em Genebra. Calvino escutou atentamente seu interlocutor, uns quinze anos mais velho que ele, porém se negou a aceitar seu rogo, dizendo-lhe que tinha projetado certos estudos e que não lhe seria possível terminá-los na situação em que Farei descrevia. Quando por fim, Farei tinha esgotado todos seus argumentos, sem conseguir convencer ao jovem teólogo, apelou ao Senhor de ambos e insurgiu contra o teólogo com voz estridente: "Deus amaldiçoe teu descanso e a tranquilidade que buscas para estudar, se diante de uma necessidade tão grande te retiras e te negas a prestar socorro e ajuda".
Diante de tal imprecação, nos conta Calvino: "essas palavras me espantaram e me quebrantaram e desisti da viagem que tinha empreendido". E assim começou a carreira de João Calvino como reformador de Genebra.
Mesmo que de início Calvino aceitasse simplesmente permanecer na cidade e colaborar com Farei, logo sua habilidade teológica, seu conhecimento da jurisprudência e seu zelo refor¬mador fizeram dele o personagem central da vida religiosa da cidade, enquanto Farei, gostosamente, se tornava um seu colaborador. Porém nem todos estavam dispostos a seguir o caminho da reforma que Calvino e Farei haviam traçado. E quando começaram a exigir que se seguissem verdadeiramente os princípios protestantes, muitos dos burgueses que haviam apoiado a ruptura com Roma começaram a oferecer-lhes resistência, ao mesmo tempo que faziam chegar a outras cidades protestantes da Suíça rumores sobre supostos erros dos reformadores genebrinos. O conflito se travou finalmente em torno do assunto do direito da excomunhão. Calvino insistia em que, para que a vida religiosa se conformasse verdadeiramente aos princípios reformadores, era necessário excomungar os pecadores impenitentes. Diante do que pareceu um rigor excessivo, o governo da cidade se negou a seguir os conselhos de Calvino. Posteriormente, o conflito foi tal que Calvino foi desterrado. O fiel Farei, que poderia permanecer na cidade, escolheu antes o exílio que tornar-se um instrumento dos burgueses que queriam uma religião com toda sorte de liberdade e poucas obrigações.
Calvino viu nisso tudo uma porta que o céu lhe abria para continuar sua vida de estudos e retiro, que havia projetado, e se dirigiu a Estrasburgo. Porém nessa cidade o chefe do movimento reformador, Martinho Bucero, também não o deixou em paz. Havia ali um forte contingente de fraceses, exilados por motivos religiosos, carentes de direção pastoral, e Bucero fez com que Calvino se encarregasse deles. Foi aí então que o nosso teólogo produziu uma liturgia francesa e traduziu vários salmos e outros hinos, para que fossem cantados pelos franceses exilados. Além disso, produziu a segunda edição das Institutas, e se casou com a viúva Idelette de Bure, com quem foi feliz até que a morte a levou em 1549.
Os três anos que Calvino passou em Estrasburgo foram provavelmente os mais felizes e tranquilos de sua vida. Porém, apesar disso, lhe doía sempre não ter podido continuar a obra reformadora em Genebra, por cuja igreja sentia um grande amor e responsabilidade. Portanto, quando as circunstâncias mudaram na cidade suíça e o governo o convidou a regressar, Calvino não vacilou e, uma vez mais, ficou com a responsabilidade da obra reformadora em Genebra.
Foi em meados de 1541 que Calvino regressou a Genebra. Uma de suas primeiras ações foi redigir as Ordenanças Eclesiásticas, que foram aprovadas poucos meses depois pelo governador da cidade, se bem que com algumas emendas. Segundo se estabelecia nelas, o governo da igreja ficava, principalmente, nas mãos do Consistório, que era formado pelos pastores e por doze leigos que recebiam o nome de "anciãos". Visto que os pastores eram cinco, os leigos eram a maioria no Consistório. Entretanto, apesar disso, o impacto pessoal de Calvino era tal que quase sempre esse corpo seguia suas orientações e seus desejos.
Durante os próximos doze anos, houve conflitos repetidos entre o Consistório e o governo da cidade, pois o corpo eclesiástico, seguindo a inspiração de Calvino, tratava de regular os costumes com uma severidade que nem sempre era do agrado do governo. Em 1553, a oposição tinha voltado a ganhar as eleições, e a situação política de Calvino era precária. Foi então que começou o famoso processo de Miguel Servetto. Este era um médico espanhol, autor de vários livros de teologia, que estava convencido de que a união da igreja com o estado a partir de Constantino tinha se constituído numa grande apostasia, e que o Concílio de Nicéia, ao promulgar a doutrina da Trindade, havia ofendido a Deus. Servetto acabava de escapar dos cárceres da inquisição católica na França, onde corria contra ele um processo de heresia e se viu obrigado a passar por Genebra, onde foi reconhecido quando foi escutar Calvino pregar. Foi arrastado, e Calvino preparou uma lista de trinta e oito acusações contra ele. Visto que Servetto era um erudito, e além do mais tinha sido acusado de heresia pelos católicos, o partido que se opunha a Calvino em Genebra adotou sua causa. Porém, o governo da cidade pediu conselho às regiões protestantes da Suíça e todos concordaram que Servetto era herege. Isso calou a oposição, e resolveram condenar Servetto a ser queimado vivo, mas Calvino tratou de mudar essa condenação, transformando-a na de decapitação, por ser uma pena menos cruel.
A morte de Servetto foi duramente criticada, principalmente por Sebastião Castellon, a quem Calvino tinha feito expulsar da cidade por interpretar o Cântico dos Cânticos como um poema de amor. A partir de então esse incidente se tornou o símbolo do dogmatismo rígido que reinava na Genebra de Calvino. E não há dúvida de que há muito de verdade nisso. Contudo, não se deve esquecer que naquela época e em diversas partes da Europa, tanto católicos como protestantes estavam procedendo de maneira semelhante contra aqueles que eram considerados hereges. O próprio Servetto foi condenado à fogueira pela inquisição francesa, que não pôde levar a cabo sua sentença por causa da fuga do réu.
Em todo caso, depois da execução de Servetto, a autoridade de Calvino em Genebra não teve rival, sobretudo porque os teólogos de todas as demais regiões da Suíça protestante lhe tinham dado apoio, ao mesmo tempo em que seus opositores se colocaram na difícil situação de defender um herege condenado tanto pelos católicos como pelos protestantes da Suíça.
Em 1559, Calvino viu cumprir-se um dos seus sonhos, ao ser fundada a Academia de Genebra, sob a direção de Teodoro de Beza, que depois sucedeu Calvino como chefe religioso da cidade. Naquela academia, se formou a juventude genebrina segundo os princípios calvinistas. Mas seu principal impacto se deve a que nela cursaram estudos superiores pessoas procedentes de vários outros países, que depois levaram o calvinismo a eles.
Pelo fim de seus dias, Calvino preparou seu testamento e se despediu de seus colaboradores. Farei, que havia se dedicado a prosseguir a obra reformadora em Neuchâtel, foi ver seu amigo pela última vez. Calvino morreu em 27 de maio de 1564.

Calvino e o Calvinismo
Durante a vida de Calvino, a principal questão teológica que dividia os protestantes (é claro sem se contar os anabatistas) era a da presença de Cristo na comunhão, que segundo temos visto foi a principal causa de desavença entre Lutero e Zwínglio. Nesse ponto, Calvino seguiu o exemplo de seu amigo Bucero, o reformador de Estrasburgo, que tomava uma posição intermediária entre Lutero e Zwínglio. Para Calvino, a presença de Cristo na comunhão é real, porém espiritual. Isto quer dizer que não se trata de um mero símbolo, ou de um exercício de devoção, mas que na comunhão há uma verdadeira ação por parte de Deus em benefício da igreja que participa dela. Porém, ao mesmo tempo, isso não quer dizer que o corpo de Cristo desça do céu, nem que está presente em vários altares ao mesmo tempo, como pretendia Lutero. O que sucede é que, no ato da comunhão, pelo poder do Espírito Santo, os crentes são levados ao céu, e participam com Cristo de uma antecipação do banquete celestial.
Em 1536, Buceto, Lutero e outros chegaram a Concórdia de Wittemberg, um documento que conseguiu salvar as diferenças entre ambas as posições. Em 1549, Bucero, Calvino, os principais teólogos protestantes suíços e vários outros do sul da Alemanha, firmaram o Consenso de Zurich, outro documento semelhante. Além disso, Lutero havia dado boa acolhida às Instituías de Calvino. Portanto, as diferenças entre os diversos reformadores com relação ao significado da comunhão não pareciam ser insolúveis.
Entretanto, os seguidores dos grandes mestres estavam dispostos a mostrarem-se mais extremados que eles mesmos. Em 1552, o luterano Joaquim Westphal publicou um ataque contra Calvino, onde dizia que o calvinismo estava se introduzindo sub-repticiamente nos territórios luteranos e se declarava campeão da posição de Lutero com respeito a comunhão. Lutero já havia morrido, e Melanchthon se negou a atacar Calvino, como era o desejo de Westphal. Porém, o resultado disso tudo foi o distanciamento cada vez maior entre os que seguiam Lutero e os que aceitavam o Consenso de Zurich que, a partir de 1580, receberam o nome de "reformados".
Portanto, durante este primeiro período, a marca característica dos "calvinistas" ou "reformados" não era sua doutrina da predestinação, mas sua opinião com respeito à comunhão. Só mais tarde, segundo veremos noutra parte dessa história, a doutrina da predestinação veio a ser característica distintiva do calvinismo. Enquanto vivos não havia essa divisão, pois tanto Lutero quanto Calvino afirmavam a predestinação.
Em todo caso, devido em parte à Academia de Genebra e em parte às Instituías da Religião Cristã, a influência de Calvino logo se fez sentir em diversas partes da Europa, e, mais tarde, surgiram várias igrejas — na Holanda, Escócia, Hungria, França, e outros lugares. — que seguiriam as doutrinas do reformador de Genebra e que se conhecem como "reformadas" ou "calvinistas".
Por último, devemos men¬cionar que alguns historiadores e economistas têm assinalado a existência de uma relação entre o calvinismo e as origens do capitalismo. Alguns têm tratado de provar que o calvinismo foi o espírito propulsor do capitalismo. Porém, o mais correto parece ser que ambos os movimentos começaram a ganhar impulso na mesma época e que, logo depois, se aliaram. Seguindo o curso do calvinismo em diversos países, veremos algo dessa aliança e os seus resultados.

História da Igreja - 19

A Era dos Reformadores
Parte 6
O Movimento Anabatista
Tanto Lutero como Zwínglio se queixavam de que, através dos séculos, o cristianismo havia deixado de ser o que havia sido nos tempos do Novo Testamento. Lutero desejava livrá-lo de tudo o que era contrário às Escrituras. Zwínglio ia mais longe e sustentava que somente deveria ser praticado aquilo em que se cresse, ou aquilo que era encontrado na Bíblia. Mas logo apareceram outros que assinalavam que o próprio Zwínglio não levava essas idéias a sua conclusão lógica.

Os Primeiros Anabatistas
Segundo essas pessoas, Zwínglio e Lutero esqueciam que no Novo Testamento havia um contraste marcante entre a igreja e a sociedade que a rodeia. Esse contraste logo resultou em perseguição, porque a sociedade romana não podia tolerar o cristianismo primitivo. Assim, a união entre a igreja e o estado que teve lugar a partir da conversão de Constantino, constituiu-se em si mesma um abandono do cristianismo primitivo. Portanto, a reforma iniciada por Lutero devia ir mais além, se verdadeiramente queria ser obediente ao mandato bíblico.
A igreja não deveria confundir-se com o restante da sociedade. E a diferença fundamental entre ambas é que, embora se pertença a uma sociedade pelo simples fato de se nascer nela, e sem fazer decisão alguma a esse respeito, para ser parte da igreja há necessidade de se fazer uma decisão pessoal. A igreja é uma comunidade voluntária, e não uma sociedade dentro da qual nascemos.
A consequência imediata de tudo isso é que o batismo das crianças deve ser rechaçado. Esse batismo dá a entender que uma pessoa é cristã simplesmente por ter nascido em uma sociedade supostamente cristã. Porém, tal entendimento oculta a verdadeira natureza da fé cristã, que requer decisão própria.
Além disso, esses reformadores mais radicais sustentavam que a fé cristã era, em sua própria essência, pacifista. O Sermão do Monte deveria ser obedecido ao pé da letra, apesar de muitas objeções sobre a impossibilidade de praticá-lo, pois tais objeções eram devidas à falta de fé. Os cristãos não deve¬riam tomar as armas para defenderem-se a si mesmos, nem para defender sua pátria, mesmo que fosse ameaçada pelos turcos. Como era de se esperar, tais doutrinas não foram bem recebidas na Alemanha, onde a ameaça dos turcos era cons¬tante, nem tão pouco em Zurich e nas demais regiões da Suíça, onde a fé protestante estava em perigo de ser aniquilada pelos católicos.
Essas opiniões apareceram em diversos lugares, no século XVI, e, ao que parece, sem que houvesse conexão direta entre seus focos. Entretanto, foi em Zurich que, primeiramente, elas vieram à luz. Havia ali um grupo de crentes, assíduos leitores da Bíblia, e vários deles letrados, que forçavam Zwínglio a tomar medidas mais radicais de reforma. Em particular, essas pessoas, que se chamavam pelo nome de "irmãos", sustenta¬vam que se devia fundar uma congregação, ou um grupo dos verdadeiros crentes, para contrastar com aqueles que se diziam cristãos pelo fato de terem nascido num país cristão e terem sido batizados quando crianças.
Quando finalmente observou-se que Zwínglio não seguiria o caminho que eles propunham, alguns dos "irmãos" decidiram fundar eles mesmos essa comunidade de verdadeiros crentes. Em sinal disso, o ex-sacerdote Jorge Blaurock pediu a outro dos irmãos, Conrado Grebel, que o batizasse. Em 21 de janeiro de 1525, junto à fonte que se encontrava no meio da praça de Zurich, Grebel batizou Blaurock que, em seguida, fez o mesmo com outros irmãos. Aquele primeiro batismo, todavia, não foi por imersão, pois o que preocupava a Blaurock, Grebel e os demais não era a forma em que se administrava o rito, mas a necessidade que a pessoa tivesse e proclamasse sua fé antes de ser batizada. Mais tarde, em seus esforços por serem bíblicos em todas as suas práticas, começaram a batizar por imersão.
Assim, de imediato, se deu a essas pessoas o nome de "anabatistas", que quer dizer "rebatizadores". Naturalmente, esse nome não era de todo exato, porque o que os supostos rebatizadores diziam não era que era necessário batizar-se de novo, mas sim que o primeiro batismo não era válido e que, assim, o que se recebia depois de confessar a fé era o primeiro e único batismo. Porém, em todo caso, a história os identifica como "anabatistas", e esse é o nome que daremos a eles a fim de evitar confusões.
O movimento anabatista logo atraiu grande oposição, tanto por parte dos católicos como dos reformadores. Ainda que essa oposição se expressasse comumente em termos teológicos, o fato é que os anabatistas foram perseguidos porque eram considerados subversivos. Apesar de todas as reformas, Lutero e Zwínglio continuaram aceitando os termos fundamentais da relação entre o cristianismo e a sociedade que se havia desenvolvido a partir de Constantino. Nem um nem outro interpretava o evangelho de maneira a ser uma provocação radical a ordem social. E foi isso, ainda que sem querer, o que fizeram os anabatistas. Seu pacifismo extremo se tornou intolerável aos encarregados de manter a ordem social e política, particularmente numa época de grande incerteza como foi o século XVI.
Além do mais, ao insistir no contraste entre a igreja e a sociedade natural, os anabatistas estavam afirmando que as estruturas de poder dessa sociedade não deveriam ser transferidas para a igreja. Mesmo contra os propósitos iniciais de Lutero, o luteranismo se via agora sustentado pelos príncipes que o haviam abraçado, os quais gozavam de grande autoridade, não somente nos assuntos políticos, como também nos eclesiásticos. Na Zurich, de Zwínglio, o Conselho de Governo era quem, no final das contas, ditava a política religiosa. E isso era o que ocorria nos territórios católicos, onde se conservava a tradição medieval. Mesmo que isso não queira dizer que a igreja e o estado concordavam em todos os pontos, era certo que havia pelo menos um corpo de proposições em comum, e era dentro desse contexto que se produziam os conflitos entre as autoridades civis e as eclesiásticas. Porém, os anabatistas deitaram tudo isso por terra, ao insistir numa igreja de caráter voluntário, distinta da sociedade civil.
Além disso, muitos dos anabatistas eram igualitários. Muitos se tratavam entre si de "irmãos". Na maioria dos seus grupos as mulheres tinham tanto direito como os homens. E pelo menos na teoria, os pobres e os ignorantes eram tão importantes como os ricos e os sábios.
Tudo isso causava um efeito altamente subversivo para a Europa do século XVI e, portanto, logo começaram as perseguições aos anabatistas. Em 1525, as regiões católicas da Suíça começaram a condenar os anabatistas à pena capital. No ano seguinte, o Conselho de Governo de Zurich decretou também a pena de morte para quem rebatizasse, ou quem se deixasse rebatizar. E em poucos meses todos os demais territórios protestantes da Suíça seguiram o exemplo de Zurich. Na Alemanha não existia uma política uniforme, pois se aplicavam aos anabatistas as velhas leis contra os hereges, e cada estado seguia pelo caminho que melhor lhe parecia. Em 1528, Carlos V decretou a pena de morte para os anabatistas, apelando para uma velha lei romana, criada para extirpar o donatismo, segundo a qual quem se fizera culpável de rebatizar, ou de rebatizar-se, devia ser condenado à pena de morte. A dieta de Spira, de 1529, a mesma em que os príncipes luteranos protestaram e por isso receberam o nome de protestantes, aprovou o decreto imperial contra os anabatistas. E desta vez ninguém protestou. O único príncipe alemão que, sem protestar formalmente, se negou por razões de consciência a aplicar o decreto imperial em seus territórios, foi o magistrado Felipe de Hesse.
Em alguns lugares, como na Saxônia eleitoral em que vivia Lutero, os anabatistas foram acusados tanto de hereges como de rebeldes. Visto que o primeiro era um crime religioso, e o segundo um crime civil, tanto as cortes eclesiásticas como as civis tinham jurisdição para castigar quem se atrevesse a repetir o batismo, e quem se negasse a apresentar seus filhos pequenos para o receber.
O número de mártires foi enorme, provavelmente maior do que todos os que morreram durante os três primeiros séculos da história da igreja. O modo pelo qual se aplicava a pena de morte variava de lugar para lugar e, até de caso para caso. Com cruel ironia, em alguns lugares se condenavam os anabatistas a morrerem afogados. Outras vezes, eram queimados vivos, segundo o costume estabelecido séculos antes. Porém não faltaram casos nos quais eles foram mortos em meio a torturas incríveis, como a de serem esquartejados ainda vivos. As histórias de heroísmo em tais circunstâncias encheriam muitos volumes. E o notável é que, quanto mais eram perseguidos, mais crescia o movimento.

Os Anabatistas Revolucionários
Mesmo que muitos dos primeiros chefes do movimento fossem eruditos, e quase todos eles fossem pacifistas, logo aquela primeira geração pereceu vítima da perseguição. E o movimento cada vez mais foi se fazendo radical, mesclando-se com o ressentimento popular que havia dado lugar diante da rebelião dos camponeses. Pouco a pouco, o pacifismo original foi esquecido e o movimento tornou-se violento.
Ainda antes do surgimento do movimento anabatista, Tomás Muntzer tinha unido algumas das doutrinas, que depois o movimento promulgaria, com ânsias de justiça por parte dos camponeses. E agora muitos anabatistas faziam o mesmo. Entre eles se contava Melchor Hoffman, correeiro que tinha sido pregador leigo luterano na Dinamarca, mas que, mais tarde, tinha deixado as doutrinas de Lutero a respeito da ceia, transformando-se num seguidor de Zwínglio. Em Estrasburgo, onde o anabatismo era relativamente forte e havia uma certa medida de tolerância, Hoffman se tornou anabatista. Pouco depois começou a anunciar que o dia do Senhor estava próximo. Sua pregação inflamou as multidões, que correram para Estrasburgo, onde segundo ele seria estabelecida a Nova Jerusalém. O próprio Hoffman predisse que seria encarcerado por seis meses e que então viria o fim. Além disso, abandonou o pacifismo inicial dos anabatistas, declarando que ao aproximar-se o fim seria necessário que os filhos de Deus pegassem as armas contra os filhos das trevas. Quando foi encarcerado e se cumpriu assim a primeira parte da sua profecia, foram muitos os que correram para Estrasburgo na espera do sinal do alto para tomar as armas. Mas, o fato de que a cada dia eram mais os anabatistas que haviam na cidade, obrigou as autoridades a tomarem medidas cada vez mais repressivas. E Hoffman continuava encarcerado.
Então alguém disse que, na realidade, a Nova Jerusalém seria estabelecida, não em Estrasburgo, mas sim em Múnster. Nessa cidade, o equilíbrio entre os católicos e protestantes era tal que existia uma trégua entre todos os partidos e, como consequência disso, não se perseguia os anabatistas. Para lá foram os visionários e o povo cuja crescente opressão havia levado ao desespero. O reino viria logo. Viria em Múnster. E então os pobres receberiam as terras por herança.
Rapidamente o número dos anabatistas em Múnster foi tal que conseguiram apoderar-se da cidade. Seus chefes eram um padeiro holandês, João Matthys, e seu principal discípulo, João de Leiden. Uma das primeiras providências foi mandar os católicos para fora da cidade. O bispo, expulso de sua sede, reuniu um exército e sitiou a Nova Jerusalém. Enquanto isso, dentro da cidade, se insistia cada vez mais em que tudo se ajustasse à Bíblia. Os protestantes moderados foram também considerados ímpios. Constantemente, se destruíam as esculturas, pinturas e demais objetos do culto tradicional. Fora da cidade, o bispo matava a todos os anabatistas que caíssem em suas mãos. Os defensores se exaltavam cada vez mais, à medida em que a situação piorava, pois os alimentos se escas¬seavam. Diariamente, havia aqueles que criam receber visões do alto. E numa saída militar contra as forças do bispo, João Matthys caiu morto, e João de Leiden o sucedeu.
Devido à guerra constante e o êxodo de muitos varões, a população feminina da cidade era muito maior que a masculina, e João de Leiden decretou a poligamia, usada pelos patriarcas do Antigo Testamento. Por lei, toda mulher na cidade deveria estar casada com algum homem. O sítio se prolonga¬va e, ao mesmo tempo que os sitiados necessitavam de alimen¬tos, os fundos do bispo começaram a terminar. Numa ação desesperada, João de Leiden saiu com um punhado de homens e derrotou numa escaramuça os soldados do bispo. Então, em celebração daquela vitória, ele foi proclamado rei da Nova Jerusalém.
Porém, pouco depois, um grupo de habitantes da Nova Jerusalém, talvez fastiados pelos excessos que se cometiam, ou talvez impulsionados pela fome e pelo medo, abriram as portas da cidade para o bispo, cujas tropas arrasaram os defensores do reduto apocalíptico.
O rei da Nova Jerusalém foi preso e exibido por toda região, com seus principais assessores, em jaulas individuais de ferro. Pouco depois foram torturados e executados.
Assim terminou o principal broto do anabatismo revolucionário. Melchor Hoffman continuou encarcerado e esqueci¬do, ao que parece, até a sua morte. E até os dias de hoje, na igreja de São Lamberto, em Múnster, podem ser vistas as três jaulas em que foram exibidos o rei e seus dois principais assessores.

O Anabatismo Posterior
A queda de Múnster pôs fim ao anabatismo revolucionário. E logo se começaram a escutar vozes daqueles que diziam que a tragédia de Múnster se devia ao fato do anabatismo ter se desviado do pacifismo original, que era parte da verdadeira fé. De igual modo, dos primeiros chefes, estes novos chefes criam que a razão pela qual os cristãos não estavam dispostos a cumprir os preceitos do Sermão do Monte não é que não fossem exequíveis, mas sim porque havia falta de fé. Aquele que verdadeiramente tem fé, pratica o amor que Jesus ensinou e deixa as consequências da prática nas mãos de Deus.
O mais notável porta-voz dessa nova geração foi Menno Simons, um sacerdote católico holandês que abraçou o anabatismo em 1536, isto é, no mesmo ano em que foram executados João de Leiden e seus companheiros. Simons se uniu a um grupo de anabatistas holandeses cujo chefe era Obbe Philips, porém logo se destacou entre eles de tal maneira que o grupo recebeu o nome de "menonitas".
Apesar dos menonitas terem sofrido as mesmas perseguições de que foram alvo os anabatistas em geral, Menno Simons conseguiu sobreviver e passou o resto de sua vida viajando pela Holanda e o norte da Alemanha, pregando sua fé. Para ele o pacifismo era parte fundamental da fé cristã e, portanto, repudiava toda relação com a ala revolucionária do anabatismo. Os cristãos, segundo cria Menno Simons, não tinham que prestar juramento algum e, portanto, não poderiam ocupar cargos públicos que requeriam tais juramentos. Porém, tinham que obedecer às autoridades civis em tudo, exceto no que as Escrituras proibiam. O batismo, que Menno praticava jogando água sobre a cabeça, somente seria administrado aos adultos que confessassem a sua fé. Nem esse rito, nem a ceia conferem graça alguma, mas são sinais externos do que sucede internamente entre o cristão e Deus. Além disso, seguindo o exemplo de Jesus, Menno e os seus praticavam a lavagem mútua dos pés.
Apesar de se absterem de participar ativamente em qualquer ato de subversão, os menonitas logo foram considerados subversivos por muitos governos, pois se negavam a participar da vida comum da sociedade, particularmente no que se referia a portar armas. Isso, por sua vez, fez com que se espalhassem por toda Europa. Muitos emigraram para a Europa oriental, particularmente para a Rússia. Outros marcharam para a América do Norte, onde a tolerância religiosa prometia-lhes uma vida de paz. Porém, também na Rússia e na América do Norte, tiveram dificuldades, pois em ambos os casos o estado queria que se ajustassem às suas leis, sujeitando-se ao serviço militar obrigatório. Por essa causa, nos séculos XIX e XX fortes contingentes emigraram para a América do Sul, onde havia territórios em que podiam viver em isolamento relativo do resto da sociedade.
Até os dias de hoje, os menonitas são o principal ramo do velho anabatismo do século XVI, e continuam insistindo em seu pacifismo e dedicando-se, frequentemente, ao serviço social.

História da Igreja - 18

A Era dos Reformadores
Parte 5
Ulrico Zwínglio e a Reforma na Suíça
Ao estudar Lutero e o movimento reformador que ele dirigiu na Alemanha, vimos que o nacionalismo alemão e o humanismo moveram-se paralelamente à obra do grande Reformador que, na verdade, não era nem nacionalista, nem humanista. O caso de Ulrico Zwínglio é muito distinto, pois nele os princípios reformadores, o sentimento patriótico e o humanismo se conjugaram em um programa de reforma religiosa, Intelectual e política.

A Peregrinação de Zwínglio
Zwínglio nasceu em janeiro de 1484, menos de dois mêses depois que Lutero, em uma pequena aldeia suíça. Depois de receber as primeiras letras de seu tio, foi estudar em Basileia e Berna, onde o humanismo estava em moda. Depois. foi para a Universidade de Viena e de novo voltou a Basileia. Quando recebeu seu título de Mestre em Artes, em 1506, deixou os estudos formais para ser sacerdote na aldeia de Glarus. Porém, ainda ali continuou seus estudos humanistas e chegou a dominar o grego. Nisso era excepicional, pois sabemos por outros testemunhos que havia muitíssimos sacerdotes ignorantes, e até nos dizem que eram poucos os que haviam lido o Novo Testamento.
Em 1512 e 1515, Zwínglio acompanhou os contigentes de mercenários procedentes de seu distrito, em campanhas pela Itália. A primeira expedição foi vitoriosa e o jovem sacerdote viu seus compatriotas entregues ao saque. O resultado da segunda foi totalmente oposto e deu a Zwínglio a oportunidade de ver de perto o impacto da derrota sobre os vencidos. Tudo aquilo o foi convencendo de que um dos grandes males da Suíça era que sua juventude estava constantemente envolvida em guerras que não eram de sua incumbência e que o serviço mercenário destruía a fibra moral da sociedade.
Depois de passar dez anos em Glarus, Zwínglio foi no¬meado cura de uma abadia que era o centro das peregrinações, e ali sua pregação contra a idéia de que tais exercícios procuravam a salvação atraiu a atenção de muitos.
Quando por fim chegou a ser cura da cidade de Zurich, Zwínglio tinha chegado a idéias reformadoras muito parecidas com as de Lutero. Todavia, seu caminho para essas idéias não tinha sido o tormento espiritual do reformador alemão, mas sim o estudo das Escrituras utilizando os métodos humanistas, e a indignação diante das superstições do povo, da espoliação de que era objeto por parte de alguns líderes eclesiásticos e o serviço militar mercenário.
Assim a autoridade de Zwínglio em Zurich foi grande. Quando alguém chegou vendendo indulgências, o cura reformador conseguiu que o governo o expulsasse. Quando Francisco I pediu à Confederação Suíça soldados para as suas guerras contra Carlos V, todas as regiões cederam, porém Zurich se negou, seguindo o conselho de seu pregador. Pouco depois os legados do papa, que era aliado de Francisco l, prevaleceram sobre o governo de Zurich, mostrando que existiam tratados que o obrigavam a proporcionar-lhes soldados. Isto fez que a partir daí boa parte dos ataques de Zwínglio, antes dirigidos de maneira impessoal contra as superstições, se transferissem mais diretamente contra o papa.
Naquela mesma época, Lutero estava causando grande revolução na Alemanha, enfrentando o Imperador em Worms. E assim os inimigos de Zwínglio começaram a dizer que suas doutrinas eram as mesmas do alemão. Mais tarde, o próprio Zwínglio diria que, antes de ter conhecido as doutrinas de Lutero, havia chegado a conclusões semelhantes com base em seus estudos na Bíblia. Assim, percebe-se aqui não um resultado direto da obra de Lutero, mas sim de uma reforma paralela à da Alemanha, que logo começou a estabelecer contatos com ela, cuja origem porém era independente. Em todo caso, em 1522, Zwínglio estava pronto a empreender sua obra reformadora e o Conselho de Governo de Zurich o apoiava.

O Rompimento com Roma
Zurich estava debaixo da jurisdição eclesiástica do episcopado de Constança, que começou a dar sinais de preocupação pelo que se estava pregando em Zurich. Quando Zwínglio pregou contra as leis do jejum e da abstinência, e alguns membros de sua paróquia se reuniram para comer salsichas durante a quaresma, o bispo eleito de Constança acusou o pregador diante do Conselho de Governo. Mas Zwínglio se defendeu baseando-se nas Escrituras, e lhe foi permitido continuar pregando. Pouco depois, Zwínglio começou a criticar o celibato, dizendo que não era bíblico e que em todo caso aqueles que o ensinavam não o cumpriam. O papa, na ocasião Adriano VI, tratou de acalmar seu zelo, fazendo-lhe promessas tentadoras. Porém Zwínglio persistia em sua posição e conseguiu que o Conselho convocasse um debate entre ele e o vigário do bispo sobre essas doutrinas que ele pregava.
Chegado o momento do debate, várias centenas de pessoas se reuniram para presenciá-lo. Zwínglio propôs e defendeu suas diversas teses baseado nas Escrituras. O vigário não respondeu às suas teses e disse prontamente que reuniria um concílio universal que decidiria sobre as questões que se debatiam. Quando foi pedido a ele que provasse que Zwínglio estava enganado, ele se negou a fazê-lo. Em consequência, o Conselho declarou que, visto que ninguém havia aparecido para refutar as doutrinas de Zwínglio, este podia continuar pregando livremente. Essa decisão por parte do Conselho marcou o rompimento de Zurich com o episcopado de Constança e, portanto, com Roma.
A partir daí, Zwínglio, com o apoio do Conselho, foi levando avante a sua reforma, que consistia na restauração da fé e práticas bíblicas. Em relação a isso Zwínglio diferia de Lutero, pois, embora o alemão cresse que deviam ser preservadas todas as práticas tradicionais, exceto aquelas que contradissessem a Bíblia, o suíço sustentava que tudo o que não fosse encontrado explicitamente nas Escrituras devia ser rechaçado. Isto o levou, por exemplo, a suprimir o uso dos órgãos nas igrejas, pois se tratava de um instrumento que não aparecia na Bíblia. Sob a direção de Zwínglio, houve rápidas mudanças em Zurich. A ceia começou a ser oferecida em ambas as espécies. Muitos sacerdotes, monges e freiras se casaram. Foi estabelecido um sistema de educação pública geral, sem distinção de classes. Ao mesmo tempo, pregadores e leigos procedentes de Zurich propagavam suas doutrinas por outras regiões suíças.
A Confederação Suíça, como seu nome o indica, não era um estado centralizado, mas sim um complexo mosaico de diversos estados, cada um com seu próprio governo e suas próprias leis, que se haviam reunido com certos propósitos concretos, particularmente o de garantir sua independência. Dentro desse mosaico, rapidamente algumas regiões se tornaram protestantes, embora outras continuassem obedientes a Roma e a sua hierarquia. Essa divergência religiosa somou-se a outras diferenças profundas, e a guerra civil chegou a parecer inevitável.
As regiões católicas começaram a dar passos para uma aliança com Carlos V, e Zwínglio aconselhou aos protestantes que atacassem os católicos antes que fosse tarde demais. Entretanto, as autoridades não estavam dispostas a serem as primeiras a partir para as armas. Quando finalmente Zurich decidiu-se a atacar, as demais regiões não estavam de acordo. Por fim, contra o conselho de Zwínglio, tomaram medidas económicas contra as regiões católicas, a quem acusavam de haver traído a Confederação ao aliar-se com Carlos V, e através dele com a odiada casa dos Habsburgo.
Em outubro de 1531, as cinco regiões católicas reuniram seus exércitos e atacaram Zurich de surpresa. Os defensores tiveram apenas tempo de se prepararem para o combate, pois não sabiam quem os atacava até que viram os pendões do inimigo no horizonte. Zwínglio saiu com os primeiros soldados, disposto a oferecer resistência, enquanto o grosso do exército se preparava para a defesa. Ali, em Cappel, as regiões católicas derrotaram Zurich, e Zwínglio morreu em combate.
Pouco mais de um mês depois foi firmada a paz de Cappel, e por ela os protestantes se comprometiam pagar os gastos da recente campanha, porém era permitido a cada região decidir qual seria a sua fé. A partir daí, o protestantismo ficou estabelecido em várias regiões suíças, e o catolicismo em outras.

A Teologia de Zwínglio
Não podemos nos deter aqui para expor detalhadamente a teologia do reformador suíço, que em todo caso coincidia em muitos pontos com a de Lutero. Portanto, nos limitaremos a assinalar os principais pontos de contraste entre ambos os reformadores.
A principal diferença entre ambos os reformadores se relaciona com o caminho que cada um deles seguiu para chegar às suas doutrinas. Enquanto Lutero foi uma alma atormentada que por fim encontrou sua paz na mensagem bíblica da justificação pela fé, Zwínglio foi um erudito humanista, que se dedicou a estudar as Escrituras porque elas eram a fonte da fé cristã, e parte do movimento humanista consistia precisamente em regressar às fontes da antiguidade. Isso, por sua vez, quer dizer que a teologia de Zwínglio é mais racionalista que a de Lutero.
Um bom exemplo disso é o modo pelo qual os dois reformadores discutiam a doutrina da predestinação. Ambos criam na predestinação, tanto porque ela é necessária para afirmar a justificação absolutamente gratuita, como também, porque se encontra nas epístolas de Paulo. Porém, enquanto para Lutero a predestinação era o resultado e a expressão de sua experiência de sentir-se impotente diante de seu próprio pecado e ver-se obrigado a declarar que sua salvação não era uma obra sua, mas de Deus; para Zwínglio a predestinação é algo que se deduz racionalmente do caráter de Deus. Para o reformador de Zurich, a melhor prova da predestinação é que, se Deus é onipotente e onisciente, tem de saber tudo e determinar tudo de antemão. Lutero não empregaria tais argumen¬tos, mas se contentaria em dizer que a predestinação é necessária devido a impotência do ser humano para libertar-se de seu próprio pecado. Os argumentos no estilo de Zwínglio pareceriam, a ele, com o produto da "porca razão" e não da revelação bíblica, nem da experiência do evangelho.
Também quanto ao alcance das reformas que deveriam ocorrer na igreja, os dois reformadores diferiam. Como já dissemos anteriormente, Lutero cria que bastava desfazer-se de tudo o que contradizia as Escrituras, enquanto Zwínglio insistia na necessidade de preservar somente o que se encontrasse explicitamente na Bíblia. Uma vez mais o que preocupava Lutero não eram as formas externas da religião, mas a proclamação do verdadeiro evangelho. Zwínglio cria que o retorno às fontes devia ser o princípio orientador da Reforma, e parte desse retorno consistia em desfazer-se de todas as inovações que tinham sido feitas no decorrer dos séculos, por mais insignificantes que fossem.
O racionalismo de Zwínglio mesclava-se com certos elementos procedentes do neoplatonismo, que se haviam introduzido no cristianismo séculos antes, com Justino, o Mártir; Orígenes, Agostinho e outros. O mais notável desses elementos é a tendência a menosprezar a criação material e estabele¬cer um profundo contraste entre ela e as realidades espirituais. Esta era uma das razões pelas quais Zwínglio insistia num culto simples, que não levasse o crente para o material mediante o uso exagerado dos sentidos. Lutero, por sua vez, afirmava a doutrina bíblica da criação como boa e, portanto, tratava de não exagerar no contraste entre o material e o espiritual. Para ele, o material não era um obstáculo, mas sim uma ajuda à vida espiritual.
As consequências disto se observa claramente na maneira pela qual os reformadores entendiam os sacramentos, particularmente a eucaristia. Enquanto Lutero cria que, ao realizar-se a ação externa pelo ser humano, tinha lugar uma ação interna e divina, Zwínglio não estava disposto a conceder-lhes tal eficácia, pois aquilo limitaria a liberdade do Espírito. Para Zwínglio, os elementos materiais, e a ação física que os acompanhava, não eram mais que símbolos ou sinais da realidade espiritual. Segundo ele, quando Jesus disse: "isto é o meu corpo", o que ele queria dizer era: "isto significa meu corpo".
Para os dois reformadores, suas doutrinas eucarísticas eram importantes, pois se relacionavam estreitamente com o restante de suas teologias. Por isso, quando as circunstâncias políticas fizeram que o magistrado Felipe de Hesse tratasse de unir os reformadores alemães com os suíços, a questão da presença de Cristo na ceia tornou-se o obstáculo intransponível. Isto teve lugar em 1529, quando por pedidos de Felipe se reuniram em Marburgo os principais chefes do movimento reformador, Lutero e Melanchthon, de Wittemberg; Bucero, de Estrasburgo; Ecolampádio, de Basileia e Zwínglio, de Zurich. Em todos os pontos principais pareciam estar de acordo, exceto no que se referia ao sentido e a eficácia da ceia. E ainda neste ponto talvez até se chegasse a um acordo, não fosse Melanchthon lembrar a Lutero que a doutrina de Zwínglio separaria ainda mais os luteranos dos católicos alemães, a quem Lutero e seus companheiros esperavam ganhar para sua causa. Algum tempo depois, quando o rompimento com os católicos se tornou irreversível, o próprio Melanchthon chegou a um acordo com os reformadores suíços e de Estrasburgo.
Em todo caso, não resta dúvidas de que a frase que se atribui a Lutero, no encontro de Marburgo, "não somos do mesmo espírito" refletia adequadamente a situação. A diferença entre os dois reformadores com respeito a ceia não era questão de detalhe sem importância, mas tinha a ver com o modo pelo qual os dois viam a relação entre a matéria e o espírito e, conseqúentemente, também com o modo pelo qual entendiam a revelação divina.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Hiatória da Igreja - 17

A Era dos Reformadores
Parte 4
Uma Década de Incertezas
Ao queimar a bula papal, Lutero estava se declarando em rebeldia contra as autoridades eclesiásticas. Em Worms, ao negar a se retratar, mostrou-se igualmente firme diante do poder do imperador. Este não estava disposto a permitir que um frade rebelde o desobedecesse e, portanto, se preparou para acrescentar a condenação civil à eclesiástica de que Lutero já fora objeto. Entretanto, isso não se tornou tão fácil, porque vários dos principais membros da dieta se opuseram ao imperador. Mas quando, finalmente, forçada pelo imperador, a dieta promulgou o edito que citamos no início, Lutero já se encontrava a salvo no castelo de Wartburgo.


O Exílio de Wartburgo
O que havia sucedido era que Frederico, o Sábio, inteirado de que o imperador forçaria a dieta a condenar Lutero, tinha-o colocado a salvo. Um grupo de homens armados, debaixo de instruções de Frederico, sequestrou o frade e levou-o até Wartburgo. Devido às suas próprias instruções, nem o próprio Frederico sabia onde o tinham escondido. Muitos o deram por morto, e corriam rumores de que fora morto por ordem do papa e do imperador.
Escondido em Wartburgo, Lutero deixou crescer sua barba, escreveu a alguns de seus colaboradores mais íntimos, dizendo-lhes que não temessem por seu paradeiro e dedicou-se a escrever. De todas as suas obras nesse período, nenhuma é tão importante quanto a tradução da Bíblia. O Novo Testamento, começado em Wartburgo, foi terminado dois anos mais tarde, e o Antigo Testamento demorou mais de dez (10) anos. Pela importância da obra, bem valia o tempo empregado nela, pois a Bíblia de Lutero, além de dar um novo ímpeto ao Movimento Reformador, deu forma ao idioma e, portanto, à nacionalidade alemã.
Enquanto Lutero estava no exílio, vários de seus colaboradores se ocuparam em continuar o trabalho reformador em Wittenberg. Deles, os mais destacados foram Carlstadt e Felipe Melanchthon, um jovem professor de grego, de temperamento muito diferente de Lutero, porém convencido das opiniões de seu colega. Até então, a reforma que Lutero havia preconizado não tomara forma concreta na vida religiosa de Wittenberg. Lutero era um homem tão temente a Deus que tinha vacilado em dar os passos concretos que seguiam sua doutrina. Porém agora, na sua ausência, estes passos foram dados rapidamente, um após o outro. Muitos monges e freiras deixaram seus conventos e se casaram. O culto foi simplificado e começou-se a usar o alemão ao invés do latim. Aboliram as missas pelos mortos. Cancelaram os dias de jejum e abstinência. Melanchthon começou a oferecer a comunhão de ambos os modos, isto é, deu o cálice aos leigos.
No princípio Lutero viu tudo isso com agrado. Porém, logo começou a ter dúvidas sobre o que estava acontecendo em Wittenberg. Quando Carlstadt e vários de seus seguidores se dedicaram a derrubar imagens. Lutero lhes aconselhou moderação. Então apareceram em Wittenberg três leigos procedentes da vizinha Zwickau, que diziam ser profetas. Segundo eles, Deus lhes falava diretamente e não tinham necessidade das Escrituras. Melanchthon não sabia o que responder a tais pretensões e pediu conselho ao exilado em Wartburgo.
Por fim Lutero decidiu que o que estava em jogo era nada menos que o evangelho e regressou a Wittenberg. Antes de dar esse passo, levou-o ao conhecimento de Frederico, o Sábio, porém deixando claramente que não esperava sua proteção, mas que confiava unicamente em Deus, em cujo serviço estava envolvido.

As Circunstâncias Políticas
Mesmo que Lutero não tivesse feito cálculos nesse sentido, o fato é que a razão pela qual Frederico pôde mante-lo escondido no castelo de Wartburgo, e a razão pela qual ele mesmo pôde regressar a Wittenberg sem ser preso e morto, foi a condição política do momento.
Carlos V estava disposto a arrancar pela raiz a "heresia" luterana. Porém ele se via ameaçado por outros inimigos mais poderosos. No meio de tais circunstâncias, o Imperador não poderia permitir-se ao luxo de molestar seus súditos alemães com a causa de quem lhe parecia ser um frade cabeçudo.
O grande inimigo de Carlos V era Francisco l, da Franca. Este rei, que no princípio de seu reinado tinha sido, sem dúvida alguma, o monarca mais poderoso da Europa, via com desgosto o crescente poder do rei da Espanha e Imperador da Alemanha. Pouco antes da dieta de Worms, os dois rivais haviam-se esbarrado em Navarra. Foi nesse encontro que Inácio de Loyola recebeu o germe que posteriormente faria dele o grande reformador católico. Durante o mesmo ano de 1521, e até o de 1525, Carlos V se viu envolvido em guerras quase constantes com Francisco l. E ao final, na batalha de Pávia, o rei da França caiu prisioneiro das tropas imperiais, e o conflito pareceu chegar ao fim.
Nesse meio tempo, somente uns meses depois da dieta de Worms, Leão X havia morrido, e Carlos V tinha feito eleger como papa o seu tutor, Adriano de Utrecht, que tomou o nome de Adriano VI. Esse papa, ao mesmo tempo que desejava reformar a igreja, não estava disposto a que se discutissem suas doutrinas. Portanto, implantou em Roma uma vida austera e começou uma reforma que teria tido bom êxito, se não fosse eclipsada pela que havia começado na Alemanha. Mas Adriano morreu um ano e meio depois de ter sido feito papa, e suas reformas não deixaram raízes. Seu sucessor, Clemente VII, era um homem muito parecido com Leão X, mais interessado na arte e na política italiana que nos assuntos da igreja. E por isso logo houve desentendimentos entre o Imperador e o novo papa.
Carlos V firmou em Madrid um tratado de paz com seu prisioneiro Francisco e, com base nesse tratado, colocou-o em liberdade. Todavia, o que fora estipulado na paz de Madrid era demasiado oneroso e até vergonhoso para a França e, assim, rapidamente Francisco fez com Clemente VII um pacto contra Carlos V. Este último cria poder contar com a ajuda da França e do papado para extirpar a heresia luterana e para deter o avanço dos turcos, mas inesperadamente seus dois supostos aliados lhe declararam guerra.
Em 1527, as tropas imperiais, compostas na maioria de espanhóis e alemães, invadiram a Itália e se dirigiram para Roma. A cidade pontifícia estava indefesa, e o papa teve de refugiar-se no castelo de São Angelo enquanto os invasores saqueavam a cidade. Visto que muitos deles eram luteranos, para eles o saque tomou cores religiosas: era Deus que finalmente tomava vingança contra o anti-cristo. A situação do papa era desesperadora quando, no princípio de 1528, um exército francês, com o apoio econômico da Inglaterra, foi socorrê-lo. As tropas imperiais viram-se obrigadas a recuar, e teriam sido aniquiladas, mas uma epidemia forçou os franceses abandonarem a luta. Em 1529, Carlos V conseguiu firmar a paz, primeiro com o papa e depois com o rei da França.
Depois de tudo, Carlos V parecia estar livre para enfrentar-se com o luteranismo, quando uma nova ameaça obrigou-o a retardar essa ação mais uma vez. Os turcos, sob o comando de Soleimán lançaram-se sobre Viena, a capital das possessões austríacas do Imperador. Diante dessa ameaça, todos os alemães se uniram, e a questão religiosa foi deixada de lado. Viena defendeu-se valentemente, e Soleimán foi obrigado a levantar o sítio quando soube que o exército alemão se aproximava.
Foi então que, depois de longa ausência, Carlos V regressou à Alemanha. Um dos seus principais projetos era acabar com o luteranismo. Porém durante esse tempo todo, haviam ocorrido na Alemanha acontecimentos de grande importância.

As Rebeliões dos Nobres e dos Camponeses
Em 1522 e 1523, a baixa nobreza tinha-se sublevado, sob a direção de Franz von Sickingen. Durante muito tempo essa classe tinha visto desaparecer sua fortuna, e muitos de seus membros culpavam Roma por isso. Entre esses cavaleiros, sem terras e sem dinheiro, o nacionalismo era fortíssimo. Muitos se somaram aos seguidores de Lutero, em quem viam o campeão nacional. Alguns, como Ulrico von Hutten, estavam convencidos da verdade da pregação de Lutero, ainda que quisessem levá-la mais longe. Quando por fim os cavaleiros se rebelaram e atacaram Tréveris, foram derrotados decisivamente pelos príncipes que aproveitaram essa conduta para apoderar-se das poucas terras que os pequenos nobres ainda possuíam. Sickingen morreu em combate, e Hutten se exilou na Suíça, onde morreu pouco depois. Tudo isso foi visto por Lutero e seus colegas mais próximos como uma grande tragédia, e uma prova mais do que necessária de se submeter às autoridades civis.
Pouco depois, em 1525, estourou a rebelião dos campo¬neses. Estes tinham sofrido por várias décadas uma opressão sempre crescente, e já haviam ocorrido rebeliões em 1476,1491, 1498, 1503 e 1514. Porém nenhuma delas teve a magnitude da de 1525.
Nesta nova rebelião, um fator veio somar-se às demandas econômicas dos camponeses. Esse novo fator foi a pregação dos reformadores. Mesmo que Lutero não cria que sua pregação devesse ser aplicada em termos políticos, houve muitos que não estiveram de acordo com ele nesse ponto. Um deles foi Tomás Muntzer, natural de Zwickau, cujas primeiras doutrinas se pareciam muito com a dos profetas de Zwickau. Segundo ele, o que importava não era o texto das Escrituras, mas sim a revelação presente do Espírito Santo. Porém esta doutrina espiritualista tinha um aspecto altamente político, pois Munt¬zer cria que quem fosse nascido de novo por obra do Espírito devia unir-se em uma comunidade teocrática, para trazer o reino de Deus. Lutero havia obrigado Muntzer a abandonar a região, porém o fogoso pregador regressou e uniu-se à rebelião dos camponeses.
Mesmo à parte de Muntzer, esta nova rebelião tinha um tom religioso. Em seus "doze artigos", os camponeses apresentavam várias demandas econômicas, mas outras eram religiosas. Porém tratavam de baseá-las todas nas Escrituras, e seu último artigo declarava que, caso fosse provado que algum de seus pedidos era contrário às Escrituras, ele seria retirado. Assim, mesmo que Lutero não tenha visto essa relação, têm razão os historiadores que dizem que a rebelião dos camponeses se deve em boa parte à pregação de Lutero e seus seguidores.
Em todo caso, Lutero não sabia como responder a essa nova situação. Possivelmente sua doutrina dos dois reinos era mais difícil de entender do que praticar. Quando primeiramen¬te leu os "Doze Artigos", se dirigiu aos príncipes, dizendo-lhes que o que se pedia era justo. Mas quando a rebelião tomou forma, e os camponeses se armaram, Lutero tratou de dissuadi-los e posteriormente instou aos príncipes que tomas¬sem medidas repressivas. Ainda, depois, quando a rebelião foi sufocada no sangue, o Reformador exigiu dos príncipes misericórdia para com os vencidos. Mas suas palavras não foram ouvidas, e calcula-se que mais de 100.000 camponeses foram mortos.
As consequências de tudo isso foram também funestas para a causa da Reforma. Os príncipes católicos culparam o luteranismo pela rebeldia e, a partir de então, proibiram todo intento de se pregar a reforma em seus territórios. E quanto aos camponeses, muitos deles abandonaram o luteranismo e regressaram a velha fé, ou se tornaram anabatistas.

O Rompimento com Erasmo
Enquanto a Alemanha se via sacudida por todos estes acontecimentos, os católicos moderados se viram obrigados a tomar partido entre Lutero e seus opositores. O mais famoso dos humanistas, Erasmo tinha visto com simpatia o começo da reforma luterana, porém a discórdia que tinha surgido dela lhe repugnava. Por muito tempo Erasmo evitou declarar-se contra Lutero, pois seu espírito pacífico odiava as controvérsias. Po¬rém, no fim a pressão foi tal que não era possível evitar o rompimento com um ou outro lado. Erasmo tinha sido sempre bom católico, mesmo que lhe doesse ver a ignorância e a corrupção do clero. Portanto, quando se viu obrigado a decidir, não havia outra alternativa senão optar pela religião tradicional.
Em vez de atacar Lutero no que se referia às indulgências, o sacrifício da missa, ou a autoridade do papa, Erasmo escolheu como campo de batalha a questão do livre arbítrio. Sua doutrina da justificação pela fé, que é dom de Deus, e seus estudos de Agostinho e São Paulo, tinham levado Lutero a afirmar a doutrina da predestinação. Neste ponto, Erasmo atacou-o com um tratado sobre o livre arbítrio.
Lutero respondeu com sua veemência característica, embora agradecesse a Erasmo o haver centralizado a polémica num assunto tão fundamental, e não sobre questões periféricas tais como a venda das indulgências, ou as relíquias dos santos. Para Lutero, a idéia do livre arbítrio humano que tinham os filósofos, e que era comum entre os moralistas da sua época, não se precavia do poder do pecado. O pecado humano é tal que não temos poder algum para nos livrar dele. Só mediante a ação de Deus podemos ser justificados e libertos do poder do maligno. E, mesmo assim continuamos sendo pecadores. Portanto, nossa vontade nada pode por si mesma quando se trata de servir a Deus.
Essa controvérsia entre Lutero e Erasmo com respeito ao livre arbítrio fez com que muitos humanistas abandonassem a causa luterana. Outros, como Felipe Melanchthon, continuaram apoiando Lutero mesmo sem romper suas relações cor¬diais com Erasmo. Porém esses eram poucos e, pode-se dizer, portanto, que a polémica sobre o livre arbítrio marcou o rompimento definitivo entre a reforma luterana e a humanista.

As Dietas do Império
Enquanto tudo isso acontecia e, na ausência do Imperador, era necessário seguir governando o Império. Visto que Carlos V teve de ausentar-se imediatamente depois da dieta de Worms, e que o edito dessa dieta havia sido obra sua, a Câmara Imperial que governava em seu lugar não tratou de aplicá-lo. Quando se reuniu de novo a dieta em Nuremberg, em 1523, foi adotada uma política de tolerância para com o luteranismo, apesar dos protestos dos legados do papa e do Imperador.
Em 1526, quando Carlos V viu-se obrigado a enfrentar de uma só vez o papa e o rei da França, a dieta de Spira declarou que, devido às novas circunstâncias, o edito de Worms não era válido, e que, portanto, cada estado tinha liberdade de seguir o curso religioso que sua consciência ditasse. Vários dos territórios do Sul da Alemanha e mais a Áustria, optaram pela fé católica, todavia, muitos outros preferiram a luterana. A partir daí, a Alemanha foi transformada num mosaico religioso.
Em 1529, a segunda dieta de Spira tomou um curso muito distinto. Naquele momento o Imperador era mais poderoso e vários príncipes que antes tinham sido moderados passaram para o lado católico. Ali se reafirmou o edito de Worms. Foi então que os príncipes luteranos protestaram formalmente e, por isso, a partir desse momento, começaram a chamá-los "protestantes".
Finalmente, Carlos V regressou à Alemanha em 1530, para a celebração da dieta de Augsburgo. Na dieta de Worms, o Imperador não tinha desejado ouvir sobre o que tratava o debate. Porém agora, tendo em vista o curso dos acontecimentos, pediu que lhe apresentassem uma exposição ordenada dos pontos em discussão. Esse documento, preparado primeiramente por Melanchthon, é o que se conhece como a "Confissão de Augsburgo". No princípio representava somente os protestantes da Saxônia. Mas, pouco a pouco, outros foram firmando-o e logo chegou a servir para apresentar ao Imperador uma frente quase que totalmente unida (havia outras duas confissões minoritárias que não concordavam com esta da maioria dos protestantes).
Novamente, o Imperador encolerizou-se e deu aos protestantes um prazo até abril do ano seguinte para se retratarem.

A União de Esmalcalda
Uma vez mais, o protestantismo estava ameaçado de morte. Se o Imperador reunisse seus recursos espanhóis aos dos príncipes alemães católicos, não seria difícil arrasar com qualquer dos príncipes protestantes e impor o catolicismo em seus territórios. Diante dessa ameaça, os governantes dos territórios protestantes se reuniram para tomar uma ação conjunta. Depois de muito vacilar, Lutero chegou à conclusão de que era lícito pegar as armas em defesa própria contra o Imperador. Os territórios protestantes formaram então a União de Esmalcalda, cujo propósito era fornecer resistência ao edito imperial, se Carlos V decidisse impô-lo pelas armas.
A luta prometia ser longa e custosa, quando uma vez mais a política internacional obrigou Carlos V a adiar toda a ação contra os protestantes. Francisco l se preparava de novo para a guerra, e os turcos davam mostras de querer vingar o fracas¬so da campanha anterior. Sob tais circunstâncias, Carlos V tinha que contar com o apoio de todos os seus súditos alemães. Assim, começaram as negociações entre protestantes e católicos e se chegou, finalmente, à paz de Nuremberg, firmada em 1532.
Segundo esse acordo, era permitido aos protestantes continuar com sua fé, porém estaria proibido a eles estendê-la a outros territórios. O edito Imperial de Augsburgo seria suspenso, e os protestantes ofereciam ao Imperador seu apoio contra os turcos, ao mesmo tempo que se comprometiam a não ir além da Confissão de Augsburgo.
Como antes, as condições políticas tinham operado em prol do protestantismo, que continuava estendendo-se para novos territórios, apesar do que fora firmado em Nuremberg.

História da Igreja 16

A Era dos Reformadores

Parte 3
A Teologia de Lutero
Antes de continuar narrando a vida de Lutero e seu trabalho reformador, devemos nos deter para considerar a sua teologia que foi a base de sua vida e de sua obra. Ao chegar o momento da dieta de Worms, a teologia do Reformador havia alcançado sua maturidade. Então a partir daí, o que Lutero fez foi simplesmente elaborar as consequências dessa teologia. Portanto, esse parece ser o momento adequado para interrom¬per a narrativa e dar ao leitor uma idéia mais adequada da visão que Lutero tinha da mensagem cristã. Ao contarmos sua perigrinação espiritual, dissemos algo sobre a doutrina da justificação pela fé. Porém essa doutrina, apesar de ser fundamental, não é a totalidade da teologia de Lutero.

A Palavra de Deus
É de todos sabido que Lutero tratou de fazer da Palavra de Deus o ponto de partida e a autoridade final de sua teologia. Como professor das Sagradas Escrituras, a Bíblia tinha para ele qrande importância, e nela descobriu a resposta para suas angústias espirituais. Mas isso não quer dizer que Lutero fosse um biblicista rígido, pois para ele a Palavra de Deus é muito mais que a Bíblia. A Palavra de Deus é nada menos que Deus mesmo.
Essa última afirmação se baseia nos primeiros versículos do Evangelho de João, onde se diz que: "no princípio era o Verbo (ou Palavra), e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus". As Escrituras nos dizem que, num sentido estrito, a Palavra de Deus é Deus mesmo, a segunda pessoa da Trindade, o Verbo que se fez carne e habitou entre nós. Assim, quando Deus"fala, o que sucede não é simplesmente que nos comunica certa informação, mas que também e, sobretudo, que Deus atua. Isto pode ser visto também no livro de Génesis, onde a Palavra de Deus é a força criadora: "Disse Deus...". Assim quando Deus fala, Deus cria o que pronuncia. Sua Palavra além de dizer-nos algo, faz algo em nós e em toda a criação. Essa Palavra se encarnou em Jesus Cristo que, por sua vez, é a revelação máxima de Deus e sua máxima ação. Em Jesus, Deus se nos deu a conhecer. Porém, também nele venceu os poderes do maligno que nos sujeitavam. A revelação de Deus é também a vitória de Deus.
A Bíblia é, então, a Palavra de Deus, não porque seja infalível, ou porque seja um manual de verdades que os teólo¬gos podem utilizar em seus debates entre si. A Bíblia é a Palavra de Deus porque nela chega Jesus Cristo até nós. Quem lê a Bíblia e não encontra nela Jesus Cristo não leu a Palavra de Deus. Por isso, Lutero, ao mesmo tempo que insistia na autoridade das Escrituras, podia fazer comentários pejorativos sobre certas partes dela. A epístola de Tiago, por exemplo, parecia-lhe "pura palha", pois nela não se trata do evangelho, mas sim de uma série de regras de conduta. Mesmo que não estivesse disposto a tirar tais livros do Cânon, Lutero confessava abertamente que lhe era difícil ver Jesus Cristo neles e que, portanto, tinham escasso valor para ele.
Essa idéia da Palavra de Deus como Jesus Cristo era a base da resposta de Lutero a um dos principais argumentos dos católicos. Estes afirmavam que, como era a igreja quem tinha determinado quais os livros que deviam formar o cânon, a igreja tinha autoridade sobre as Escrituras. A resposta de Lutero era que, nem a igreja havia criado a Bíblia, nem a Bíblia havia criado a igreja, mas que o evangelho é que havia criado. A autoridade final não está na Bíblia, nem na igreja, mas no evangelho, na mensagem de Jesus Cristo, que é a Palavra de Deus encarnada. Posto que a Bíblia dá um testemunho mais fidedigno desse evangelho do que a igreja corrompida do papa, e do que as tradições medievais, a Bíblia tem autoridade sobre a igreja e sobre essas tradições, mesmo que seja certo que nos primeiros séculos foi a igreja que reconheceu o evangelho em certos livros, e não em outros, e determinou assim o conteúdo do cânon bíblico.

O Conhecimento de Deus
Lutero concorda com boa parte da teologia tradicional ao afirmar que é possível ter certo conhecimento de Deus por meios puramente racionais ou naturais. Esse conhecimento permite ao ser humano saber que Deus existe e distinguir entre o bem e o mal. Os filósofos da antiguidade o tiveram, e as leis romanas mostram que de modo geral os pagãos sabiam distinguir entre o bem e o mal. Além disso, os filósofos chegaram à conclusão de que há um Ser Supremo, do qual todas as coisas derivam sua existência.
Porém esse não é o verdadeiro conhecimento de Deus. A Deus não se conhece como quem usa uma escada para subir um telhado. Todos os esforços da mente humana para elevar-se ao céu e conhecer a Deus são totalmente inúteis.
É isso que Lutero chama de "teologia da glória". Tal teologia pretende ver Deus tal como é, em sua própria glória, sem ter em conta a distância enorme que separa o ser humano de Deus. O que a teologia da glória faz no final das contas é pretender ver Deus naquelas coisas que nós humanos consi¬deramos mais valiosas e, portanto, fala do poder de Deus, da glória de Deus, da bondade de Deus. Porém tudo isso não é mais do que fazer Deus à nossa própria imagem e pretender que Deus seja como nós mesmos desejamos que Ele seja.
O fato é que Deus em sua revelação se nos dá a conhecer de um modo muito distinto. A suprema revelação de Deus tem lugar na cruz de Cristo e, portanto, Lutero propõe que em lugar da teologia da glória, se siga o caminho da "teologia da cruz”. O que essa teologia busca é ver a Deus, não onde nós querermos vê-Lo, nem como nós desejamos que Ele se]a, mas sim onde Deus se revela, e como Ele mesmo se revela, isto é, na cruz. Ali Deus se manifestou na debilidade, no sofrimento, no escândalo. Isso quer dizer que Deus atua de um modo radicalmente distinto do que poderia se esperar. Deus, na cruz, destroi todas as nossas idéias preconcebidas da glória divina.
Quando conhecemos a Deus na cruz, o conhecimento anterior, isto é, tudo o que sabíamos acerca de Deus mediante a razão, ou pela lei da consciência, cai por terra. O que agora conhecemos de Deus é muito distinto do outro suposto conhecimento de Deus em sua glória.

A Lei e o Evangelho
A Deus conhece-se verdadeiramente em sua revelação. Porém, em sua própria revelação, Deus se nos dá a conhecer de dois modos, a saber: a lei e o evangelho. Isso não quer dizer simplesmente que primeiro vem a lei e depois o evangelho. Nem quer dizer tampouco que o Antigo Testamento se refira à Lei, e o Novo Testamento ao evangelho. O que quer dizer é muito mais profundo. O contraste entre a Lei e o evangelho dá a entender que, quando Deus se revela, essa revelação é de uma só vez, palavra de condenação e de graça.
A justificação pela fé, a mensagem do perdão gratuito de Deus, não quer dizer que Deus seja indiferente diante do pecado. Não se trata simplesmente de que Deus nos perdoa porque, no final das contas, nosso pecado não lhe faça mal. Pelo contrário, Deus é santo, e o pecado Lhe causa repugnância. Quando Deus fala, o contraste entre sua santidade e o nosso pecado nos esmaga, e essa é a lei.
Porém, ao mesmo tempo, e até às vezes na mesma Palavra, Deus pronuncia seu perdão para conosco. Esse perdão é o evangelho, e é tão maior, exatamente porque a lei é esmaga¬dora. Não se trata, então, de um evangelho que nos dê a entender que o nosso pecado não tem importância, mas de um evangelho que, precisamente diante da gravidade do pecado, se torna mais surpreendente.
Quando escutamos essa palavra de perdão, a lei, que antes nos era onerosa e até odiosa, se nos torna doce e aceitável. Comentando sobre o evangelho de João, Lutero nos diz:
"Antes não havia na lei nenhuma delícia para mim. Porém, agora, descobri que a Lei é boa e saborosa, e que me tem sido dada para que eu viva, e agora encontro nela meu prazer. Antes me dizia o que devia ser feito. Agora começo a ajustar-me nela. E por isso agora adoro, louvo e sirvo a Deus".
Esta dialética constante entre a lei e o evangelho quer dizer que o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador. Não se trata de que o pecador deixe de ser pecador quando é justificado. Pelo contrário, quem recebe a justificação pela fé descobre nela mesma o quanto é pecador, e não por ser justificado é que deixa de pecar. A justificação não é a ausência do pecado, mas o fato de que Deus nos declara justos, ainda que em meio ao nosso pecado, de igual modo ao evangelho que acontece sempre em meio à lei.

A Igreja e os Sacramentos
Lutero não foi nem o individualista nem o racionalista que muitos desejam. Durante o século XIX, quando o individualismo e o racionalismo se fizeram populares, muitos historiadores deram a impressão de que Lutero havia sido um dos precurso¬res de tais correntes. Isso ia frequentemente unido com o intento de mostrar a Alemanha como a grande nação, mãe da civilização moderna e de tudo quanto há nela de valioso. Lutero se converteu, então, no grande herói alemão fundador do modernismo.
Porém tudo isso não se ajusta à verdade histórica. O fato é que Lutero distanciou-se muito de ser racionalista. Para pro¬varmos basta observarmos suas frequentes referências à "porca razão" e "essa rameira, a razão". E quanto ao seu suposto individualismo, a verdade é que este era mais poderoso entre os renascentistas italianos do que no Reformador alemão, e que, em todo caso, Lutero dava demasiada importância à igreja para ser um verdadeiro individualista.
Apesar de seu protesto contra as doutrinas comumente aceitas e de sua rebeldia contra as autoridades da igreja romana, Lutero sempre pensou que a igreja era parte essencial da mensagem cristã. Sua teologia não era a de uma comunhão direta do indivíduo com Deus, mas sim de uma vida cristã no meio de uma comunidade de fiéis, a qual repetidamente cha¬mou de "igreja mãe".
Se bem que seja certo que todos os cristãos, pelo simples fato de serem batizados, se tornam sacerdotes, isso não quer dizer que cada um de nós deva isolar-se em si mesmo para chegar a Deus. Certamente, há uma comunicação direta com o Criador, mas há também uma responsabilidade orgânica. O ser sacerdotes não quer dizer que o sejamos somente para nós mesmos, mas que o somos também para os demais, e os outros o são para nós. Em lugar de abolir a necessidade da igreja, a doutrina do sacerdócio universal dos crentes a aumentava. Claro está que não necessitamos já de um sacerdócio hierárquico que seja nosso único meio de chegarmos a Deus. Porém necessitamos desta comunidade de crentes, o corpo de Cristo, dentro da qual cada membro é sacerdote dos demais e nutre a cada um deles. Sem essa relação com o corpo, o membro não pode continuar vivendo.
Dentro dessa igreja, a Palavra de Deus chega até nós pelos sacramentos. Para que um rito seja um verdadeiro sacramento tem de ter sido instituído por Jesus Cristo, e há de ser um sinal físico das promessas evangélicas. Portanto, há somente dois sacramentos: o batismo e a ceia. Os demais ritos que recebem esse nome, mesmo que possam ser benéficos, não são sacramentos do evangelho.
O batismo é o sinal da morte e ressurreição do cristão com Jesus Cristo. Porém é muito mais que um sinal, pois por ele e nele fomos feitos membros do corpo de Cristo. O batismo e a fé andam estreitamente unidos, pois o rito sem a fé não é válido. Mas isso não deve ser entendido no sentido de que devemos ter fé antes de sermos batizados e que, assim, não se possa batizar as crianças. Se dissermos tal coisa, cairíamos no erro daqueles que crêem que a fé é uma obra humana, e não um dom de Deus. Na salvação, a iniciativa é sempre de Deus, e isto é o que anunciamos ao batizar crianças tão pequeninas que são incapazes de entender do que se trata. Além disso, o batismo não é somente o começo da vida cristã, mas é o fundamento, ou o contexto, dentro do qual toda essa vida tem lugar. O batismo é válido, não só no momento de ser administrado, mas para toda a vida. Por ele se conta que o próprio Lutero quando se sentia fortemente tentado, exclamava: "sou batizado". Em seu batismo estava a força para resistir a todas as investidas do maligno.
A ceia é o outro sacramento da fé cristã. Lutero rechaçou boa parte da teologia católica sobre a ceia. Particularmente, se opôs às missas privadas, à ceia como repetição do sacrifício de Cristo, à ideia de que a missa confere méritos, e à doutrina da transubstanciação. Mas tudo isso não o levou a pensar que a ceia era de pouca importância. Pelo contrário, para ele a eucaristia sempre continuou junto com a pregação, como o centro do culto cristão.
A questão de como Cristo está presente no sacramento foi motivo de controvérsias, não só com os católicos, mas também com os protestantes. Lutero rechaçava categoricamente a doutrina da transubstanciação, que lhe parecia demasiadamente presa a categorias aristotélicas e, portanto, pagãs, e que, além do mais, era a base da idéia da missa como sacrifício meritório, que se opunha radicalmente à doutrina da justificação pela fé.
Porém, por outro lado, Lutero também não estava dispos¬to a dizer que a ceia era um mero símbolo de realidades espirituais. As palavras de Jesus ao instituir o sacramento: "isto é meu corpo", lhe pareciam completamente claras. Portanto, segundo Lutero, na ceia os fiéis participam verdadeira e literalmente do corpo de Cristo. Isto não indica, como na transubstanciação, que o pão se converta em corpo, e o vinho em sangue. O pão continua sendo pão, e o vinho, vinho. Todavia, agora estão também neles o corpo e o sangue do Senhor, e o crente se alimenta deles ao tomar o pão e o vinho. Se bem que mais tarde se deu a essa doutrina o nome de "consubstanciacão", Lutero nunca a chamou assim e preferia chamá-la de a presença de Cristo em, com, debaixo, ao redor e por trás do pão e do vinho.
Nem todos os que se opunham às doutrinas tradicionais concordavam com Lutero, nesse ponto, que logo se tornou um dos fatores mais divisionistas entre eles. Caristadt, o colega de Lutero, na universidade de Wittenberg, que participou com ele no debate de Leipzig, dizia que a presença de Cristo no sacramento era simbólica e que, quando Jesus disse "isto é o meu corpo", estava apontando para si mesmo, e não para o pão. Zwínglio, de quem trataremos mais adiante, sustentava opiniões parecidas, se bem que com melhores argumentos bíblicos. Posteriormente, essa questão foi um dos principais motivos de divisão entre os luteranos e reformados ou calvinistas.

Os Dois Reinos
Antes de terminar esta brevíssima exposição dos principais pontos da teologia de Lutero, devemos nos referir ao modo pelo qual o Reformador entendeu a relação entre a igreja e o estado. Segundo ele, Deus tinha estabelecido dois reinos, um sob a lei e outro sob o evangelho. O estado opera debaixo da lei e seu principal propósito é pôr limites ao pecado humano. Sem o estado, os maus não teriam freios. Os crentes por outra parte, pertencem ao segundo reino e estão debaixo do evangelho. Isso quer dizer que os crentes não vão esperar que o estado apoie a sua fé e persiga aos hereges. Além disso, não há razão nenhuma para que esperemos que os governan¬tes sejam cristãos. Como governantes, sua obediência se deve à lei e não ao evangelho. No reino do evangelho, as autoridades civis não têm poder algum. E no que se refere a esse reino, os cristãos não estão sujeitos ao estado. Porém, não esqueçamos que os crentes, ao mesmo tempo que são justificados pela fé, continuam sendo pecadores. Portanto, enquanto somos pecadores, todos estamos sujeitos ao estado.
O que isso quer dizer em termos concretos é que a verda¬deira fé não tem de impôr-se mediante autoridade civil, mas mediante a proclamação da Palavra. Lutero se opôs repetidamente a que os príncipes que o apoiavam empregassem sua autoridade para defender sua causa e somente depois de muito vacilar, por fim lhes disse que podiam apelar para as armas em defesa própria contra aqueles que pretendiam esma¬gar a Reforma.
Isso não quer dizer que Lutero foi pacifista. Quando, como veremos mais a frente, os turcos ameaçaram a cristandade, Lutero chamou seus seguidores às armas. E quando diversos grupos e movimentos, tais como os campo¬neses rebeldes e os anabatistas, lhe pareciam subversivos, não vacilou em afirmar que as autoridades civis tinham o dever de esmagá-los. O que se quer dizer é que Lutero sempre teve dúvidas sobre como a fé devia relacionar-se com a vida civil e política. E essas vacilações têm continuado a aparecer em boa parte da tradição luterana até o século XXI.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

História da Igreja 15

A Era dos Reformadores
Parte 2
Martinho Lutero: O Caminho para a Reforma
Poucos personagens na história do cristianismo têm sido discutidos tanto. ou tão calorosamente, como Martinho Lutero. Para uns, Lutero é o "bicho-papão" que destruiu a unidade da igreja, a besta selvagem que pisou na vinha do Senhor, um monge renegado que se dedicou a destruir as bases da vida monástica. Para outros, ele é o grande herói que fez voltar, uma vez mais, a pregação do evangelho puro, o campeão da fé bíblica, o reformardor de uma igreja corrompida. Nos últimos anos, devido em parte ao novo espírito de compreensão entre os cristãos, os estudos sobre Lutero têm sido muito mais equilibrados e, tanto católicos como protestantes, se têm achado na obrigação de corrigir certas opiniões formadas, não pela investigação histórica, mas pelo fragor da polémica. Hoje, são poucos os que duvidam da sinceridade de Lutero, e há muitos católicos que afirmam que o protesto do monge agostiniano foi mais do que justificável e que, em muitos pontos, ele tinha razão. Paralelamente a isso, são poucos os historiadores protestantes que seguem vendo em Lutero um herói sobrehumano que reformou o cristianismo por si só, e cujos pecados e erros foram de menor importância.
Ao estudarmos sua vida e o ambiente em que ela se desenvolveu, Lutero aparece como um homem por vezes rude, mas também erudito, cujo impacto se deveu a dar à sua erudição uma conotação e aplicação populares. Era indubitavelmente sincero até a paixão e, frequentemente, vulgar nas suas expressões. Sua fé era profunda e nada lhe importava mais do que ela. Quando se convencia de que Deus queria que tomasse certo caminho, o seguia até as últimas consequências e não como alguém que, pondo a mão no arado, olha para trás. Seu uso da linguagem, tanto o latim como o alemão, era magistral, ainda que, quando um ponto lhe parecia ser de grande importância, ele o reprisava até o exagero. Uma vez convencido da verdade da sua causa estava disposto a enfrentar os mais poderosos senhores do seu tempo. Porém, essa mesma profundidade de convicção, essa paixão, essa tendência ao exagero, o levaram a tomar atitudes que depois ele e seus seguidores tiveram de deplorar.
Por outro lado, o impacto que Lutero causou se deve em boa parte às circunstâncias que estavam fora do alcance de sua mão e das quais ele mesmo, frequentemente, não se aper¬cebia. A invenção da imprensa fez com que suas obras fossem difundidas de uma maneira que tinha sido impossível fazê-lo poucas décadas antes. O crescente nacionalismo alemão, do qual
ele mesmo era até certo ponto participante, se prestou a ser um apoio inesperado e muito valioso. Os humanistas, que sonhavam com uma reforma segundo a concebia Erasmo, ainda que frequentemente não pudessem aceitar o que lhes parecia ser os exageros e a rudeza do monge alemão, tão pouco estavam dispostos a que o esmagassem sem antes ser escutado, como havia ocorrido no século anterior com João Huss. As circunstâncias políticas no começo da Reforma foram um dos fatores que impediram que Lutero fosse condenado imediatamente e, quando por fim, as autoridades eclesiásticas e políticas se viram livres para agir, já era demasiado tarde para calar o seu protesto.
Ao estudar a vida de Lutero e também sua obra, uma coisa fica bem clara: a tão esperada reforma se produziu, não porque Lutero ou outra pessoa se havia proposto a isso, mas porque ele chegou no momento oportuno e porque nesse momento o Reformador, e muitos outros junto dele, estiveram dispostos a cumprir sua responsabilidade histórica.

A Peregrinação Espiritual
Lutero nasceu em 1483, em Eisleben, Alemanha, onde seu pai, de origem camponesa, trabalhava nas minas. Sete anos antes, Isabel havia herdado o trono de Castela. Se bem que isso não se relaciona diretamente com a juventude de Lutero, pois Castela era então somente um pequeno reino a centenas de quilómetros de distância, nós o mencionamos para que o estudnte veja que, antes do nascimento de Lutero, já se havia começado a tomar, na Espanha, as medidas reformado¬ras que mencionamos anteriormente.
A infância do pequeno Martinho não foi feliz. Seus pais eram extremamente severos com ele e, muitos anos mais tarde, ele mesmo contava com amargura alguns dos castigos que lhe tinham sido impostos. Durante toda a sua vida foi presa de períodos de depressão e angústia profunda, e há quem pense que isso se deve em boa parte à austeridade excessiva exigida na sua infância. Na escola, suas primeiras experiências não foram melhores, pois também posteriormente se queixava de como o tinham golpeado por não saber suas lições. Se bem que não se deva exagerar em tudo isso, não resta dúvida que essas situações deixaram marcas permanentes no caráter do jovem Martinho.
Em julho de 1505, pouco antes de completar os 22 anos de idade, Lutero ingressou no mosteiro agostiniano de Erfurt. As causas que o levaram a dar esse passo foram muitas. Duas semanas antes, quando se achava no meio de uma tormenta elétrica, sentiu sobremaneira o temor da morte e do inferno e prometeu a Santa Ana que se tornaria um monge. Algum tempo depois, ele mesmo diria que os rigores do seu lar o levaram ao mosteiro. Por outro lado, seu pai havia decidido que seu filho se tornasse um advogado e fazia grandes esforços para lhe dar uma educação adequada a essa carreira. Lutero não queria ser advogado e, portanto, é muito possível que, ainda sem saber, havia interposto a vocação monástica entre seus próprios desejos e os projetos de seu pai. Este último se mostrou profundamente irado ao receber notícias do ingresso de Martinho no mosteiro e demorou muito tempo para perdoar-lhe. Porém, a razão principal que levou Lutero a tomar o hábito, como em tantos outros casos, foi o seu interes¬se pela própria salvação. O tema da salvação e da condenação permeava todo o ambiente da época. A vida presente não parecia ser mais que uma preparação e prova para a vida vindoura. Logo seria tolice dedicar-se a ganhar prestígio e riquezas no presente, mediante a advocacia, e descuidar do futuro. Lutero entrou no mosteiro como fiel filho da igreja, com o propósito de utilizar os meios de salvação que a igreja lhe oferecia e dos quais o mais seguro lhe parecia ser a vida monástica.
O ano de noviciado parece ter transcorrido tranquilamente, pois Lutero fez seus votos e seus superiores o escolheram para se tornar um sacerdote. Segundo ele mesmo conta, a ocasião da celebração de sua primejra missa foi uma experiência surpreendente, pois o temor de Deus se apoderou dele ao pensar que estava oferecendo nada menos que Jesus Cristo. Repetidamente, esse temor esmagador de Deus pressionou-o, pois não estava seguro de que tudo o que estava fazendo em benefício de sua salvação era suficiente. Deus lhe parecia um juiz severo, como antes tinham sido seus pais e seus professo-res, que no julgamento lhe pediria contas de todas as suas ações e o acharia faltoso. Era necessário, portanto, valer-se de todos os recursos da igreja para estar salvo.
Entretanto, esses recursos eram insuficientes para um espírito profundamente religioso, sincero e apaixonado como o de Lutero. Supunha-se que as boas obras e a confissão fossem a resposta para a necessidade que aquele jovem monge tinha de se justificar diante de Deus. Porém não bastavam nem uma coisa nem outra. Lutero tinha um sentimento muito profundo de sua própria pecaminosidade e cada vez mais tratava de sobrepor-se a ela, mas cada vez mais se apercebia que o pecado era muito mais poderoso do que ele. Isto não quer dizer que não fosse um bom monge, ou que levasse uma vida licenciosa ou imoral. Pelo contrário, Lutero se esforçou em ser um monge perfeito. Repetidamente castigava seu corpo, segundo lhe ensinaram os grandes mestres do monaquismo. E sempre socorria-se do confessionário com tanta frequência quanto fosse possível. Porém tudo isso não bastava. Se, para que os pecados fossem perdoados, era necessário confessa los, o grande medo de Lutero era esquecer alguns de seus pecados. Portanto, uma e outra vez repassava cada uma de suas ações e pensamentos e, quanto mais os repassava, mais pecado encontrava neles. Houve ocasiões em que no mesmo momento que saía do confessionário percebia que tinha havido um pecado que não fora confessado. A situação ficava então desesperadora. O pecado era algo muito mais profundo que as meras ações ou pensamentos conscientes. Era todo um estado de vida, e Lutero não encontrava maneira alguma de confessá-lo e ser perdoado mediante o sacramento da penitência.
Seu conselheiro espiritual lhe recomendou que lesse as obras dos místicos. Pelos fins da Idade Média, houve uma forte onda de misticismo, impulsionada precisamente pelo sentimento que muitos ti¬nham de que a igreja, devido a sua corrupção, não era o melhor meio de aproximar-se de Deus. Lutero seguiu então esse caminho, não porque duvidava da autoridade da igreja, mas porque essa autoridade, através de seu confessor, lhe ordenara isso.
O misticismo lhe cativou por algum tempo, como antes lhe acontecera com a vida monástica. Talvez ali encontrasse o caminho da salvação. Mas logo esse caminho se tornou outro beco sem saída. Os místicos diziam que bastava amar a Deus, visto que tudo mais era uma consequência do amor. Isto pareceu a Lutero como uma palavra de libertação, pois não era necessário levar em conta todos os seus pecados, como até então fizera. Porém, não tardou muito para aperceber-se de que amar a Deus não era assim tão fácil. Se Deus era como seus pais e mestres que o haviam surrado até tirar-lhe sangue, como poderia ele amá-Lo? Por último, Lutero chegou até a confessar que não amava a Deus, mas sim que o odiava.
Não havia saída possível. Para ser salvo era necessário confessar os pecados e Lutero havia descoberto que, por mais que se esforçasse, seu pecado ia muito mais adiante que sua confissão. Se, como diziam os místicos, bastava amar a Deus, isso não era de grande ajuda pois Lutero tinha que reconhecer que era impossível amar a um Deus justo que lhe pediria contas de todas as suas ações.
Nessa encruzilhada, seu confessor, que era também seu superior, tomou uma medida surpreendente. O normal seria pensar que um sacerdote que estava passando por uma crise existencial pela qual atravessava Lutero, não estava pronto para servir como pastor, ou como mestre de outros. Porém, foi exatamente isso que propôs seu confessor. Séculos antes, Jerônimo havia encontrado um modo de escapar de suas tentações no estudo do hebraico. Mesmo que os problemas de Lutero fossem distintos dos de Jerônimo, talvez o estudo, o ensino e o trabalho pastoral pudessem ter para ele um resultado semelhante. Para isso ele ordenou a Lutero, que não esperava tal coisa, que se preparasse para ir dirigir cursos sobre as Escrituras na universidade de Wittenberg.
Muitas vezes se tem dito entre os protestantes que Lutero não conhecia a Bíblia e que foi, no momento de sua conversão, ou pouco antes, que começou a estudá-la, mas isso não é certo. Como monge que tinha de recitar as horas canónicas de oração, Lutero sabia o Saltério de memória. E além disso, em 1512 ele obteve seu doutorado em teologia e, para tanto, teria que ter estudado as Escrituras.
O que é certo é que quando se viu obrigado a preparar conferências sobre a Bíblia, Lutero começou a ver nela uma possível resposta para suas angústias espirituais. Em meados de 1513, começou a dar aulas sobre os Salmos. Devido aos anos que passara recitando o Saltério, sempre dentro do contexto do ano litúrgico que se centraliza nos principais acontecimentos da vida de Cristo, Lutero interpretava os Salmos cristologicamente. Neles, era Cristo quem falava. E assim, viu Cristo passando pelas angústias semelhantes às que passava. Este foi o princípio de sua grande descoberta. Porém se tudo se resumia nisto, Lutero teria chegado simplesmente à piedade popular tão comum, que pensa que Deus o Pai exige justiça, e é o Filho quem nos perdoa. Precisamente por seus estudos teológicos, Lutero sabia que tal idéia era falsa e não estava disposto a aceitá-la. Porém em todo caso, nas angústias de Jesus Cristo, começou a achar consolo para as suas.
A grande descoberta veio provavelmente em 1515, quando Lutero começou a dar conferências sobre a epístola de Romanos, pois ele mesmo disse, depois, que foi no primeiro capítulo dessa epístola onde encontrou a resposta para as suas dificuldades. Essa resposta não veio facilmente. Não ocorreu simplesmente que, num bom dia, Lutero abriu sua Bíblia no primeiro capítulo de Romanos e descobriu ali que "o justo viverá pela fé". Segundo ele mesmo conta, a grande descoberta foi precedida por uma grande luta e uma amarga angústia, pois Romanos 1.17 começa dizendo que: "no evangelho a justiça de Deus se revela". Segundo este texto, o evangelho é a revelação da justiça de Deus. E era precisamente a justiça de Deus que Lutero não podia tolerar. Se o evangelho fosse a mensagem de que Deus não é justo, Lutero não teria tido problemas. Porém este texto relaciona indissoluvelmente a justiça de Deus com o evangelho. Segundo Lutero conta, ele odiava a frase "a justiça de Deus” e esteve meditando nela dia e noite para compreender a relação entre as duas partes do versículo que começa afirmando que "no evangelho a justiça de Deus se revela" e conclui dizendo que "o justo viverá pela fé".
A resposta foi surpreendente. A "justiça de Deus" não se refere aqui, como pensa a teologia tradicional, ao fato de que Deus castigue aos pecadores. Refere-se, sim, a que a "justiça" do justo não é obra sua, mas dom de Deus. A "justiça de Deus" é a que tem quem vive pela fé, não porque seja em si mesmo justo, ou porque cumpra as exigências da justiça divina, mas porque Deus lhe dá esse dom. A "justificação pela fé" não quer dizer que a fé seja uma obra mais sutil que as boas obras, e que Deus nos paga por essa obra. Quer dizer sim que, tanto a fé como a justificação do pecador, são obras de Deus, dom gratuito. Em consequência, continua comentando Lutero sobre sua descoberta, "senti que havia nascido de novo e que as portas do paraíso me haviam sido abertas. As Escrituras todas tiveram um novo sentido. E a partir de então a frase "a justiça de Deus" não me encheu mais de ódio, mas se tornou indizivelmente doce em virtude de um grande amor".

Acontece a Tormenta
Se bem que os acontecimentos posteriores revelaram outra faceta de Lutero, durante todo esse tempo ele se revelou um homem relativamente reservado, dedicado a seus estudos e sua luta espiritual. Sua grande descoberta embora tivesse lhe trazido uma nova compreensão do evangelho, não o levou a protestar de imediato contra o modo pelo qual a igreja entendia a fé cristã. Pelo contrário, ele continuou dedicado a seus labores docentes e pastorais e, embora haja indícios de que ensinou sua nova teologia, não pretendeu contrapô-la à que se ensinava na igreja. O que é mais notável é que ele mesmo não tinha percebido que sua grande descoberta se opunha a todo o sistema de penitências e, conseqüentemente, à teologia e às doutrinas comuns na sua época.
Pouco a pouco, e sem pretender ocasionar controvérsia alguma, Lutero foi convencendo seus colegas na universidade de Wittenberg. Quando por fim decidiu que havia chegado o momento de lançar seu grande repto, compôs noventa e cinco teses, que deviam servir de base para um debate académico. Nelas Lutero atacava vários dos princípios fundamentais da teologia escolástica e esperava que a publicação dessas teses, e o seu posterior debate, seriam uma oportunidade de dar a conhecer ao resto da igreja sua descoberta. Porém, para sua surpresa, chegou a data do debate e somente lhe deram atenção os círculos académicos da universidade. Ao que parece, a descoberta de que o evangelho devia ser entendido de maneira diferente da que comumente se pregava, algo tão importante para Lutero, não teve a mesma repercussão para o resto do mundo.
Mas então, sucedeu o inesperado. Quando Lutero produziu outras teses, sem crer de modo algum que teriam mais impacto que as anteriores, se criou uma revolução tal que toda a Europa se viu envolvida nas suas consequências. O que tinha acontecido era que, ao atacar a venda das indulgências, crendo que não se tratava mais do que uma consequência natural do que se havia discutido anteriormente, Lutero se havia atrevido, ainda que sem sabê-lo, a opor-se ao lucro e aos desígnios de vários personagens muito mais poderosos do que ele.
A venda de indulgências que Lutero atacou tinha sido autorizada pelo papa Leão X, e nela estavam envolvidos os interesses económicos e políticos da poderosíssima casa dos Hohenzollern, que aspirava à hegemonia da Alemanha. Um dos membros dessa casa, Alberto de Brandeburgo, tinha já duas sedes episcopais e desejava ocupar também o arcebispado de Mainz, que era o mais importante da Alemanha. Para isso se pôs em contato com Leão X, um dos piores papas daquela época de papas indolentes, avarentos e corrompidos. Leão X fez saber que estava disposto a conceder a Alberto o que ele lhe pedia, em troca de dez mil ducados. Posto que esta era uma soma considerável, o Papa autorizou Alberto a proclamar uma grande venda de indulgências em seus territórios, em troca de que a metade do produto fosse enviada ao erário papal. Parte do que sucedia era que Leão X sonhava com o término da Basílica de São Pedro, iniciada por seu predeces¬sor Júlio II, cujas obras marchavam lentamente por falta de fundos. Logo, a grande basílica que hoje é o orgulho da igreja romana foi uma das causas indiretas da reforma protestante. Quem se encarregou da venda das indulgências na Alemanha Central foi o dominicano João Tetzel, homem sem escrúpulos que com o fim de promover sua mercadoria, fazia afirmações escandalosas. Por exemplo: Tetzel e seus subalter¬nos proclamavam que a indulgência que vendiam deixava o pecador "mais limpo do que saíra do batismo", ou "mais limpo do que Adão antes de cair", que "a cruz do vendedor de indulgências tinha tanto poder como a cruz de Cristo" e que, no caso de alguém comprar uma indulgência para um parente já morto, "tão pronto a moeda caísse no cofre, a alma saía do purgatório".
Tais afirmações causavam repugnância entre os mais informados que sabiam que a doutrina da igreja não era assim como a apresentavam Tetzel e os seus seguidores. Entre os humanistas que se doíam pela ignorância e superstição que parecia reinar por todos os lugares, a pregação de Tetzel era vista como o exemplo mais triste do estado a que tinha chegado a igreja. O espírito nacionalista alemão também se ressentia dessa situação, porque via na venda das indulgências uma maneira pela qual Roma explorava mais uma vez o povo alemão, aproveitando de sua credulidade, para logo esbanjar em luxos e festins os escassos recursos que os pobres alemães tinham conseguido produzir com o suor de seus rostos. Porém, ainda que muitos abrigassem esses sentimentos, ninguém protestava, e as vendas continuavam.
Foi então que Lutero fixou suas famosas noventa e cinco teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg. Essas teses, escritas em latim, não tinham o propósito de criar uma como¬ção religiosa, como tinha sido o caso das anteriores. Depois daquela experiência, Lutero parece ter pensado que a questão que tinha sido debatida era principalmente do interesse dos teólogos, e que portanto suas novas teses não teriam mais impacto que aquele produzido nos círculos académicos. Porém, ao mesmo tempo, essas noventa e cinco teses, escritas acaloradamente com um sentimento de indignação profunda, eram muito mais devastadoras que as anteriores, não porque se referissem a tantos pontos importantes de teologia, mas porque punham o dedo sobre a chaga do ressentimento alemão contra os exploradores estrangeiros. E além do mais, ao atacar concretamente a venda das indulgências, punha em perigo os projetos dos poderosos. Se bem que seu ataque fosse relativamente moderado, algumas das teses iam mais além da mera questão da eficácia e dos limites das indulgências e apontavam para a exploração da qual o povo era objeto. Segundo Lutero, se era verdade que o papa tinha poderes para tirar uma alma do purgatório, tinha que utilizar esse poder, não por razões tão triviais como a necessidade de fundos para construir uma igreja, mas simplesmente por amor, e assim fazê-lo gratuitamente (tese 82). E ainda mais, o certo é que o papa deveria dar do seu próprio dinheiro aos pobres de quem os vendedores de indulgências tiravam, mesmo que para isso tivesse que vender a Basílica de São Pedro (tese 51).
Lutero deu a conhecer suas teses na véspera da festa de Todos os Santos, e seu impacto foi tal que frequentemente se marca essa data, 31 de outubro de 1517, como o começo da reforma protestante. Os impressores produziram um grande número de cópias das teses e as distribuíram por toda a Alema¬nha, tanto no original latino, como em tradução alemã. O próprio Lutero havia mandado uma cópia a Alberto de Brandeburgo, acompanhada com uma carta muito respeitosa. Alber¬to enviou as teses e a carta para Roma, pedindo a Leão X que interviesse. O imperador Maximiliano se encolerizou diante das atitudes e dos ensinos daquele monge impertinente, e também pediu a Leão X que interviesse. Nesse meio tempo, Lutero publicou uma explicação de suas noventa e cinco teses, na qual, além de esclarecer o que tinha sido escrito em
breves proposições, aguçava seu ataque contra a venda das indulgências e contra a teologia que servia para apoiá-la.
A resposta do papa foi pôr a questão debaixo da jurisdição dos agostinhos, cuja próxima reunião capitular, teria lugar em Heidelberg, e Lutero foi convocado. Para lá foi nosso monge, temendo por sua vida, pois se dizia que seria condenado e queimado. Porém para grande surpresa sua, muitos dos monges se mostraram favoráveis a sua doutrina. Alguns dos mais jovens a acolheram entusiasticamente. Para outros a disputa entre Lutero e Tetzel era um caso a mais na velha rivalidade entre os agostinhos e os dominicanos, e portanto, não estavam dispostos a abandonar seu campeão. Em consequência, Lutero regressou a Wittenberg fortalecido pelo apoio de sua ordem e feliz por haver ganhado vários conversos para sua causa.
O papa então tomou outro caminho. Em breve deveria se reunir em Augsburgo a dieta do Império, isso é, a assembleia de todos os potentados alemães, sob a presidência do imperador Maximiliano. O legado papal a essa dieta era o cardeal Cajetano, homem de grande erudição, cuja missão principal era convencer os príncipes alemães da necessidade de em¬preender uma cruzada contra os turcos, que ameaçavam a Europa, e de promulgar um novo imposto para esse fim. A ameaça dos turcos era tal que Roma estava tomando medidas para reconciliar-se com os husitas da Boémia, mesmo que isso implicasse em acatar várias de suas demandas. Portanto, a cruzada e o imposto eram a principal missão de Cajetano, a quem o papa comissionou para se entrevistar com Lutero e o obrigar a retratar-se. Se o monge se negasse, deveria ser levado prisioneiro a Roma.
O leitor Frederico, o Sábio da Saxônia, dentro de cuja jurisdição vivia Lutero, obteve do imperador Maximiliano um salvo-conduto para o frade, a quem se dispôs a ajudar em Augsburgo, mesmo sabendo que pouco mais de cem anos atrás e, em circunstâncias muito parecidas, João Huss tinha sido queimado em violação a um salvo-conduto imperial.
A entrevista com Cajetano não produziu o resultado dese¬jado. O cardeal se negava a discutir com o monge e exigia sua renúncia. O frade, por sua vez, não estava disposto a retratar-se, se não fosse convencido de que estava errado. Quando por fim se inteirou de que Cajetano tinha autoridade para arrastá-lo, ainda que em violação do salvo-conduto imperial, abandonou a cidade às escondidas no meio da noite, regressou a Wittenberg e apelou a um concílio geral.
Durante todo este período, Lutero havia contado com a proteção de Frederico, o Sábio, eleitor da Saxônia e portanto de Wittenberg. Frederico, não protegia Lutero porque estava convencido de suas doutrinas, mas sim porque lhe pareceu que a justiça exigia um julgamento correto. A princi¬al preocupação de Frederico era ser um governante justo e sábio. Com esse propósito fundou a Universidade de Wittenberg, onde muitos dos professores lhe diziam que Lutero tinha razão, e que se enganavam aqueles que o acusavam de heresia. Pelo menos, enquanto Lutero não fosse condenado oficial¬mente, Frederico estava disposto a evitar que se cometesse com ele uma injustiça semelhante a que havia acontecido no caso de João Huss. Entretanto, a situação se tornava cada vez mais difícil, pois cada vez mais eram mais numerosos os que diziam que Lutero era herege, tornando a posição de Frederico bastante precária.
Assim estavam as coisas, quando a morte de Maximiliano deixou vago o trono alemão, e era necessário eleger um novo imperador. Visto que se tratava de uma dignidade eletiva, e não hereditária, imediatamente se começou a discutir sobre quem seria o novo imperador. Os dois candidatos mais poderosos eram Carlos l, da Espanha (o filho de Joana, a Louca e Felipe, o Formoso, neto de Isabel) e Francisco l, da França. Mas nenhum desses candidatos era do agrado do Papa Leão X, pois ambos eram demasiadamente poderosos, e sua eleição à dignidade imperial quebraria o equilíbrio dos poderes europeus que era a base da política papal. Carlos tinha, além dos recur¬sos da Espanha, que começava a receber as riquezas do Novo Mundo, suas possessões hereditárias nos Países Baixos, Áustria e o sul da Itália. Se a tudo isso se lhe acrescentasse o trono alemão, seu poder não teria rival em toda Europa. Francisco, como rei da França, tampouco lhe parecia aceitável, pois uma união entre as coroas francesa e alemã podia ter consequências funestas para o papado. Portanto, era necessário buscar outro candidato cuja possibilidade de ser eleito estivesse, não em seu poder, mas em seu prestígio de homem sábio e justo. Dentro de tais critérios, o candidato ideal era Frederico, o Sábio, respeitado por todos os demais senhores alemães. Se Frederico fosse eleito, as potências europeias ficariam suficientemente divididas para permitir ao papa gozar de certo poder. Portanto, desde antes da morte de Maximiliano, Leão X tinha decidido aproximar-se de Frederico e apoiar a sua candidatura.
Porém, Frederico protegia a Lutero, pelo menos até que o frade revolucionário fosse devidamente julgado. Portanto, Leão decidiu que o melhor era prorrogar a condenação de Lutero e tratar de aproximar-se do monge e do eleitor que o defendia. Com essas instruções, enviou Karl von Miltitz, parente de Frederico, à Alemanha, com uma rosa de ouro para o eleitor em sinal de favor papal e, por assim dizer, com um ramo de oliva para o monge.
Miltitz se entrevistou com Lutero e conseguiu deste a promessa de não continuar a controvérsia, desde que seus inimigos fizessem o mesmo. Isso trouxe uma breve trégua, até que o teólogo conservador João Eck, professor da universidade de Ingolstadt, interveio no assunto. Em lugar de atacar Lutero, o qual se fizera aparecer como aquele que quebrara a paz, Eck atacou a Carlstadt, outro professor da universidade de Wittenberg que tinha se convencido das doutrinas de Lutero, e que era muito mais impetuoso e exagerado do que o Reformador. Eck propôs a Carlstadt um debate que teria lugar na universidade de Leipzig. Dadas e estabelecidas as ques¬tões, ficava claro que o propósito de Eck era atacar Lutero através de Carlstadt e, portanto, o Reformador declarou que devido a serem discutidas as suas doutrinas em Leipzig, ele também participaria do debate.
A discussão se conduziu com todas as formalidades dos exercícios académicos e durou vários dias. Quando chegou o momento de Lutero e Eck se enfrentarem, ficou claro que o primeiro era melhor conhecedor das Escrituras, porém que o segundo se achava mais à vontade no direito canônico e na teologia medieval. E com toda a esperteza, Eck levou o combate para seu próprio campo, e por fim obrigou a Lutero declarar que o Concílio de Constanza se enganara ao condenar Huss, e que um cristão com a Bíblia, no seu entender, tem mais autoridade que todos os papas e os concílios contra ela. Isso bastou. Lutero tinha se declarado defensor de um herege condenado
por um concílio ecumênico. Mesmo que os argumentos do Reformador se mostrassem melhores do que os do seu oponente em vários pontos, foi Eck quem ganhou o debate, pois nele conseguiu demonstrar aquilo a que se propusera: que Lutero era um herege, pois defendia as doutrinas dos hussitas.
Começou então um novo período de confrontações e perigos. Porém Lutero e os seus haviam empregado bem o tempo que as circunstâncias políticas lhes haviam dado, de maneira que por toda a Alemanha, e até fora dela, eram cada vez mais os que viam o monge agostiniano como o campeão da fé bíblica. Além do número sempre crescente de seus seguidores, particularmente entre os professores de Wittenberg e de outras universidades, e entre os sacerdotes mais zelosos de suas responsabilidades, Lutero tinha as simpatias dos humanistas, que viam nele um defensor da reforma que eles mesmos propunham, e dos nacionalistas, para quem o monge era o porta-voz do protesto alemão diante dos abusos de Roma.
Logo, ainda que umas semanas antes do debate de Leipzig, Carlos l da Espanha tinha sido eleito imperador (com o voto de Frederico, o Sábio) e, portanto, o papa não tinha que andar com mesuras como antes, a posição de Lutero tinha se fortalecido. Muitos cavaleiros alemães chegaram a enviar-lhe mensagens prometendo-lhe apoio armado, se o conflito chegasse a estourar. Quando por fim o papa resolveu atuar, sua ação resultou demasiadamente tardia e ineficiente. Na bula Exsurge domine, Leão X declarou que um javali selvagem havia penetrado na vinha do Senhor e ordenava que os livros de Martinho Lutero fossem queimados, e dava ao monge rebelde sessenta dias para submeter-se à autoridade romana, sob pena de excomunhão e anátema.
A bula demorou muito tempo para chegar às mãos de Lutero, pois as circunstâncias políticas eram sobremodo complexas. Em vários lugares, ao receber cópias da bula, as obras do Reformador foram queimadas. Porém em outros, alguns estudantes e outros partidários de Lutero, preferiram queimar algumas das obras que se opunham ao movimento reformador. Quando enfim a bula chegou às mãos de Lutero, este a queimou, junto com outros livros que continham as doutrinas papistas. O rompimento era definitivo e não havia modo de se voltar atrás.
Faltava ver, entretanto, que atitudes tomariam os senho¬res alemães e particularmente o Imperador, pois sem eles era pouco o que o papa poderia fazer contra Lutero. As gestões de cada parte foram demasiadamente numerosas para se narrar aqui. Basta dizer que, ainda que Carlos V fosse católico convicto, não deixou de utilizar a questão de Lutero como uma arma contra o papa quando este pareceu inclinar-se para o seu rival, Francisco l, da França. Posteriormente, depois de muitas idas e vindas, se resolveu que Lutero compareceria diante da dieta do Império, reunida em Worms no ano de 1521.
Quando Lutero chegou a Worms, foi levado diante do Imperador e vários dos principais personagens do Império. Quem estava encarregado de interrogá-lo lhe apresentou um montão de livros e lhe perguntou se os havia escrito. Depois de examiná-los, Lutero confirmou que os havia escrito todos e vários outros que não estavam ali. Então seu interlocutor lhe serguntou se continuava sustentando tudo o que havia dito neles ou se estava disposto a retratar-se de algo. Este era um momento difícil para Lutero, não tanto porque temia o poder Imperial, mas porque temia sobremaneira a Deus. Atrever-se a se opor a toda a igreja e ao Imperador, que tinha sido ordenado por Deus, era um passo temerário. Uma vez mais o monge temeu diante da majestade divina e pediu um dia para considerar sua resposta.
No dia seguinte, correu a notícia de que Lutero compareceria diante da dieta e a assistência foi grande. A presença do Imperador em Worms, rodeado de soldados espanhóis que abusavam do povo, havia exacerbado ainda mais o sentimento nacional. Uma vez mais, em meio ao maior silêncio, se pergun¬tou a Lutero se se retratava. O monge respondeu dizendo que o que havia escrito não era mais que a doutrina cristã que tanto ele como seus inimigos sustentavam, e portanto ninguém deveria pedir-lhe que se retratasse daquilo. Outra parte tratava sobre a tirania e as injustiças a que estavam submetidos os alemães, e também disto não se retrataria, pois tal não era o propósito da dieta, e tal negação somente contribuiria para aumentar a injustiça que se cometia. A terceira parte, que consistia em ataques a certos indivíduos e em pontos de doutrina que seus oponentes refutavam, certamente não havia sido escrita com demasiada aspereza. E assim tão pouco dela se retrataria, a não ser que lhe convencessem de que estava enganado.
Seu interlocutor insistiu: "Retratas-te, ou não?” E Lutero lhe respondeu, em alemão, desdenhando, portanto, o latim dos teólogos: "Não posso nem quero retratar-me de coisa alguma, pois ir contra a consciência não é justo nem seguro. Deus me ajude. Amém".
Ao queimar a bula papal, Lutero havia rompido definitivamente com Roma. E agora em Worms, rompia com o Império. Não lhe faltavam razões suficientes para clamar: "Deus me ajude".