terça-feira, 12 de junho de 2007

História da Igreja - Parte 6

A igreja de Jerusalém
(texto extraído e adaptado da obra de Justo L. Gonzales, Uma História Ilustrada do Cristianismo)
O livro de Atos nos dá a entender que houve, desde os inícios, uma forte igreja em Jerusalém. Mas, depois dos primeiros capítulos, esse mesmo livro nos diz muito pouco a respeito daquela comunidade original. Isto se entende, porque o propósito do autor de Atos não é escrever toda uma história da igreja, mas antes mostrar como, por obra do Espírito Santo, a nova fé foi se estendendo até chegar à capital do Império.
O resto do Novo Testamento nos diz ainda menos sobre a igreja de Jerusalém, pois a maior parte dos livros do novo Testamento trata a respeito da vida da igreja em outras partes do Império.
Isto quer dizer que, ao tentarmos reconstruir a vida e a história daquela primeira igreja, nos encontramos com uma enorme escassez de dados. Entretanto, lendo cuidadosamente o Novo Testamento, e acrescentando alguns pormenores que nos oferecem outros autores dos primeiros séculos, podemos fazer uma idéia aproximada do que foi aquela primeira comunidade cristã.
Unidade e diversidade
É um erro comum entre muitas pessoas idealizar a igreja do Novo Testamento. A firmeza e a eloquência de Pedro no dia de Pentecoste fazem com que nos esquessamos de suas dúvidas e vacilações a respeito do que se devia fazer com os gentios que eram acrescentados à igreja.
E o fato de que os discípulos possuíam todas as coisas em comum, frequentemente, esconde as dificuldades que essa prática acarretou, como se pode ver no caso de Ananias e Safira, e na "murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária" (Atos 6:1).
Este último episódio, que se menciona como que de pas¬sagem em Atos, nos indica que já na igreja primitiva começavam a se refletir algumas das divisões que existiam entre os judeus em Jerusalém.
Conforme já falamos na aula anterior, durante vários séculos a Palestina havia estado dividida entre os judeus mais puristas e aqueles de tendências mais helenizantes. É a isso que se refere Atos 6:1 ao falar dos "gregos" e dos "hebreus". Não se trata aqui verdadeiramente de judeus e de gentios — pois ainda não havia gentios na igreja, segundo nos dá a entender mais adiante o próprio livro de Atos — mas sim, trata-se de dois grupos entre os judeus.
Os "hebreus" eram os que conservavam todos os costumes e o idioma de seus antepassados, enquanto que os "gregos" eram os que se mostravam mais abertos com relação às influências do helenismo. É possível que alguns deles tenham sido judeus que haviam regressado a Jerusalém depois de viverem em outros lugares, talvez em alguns casos por várias gerações.
Em todo caso, a maior parte deles levava nomes gregos e é de se supor que, além do aramaico da região, falavam também o grego. Logo, a disputa a que se refere Atos é uma desavença entre cristãos de origem judaica, mas uns, por assim dizer, mais judeus do que os outros. Como resultado desse conflito, os apóstolos convocaram uma assembleia que elegeu sete pessoas "para servir as mesas". O sentido exato desta função não está de todo claro, porém nâo há dúvida de que os doze esperavam que os sete se dedi-cassem a trabalhos administrativos, enquanto eles seguiam pre¬gando.
Mas duas coisas são claras ao lermos todo o livro de Atos. A primeira delas é que, os sete eram representantes do grupo dos "gregos" — todos eles tinham nomes gregos — e que o propósito de sua eleição era então proporcionar uma certa representação desse grupo. A segunda coisa é que, desde muito cedo, pelo menos alguns dos sete se dedicaram também à pregação e à tarefa missionária!
O capítulo 7 de Atos está dedicado a Estevão, um dos sete, que "fazia grandes prodígios e sinais entre o povo" (Atos 6:8). Ao ler o testemunho de Estevão diante do concílio, percebemos que sua atitude em relação ao templo não é muito positiva (At 7:47-48).
O concílio, composto principalmente por judeus anti-helenistas, nega-se a escutá-lo e o apedreja. Isto contrasta com o modo pelo qual o mesmo concílio havia tra¬tado Pedro e João, que foram postos em liberdade depois de serem açoitados (Atos 5:40).
Além disso, é notável o fato de que quando eclodiu a perseguição e os cristãos foram obrigados a fugir de Jerusalém, os apóstolos puderam permanecer na Cidade Santa. E quando Saulo sai em direção a Damasco para perseguir os cristãos que encontraram refúgio naquela cidade, os apóstolos ainda estavam em Jerusalém, e pelo que parece Saulo não se preocupa com isso.
Tudo isso nos leva a concluir que os membros do con¬cílio e o sumo sacerdote se preocupavam mais pelos cristãos "gregos" do que pelos "hebreus". Como dissemos anteriormente, tanto uns como os outros eram de origem judaica. E não há dúvidas de que os membros do concílio viam no cristianismo uma heresia que era necessário combater.
Mas, no princípio, essa oposição parece ter sido dirigida principalmente contra os judeus "gregos" que se haviam feito cristãos. É posteriormente, no capítulo 12 de Atos, que a perseguição desaba contra os apóstolos. Imediatamente, depois de narrar o testemunho e a morte de Estevão, o livro de Atos passa a nos contar a atividade missionária de Filipe, outro dos sete. Filipe funda uma igreja em Samaria, e os apóstolos enviam Pedro e João para supervisionar o trabalho de Filipe.
Logo, fica evidente que já vai começando a se formar uma igreja fora do âmbito da Judéia. Essa igreja não foi fundada pelos apóstolos, mas, apesar disso, os doze prosseguem gozando de certa autoridade sobre toda a igreja.
Depois disso, no capítulo 9, Atos começa a falar de Paulo, e a igreja fora da Palestina vai se tornando cada vez mais o centro da narração. Isso não é de se estranhar, pois o que sucedeu foi que os judeus "gregos" que se haviam feito cristãos serviram de ponte através da qual a nova fé passou ao mundo gentio, e logo a igreja contou com mais membros entre os gentios do que entre os judeus.
Portanto, a maior parte de nossa história versa sobre o cristianismo entre os gentios. Mas apesar disso não podemos esquecer aquela primeira igreja, da qual chegam até nós apenas traços limitados.

A vida religiosa
Os primeiros cristãos não criam que pertencessem a uma nova religião. Eles haviam sido judeus durante toda sua vida, e conti¬nuavam sendo. Isto é certo, não só em relação a Pedro e aos doze, mas também aos sete, e até mesmo em relação a Paulo. A fé desses primeiros cristãos não consistia em uma negação do judaísmo, mas consistia antes em uma convicção em que a idade messiânica, tão esperada pelo povo hebreu, havia chegado.
Conforme Paulo expressa aos judeus em Roma no final de sua carreira: "pela esperança de Israel estou preso com esta cadeia" (Atos 28:20). Isto é, a razão pela qual Paulo e os demais cristãos são perseguidos não é porque se opunham ao judaísmo, mas porque criam e pregavam que em Jesus cumpriram-se as promessas feitas a Israel.
Por esta razão, os cristãos da igreja de Jerusalém conti¬nuavam guardando o sábado e assistindo o culto no Templo. Mas, uma vez que o primeiro dia da semana era o dia da ressurreição do Senhor, reuniam-se nesse dia para "partir o pão" em comemoração a essa ressurreição.
Aqueles primeiros cultos de comunhão não se centralizavam sobre a paixão do Senhor, mas sobre sua ressurreição e sobre o fato de que ela havia inaugu¬rado uma nova era. Foi só muito mais tarde — séculos mais tarde, como veremos — que o culto começou a centralizar sua atenção sobre a crucificação e não sobre a ressurreição. Naquela igreja primitiva, o partir do pão era celebrado "com alegria e singeleza de coração" (Atos 2:46).
Havia sim, naturalmente, outros momentos de recolhimento. Esses eram principalmente os dois dias de jejum semanais. Era costume entre os judeus mais devotos jejuar dois dias por semana, e os primeiros cristãos seguiam o mesmo costume, ainda que muito cedo começassem a observar dois dias dife¬rentes.
Enquanto os judeus jejuavam segundas e quintas, os cristãos jejuavam quartas e sextas, provavelmente em memória da traição de Judas e a crucificação de Jesus.
Na igreja primitiva, os dirigentes eram os doze, em¬bora tudo pareça indicar que Pedro e João eram os principais. Pelo menos, é sobre eles que se centraliza a atenção em Atos, e Pedro e João são dois dos "pilares" a quem se refere Paulo em Galatas 2:9.
Além dos doze, entretanto, Tiago, irmão do Senhor, gozava também de grande autoridade. Ainda que Tiago não fosse um dos doze, Jesus havia se manifestado a ele pouco depois da ressurreição (l Co 15:7). E Tiago havia se unido ao número dos discípulos, onde logo gozou de grande prestígio e autoridade. Segundo Paulo, ele era o terceiro "pilar" da igreja de Jerusalém e, portanto, em certo sentido, parece haver estado acima de alguns dos doze.
Por esta razão, quando mais tarde se pensou que a igreja era governada por bispos desde o começo, surgiu a tradição segundo a qual o primeiro bispo de Jerusalém foi Tiago, irmão do Senhor.
Esta tradição, errônea, porquanto atribui a Tiago o título de bispo, parece estar correta em afirmar que ele foi o primeiro chefe da igreja de Jerusalém.

O ocaso da igreja judaica
Logo, entretanto, aumentou a perseguição contra todos os cristãos em Jerusalém. O imperador Calígula havia dado o título de rei a Herodes Agripa, neto de Herodes o Grande.
Se¬gundo Atos 12.1-3, Herodes mandou matar Tiago, o irmão de João - que não deve ser confundido com Tiago, o irmão de Jesus - e ao ver que isto agradou a seus súditos fez encarcerar também Pedro, que escapou milagrosamente.
No ano 62, Tiago, chefe da igreja, foi morto por iniciativa do sumo sacerdote e ainda contra a oposição de alguns fariseus. Ante tais circunstâncias, os chefes da igreja de Jerusalém decidiram mudar-se para Pela, uma cidade em sua maioria gentia no outro lado do Jordão. Ao que parece, parte do propósito nessa mudança, era não só fugir da perseguição por judeus, mas também evitar as suspeitas por parte dos romanos.
De fato, nessa época o nacionalismo judeu estava em ebulição, e logo eclodiria a rebelião que culminaria a destruição de Jerusalém pelos romanos no ano 70. Os cristãos confessavam-se seguidores de alguém que havia sido morto e crucificado pelos romanos, e que pertencia à linhagem da Davi. Ainda mais, depois da morte de Tiago, o irmão do Senhor, aquela antiga igreja continuou sendo dirigida pelos parentes de Jesus, e a chefia passou a Simeão, que pertencia à mesma linhagem.
Diante do nacionalismo que florescia na Palestina, os romanos suspeitavam de qualquer judeu que pretendesse ser descendente de Davi. Portanto, este movimento judeu, que seguia a um homem condenado como malfeitor, e dirigido por pessoas da linhagem de Davi, tinha de parecer suspeito diante dos olhos romanos.
Pouco tempo depois, alguém acusou Simeão como descendente de Davi e como cristão, e este novo dirigente da igreja judaica sofreu o martírio.
Diante dos escassos dados que sobreviveram à passagem dos séculos, é impossível saber até que ponto os romanos condenaram Simeão por ser cristão, e até que ponto condenaram por pretender pertencer à casa de Davi.
Mas, em todo caso, o resultado de tudo isso foi que a velha igreja de origem judaica, rejeitada tanto por judeus como por gentios, viu-se relegada cada vez mais às regiões mais escondidas e desoladas.
Naquelas paragens distantes, o cristianismo judeus entrou em contato com vários outros grupos que, em datas anteriores, haviam abandonado o judaísmo ortodoxo e se haviam refugiados além do Jordão.
Carente de relações com o resto do cristianismo, aquela igreja de origem judaica seguiu seu próprio curso, e em muitos casos sofreu o influxo de diversas seitas entre as quais ela existia.
Quando, em ocasiões posteriores, os cristãos de origem gentia ofereceram algum traço daquela comunidade esquecida, nos falam de hereges e de seus estranhos costumes, mas raramente nos oferecem dados de valor positivo sobre a fé e a vida daquela igreja que perdurou pelo menos até o século V.

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