quarta-feira, 13 de junho de 2007

História da Igreja - Parte 14

A Era das Trevas - continuação

O papado
Foi durante a "era das trevas" que o papado começou a surgir com a pujança que o caracterizou em séculos posteriores. Porém, antes de narrar estes acontecimentos convém que nos detenhamos para discutir a origem do papado.
A origem do papado
O termo "papa", que atualmente é empregado no Ocidente exclusivamente para o bispo de Roma, nem sempre teve este sentido. A palavra em si significa simplesmente "papai", sendo, portanto, um termo de carinho e respeito. Na época antiga, ele era usado para qualquer bispo distinto, sem importar se ele era ou não o bispo de Roma. Assim, há, por exemplo, documentos antigos que se referem ao "papa Cipriano", de Cartago, ou ao "papa Atanásio", de Alexandria.
Além disto, enquanto no Ocidente o termo acabou ficando exclusivamente para o bispo de Roma, em várias partes da igreja oriental ele continuou sendo usado com mais liberalidade. Todavia, não se pode esquecer que o descaminho da igreja romana começa efetivamente aqui, uma vez que descumpre um mandamento do próprio Cristo > "E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só é o vosso Pai, o qual está nos céus." (Mateus 23.9)
Em todo caso, a questão mais importante não é a origem do termo "papa", mas de que maneira o bispo de Roma chegou a gozar da autoridade que teve durante a Idade Média, e que ainda tem na igreja católica romana.
As origens do bispado romano se perderam na penumbra da história. A maior parte dos historiadores, tanto católicos como protestantes, concorda que Pedro esteve em Roma e que, provavelmente, morreu naquela cidade durante a perseguição de Nero. Porém NÃO existe nenhum documento antigo que diga que Pedro transferiu sua autoridade apostólica aos seus sucessores.
Além disso, as listas antigas que enumeram os primeiros bispos de Roma não coincidem. Enquanto algumas dizem que Clemente sucedeu diretamente a Pedro, outras dizem que ele foi o terceiro bispo depois da morte do apóstolo. Isso é tanto mais digno de nota por termos listas relativamente fidedignas de outras igrejas. Isso, por sua vez, levou alguns historiadores a conjeturar que talvez o bispado de Roma, em seu princípio, não tenha sido "monárquico" (isto é, com um só bispo), porém um bispado colegiado onde vários bispos, ou presbíteros, dirigiam a vida da igreja em conjunto.
Seja qual for o caso, o fato é que de todo o período que vai desde a perseguição de Nero, em 64, até a Primeira Epístola de Clemente, em 96, o que sabemos do bispado romano é pouco ou nada. Se o papado ti¬vesse sido tão importante desde as origens da igreja, como dizem alguns, teria deixado mais vestígios durante toda esta segunda metade do primeiro século.
Durante os primeiros séculos da história da igreja, o centro numérico do cristianismo esteve no Oriente, e por isso bispos de cidades como Antioquia e Alexandria tinham muito mais importância que o bispo de Roma. E também no Ocidente de fala latina, a direção teológica e espiritual não esteve em Roma, mas na África latina, que contribuiu com Tertuliano, Cipriano e Santo Agostinho.
Essa situação começou a mudar quando o Império aceitou a fé cristã. Como Roma era, pelo menos de nome, a capital do lmpério, a igreja e o bispo dessa cidade logo se viram ern posigão de deslaque. Em todo o Império, a igreja começou a se organizar de acordo com os padrões estabelecidos pelo estado, e as cidades que tinham jurisdição política sobre uma região logo tinham também jurisdição eclesiástica.
Depois de algum tempo a igreja estava dividida em cinco patriarcados, que tinham suas sedes em Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Constantinopla e Roma. A própria existência do patriarcado de Constantinopla, uma cidade que nem sequer existia como tal em tempos apostólicos, mostra que esta estrutura correspondia mais a realidades políticas que a origens apostólicas. E o caráter quase somente simbólico do patriarcado de Jerusalém, que poderia reclamar para si ainda mais autoridade apostólica que a própria Roma, mostra a mesma coisa.
Quando os bárbaros invadiram o Império, a igreja do Ocidente começou a seguir um rumo bem diferente da do Oriente. No Oriente, o Império continuou existindo, e os patriarcas continuaram subordinados a ele. O caso de João Crisóstomo, que vimos anteriormente, se repetiu com frequência na igreja oriental. No Ocidente, entretanto, o Império desapareceu, e a igreja veio a ser a guardiã do que restava da velha civilização. Por isso, o patriarca de Roma, o papa, chegou a ter grande prestígio e autoridade.

Leão, o Grande
Podemos ver isso no caso de Leão I, "o Grande", de quem já se disse que foi o primeiro "papa", no sentido corrente do termo. Mais à fente, veremos sua intervenção nas controvérsias cristológicas que dividiram o Oriente durante seu tempo. Ao estudarmos estas controvérsias, e a participação de Leão, duas coisas ficam claras. A primeira é que sua autoridade não era aceita pelas partes em conflito, somente pelo fato de ele ser o bispo de Roma.
Enquanto os ventos políticos sopraram na direção contrária, Leão pouco pôde fazer para impor sua doutrina ao resto da igreja (particularmente no Oriente). E quando, por fim, sua doutrina foi aceita, isto não aconteceu porque ela provinha do papa, mas porque coincidiu com a do partido que no fim conseguiu sair vitorioso.
A segunda coisa que se nota é que, apesar de Leão não poder fazer valer sua autoridade de maneira automática, essa autoridade aumentou por ter sido usada em prol da ortodoxia e da moderação. Portanto, as controvérsias cristológicas, ao mesmo tempo que nos mostram que o papa não tinha jurísdição universal, nos mostram também como sua autoridade foi aumentando. Porém, enquanto que no Oriente duvidava-se de sua autoridade, em Roma e vizinhanças, esta autoridade se estendia até além dos assuntos tradicionalmente religiosos.
Em 452, os hunos, sob o comando da Átila, invadiram a Itália, tomaram e saquearam a cidade de Aquilea. Depois desta vitória, o caminho para Roma estava aberto, pois em toda a Itália não existia ne¬nhum exército capaz de barrar-lhes o caminho até a velha capital.
O imperador do Ocidente era um personagem débil e sem recursos, e o Oriente tinha dado a entender que não prestaria nenhum socorro. Nessas circunstâncias, Leão partiu de Roma e foi até o acampamento de Átila, para falar com o chefe bárbaro que todos temiam como "o chicote de Deus". Não sabemos o que Leão disse a Átila. Conta a lenda que, quando o papa se aproximou, junto dele apareceram São Pedro e São Paulo, ameaçando Átila com uma espada. Em todo caso, o fato é que Átila, depois desse encontro com Leão, abandonou sua intenção de atacar Roma e rumou com seus exércitos para o norte, onde morreu pouco depois.
Leão ainda ocupava o trono episcopal de Roma quando os vândalos tomaram a cidade, em 455. Naquela ocasião, o papa não conseguiu salvar a cidade das mãos dos seus inimigos. Porém, pelo menos, foi ele quem negociou com Genserico, o chefe vândalo, e conseguiu que ele proibisse incêndios e assassinatos. Ape¬sar da destruição causada pelos vândalos ter sido grande, ela poderia ter sido muito maior se Leão não tivesse intervindo.
Tudo isto nos mostra que em uma época em que a Itália e boa parte da Europa Ocidental estavam atoladas no caos, o papado preencheu o vazio, proporcionando certa estabilidade. Essa foi a principal razão por que os papas da Idade Média alcançaram um poder que os patriarcas de Constantinopla, Antioquia ou Alexandria nunca tiveram.
Leão, porém, não baseava sua autoridade somente em considerações políticas. Para ele a autoridade do bispo de Roma sobre todo o restante da igreja era parte do plano de Deus. Jesus Cristo tinha dado a São Pedro as chaves do Reino, e a Providência divina tinha levado o velho pescador à capital do Império. Pedro era a pedra sobre a qual Jesus Cristo tinha prometido edificar a sua igreja, e por isso quem quisesse construir sobre outro fundamento estaria edificando sobre a areia. Que grande mentira!
Foi a Pedro que o Senhor disse diversas vezes: "Apascenta as minhas ovelhas". E tudo isso que as Escrituras dizem sobre o líder dos apóstolos também vale para seus sucessores, os bispos de Roma.
Por isso a autoridade do papa não advém simplesmente do fato de Roma ser a antiga capital do Império, nem porque na época não havia em todo o Ocidente quem pudesse dirigir os destinos da sociedade, mas era parte do plano de Deus, e existiria para sempre, pois as portas do inferno não prevaleceriam contra ela. Mais e mais mentiras, pois uma exige sempre outra e mais outra.
Como vemos, em Leão encontramos os principais argumentos que através dos séculos seriam reunidos a favor da autoridade papal.

Os sucessores de Leão
Leão deve parte do seu prestígio à sua própria pessoa, e parte às circunstâncias do momento. Sem dúvida ele era um personagem excepcional, e diz-se com razão que em sua épo¬ca não existia quem pudesse se comparar a ele em firmeza de caráter, profundeza de percepção teológica e habilidade política. Porém tudo isto pôde se manifestar graças à situa¬ção política em que lhe coube viver. Com efeito, Leão foi papa durante um período de relativa anarquia na Itália, e boa parte da sua grandeza residiu em saber preencher o vazio criado por essa anarquia.
Quando Leão morreu, sucedeu-lhe Hilário que havia sido um dos seus principais colaboradores. Este fez tudo que pôde para continuar a política de Leão, se bem que com menor êxito. ----------
Durante o pontificado de Simplício, que sucedeu a Hilário, as condições políticas começaram a mudar. Em 476, Odoacro depôs o último imperador do Ocidente. Na teoria, isso queria dizer que agora todo o Império estava de novo reunido debaixo do imperador que residia em Constantinopla. Na verdade quem governava era Odoacro e os demais chefes bárbaros, como monarcas independentes, apesar de dizerem que governavam em nome do imperador. Portanto, sempre que estes monarcas eram fortes, faziam sombra ao papa, esforçando-se por manejá-lo de acordo com suas próprias intenções.
Em outras ocasiões, porém, não havia poder político algum capaz de se sobrepor ao caos, e então os papas se viam na obrigação de preencher este vazio.
Na época de Simplício e dos seus sucessores, Felix III, Gelásio e Anastácio l, as relações entre os papas e os impe¬radores de Constantinopla foram bastante tensas, pois os imperadores tratavam de conquistar a simpatia dos monofisistas (relativo à doutrina daqueles que admitiam em Jesus Cristo uma só natureza) da Síria e do Egito. Mas os papas e todo o Ocidente cristão se opunham a esta política.
Como veremos mais adiante, o monofisismo era uma das doutrinas resultantes das controvérsias cristológicas que abalaram o cristianismo de fala grega durante o século V. Se bem que esta doutrina tenha sido condenada oficialmente pelo concílio de Calcedônia em 451, ela ainda contava com numerosos adeptos no Egito e na Síria. Como estas províncias faziam parte das mais ricas regiões do Império, os governantes de Constantinopla fizeram tudo o que podiam para granjear para si a boa vontade dos monofisistas, o que, por sua vez, criou tensões entre os papas e os imperadores.
Por outro lado, na época de Félix, os godos invadiram a Itália, sob o comando de Teodorico. Em 493, Teodorico era dono de quase toda a península. Como os godos eram arianos, sempre temiam que seus súditos italianos conspirassem a favor de Constantinopla, e por isso Teodorico e seus sucessores vi¬ram com bons olhos as desavenças entre os papas e os imperadores e trataram de fomentá-las. Lembremo-nos também que foi Teodorico quem mandou prender e matar Boécio, suspeitando que seu ministro conspirava para trazer de volta o poder imperial.
Antes da vitória definitiva de Teodorico, o papa Félix III havia rompido relações com o patriarca de Constantinopla, Acácio. Isto é o que os historiadores ocidentais conhecem pelo “cisma de Acácio", enquanto os orientais culpam o papa pelo cisma. Agora, com os interesses de Teodorico e dos seus sucessores, o cisma se perpetuou.
Em 498, quando morreu o papa Atanásio II, a tensão entre godos e bizantinos resultou na existência de dois papas rivais. Enquanto os godos e boa parte da população romana apoiava Símaco, que os católicos até hoje consideram como
verdadeiro papa, o governo de Constantinopla sustentava Lourenço. Nas ruas de Roma houve conflitos armados em que morreram várias pessoas. Uma série de concílios se reuniu para resolver a questão, até que por fim Símaco saiu vencedor.
Sob o sucessor de Símaco, Hormisdas, a situação começou a mudar. O novo imperador, Justino, começou a se interessar cada vez mais pelo Mediterrâneo ocidental, e nesse intento, se aproximou do papa.
O sucessor de Justino, seu sobrinho Justiniano, seguiu essa política muito mais ativamente e sob seu governo o antigo Império Romano gozou de uma breve reascensão. Depois de uma série de negociações, e ainda enquan¬to Hormisdas era papa, o cisma entre Roma e Constantinopla foi eliminado.
No começo, o rei godo Teodorico se opôs a esta aproximação entre seus súditos e as autoridades imperiais. Porém mais perto do fim de seus dias, ele começou a suspeitar que os católicos conspiravam para derrubar o governo dos godos e devolver a Itália ao Império. Foi então que ele mandou prender e matar a Boécio.
Pouco depois Teodorico enviou o papa João l como embaixador para Constantinopla e, quando este voltou sem conseguir tudo o que o rei queria, o rei o conde¬nou à prisão, onde morreu. Conta-se que Teodorico estava empenhado a entregar todas as igrejas de Ravena aos arianos quando a morte o surpreendeu.
A morte de Teodorico iniciou o ocaso do reino godo na Itália. Teodorico morreu em 526, e em 535, o general constantinopolitano Belisário já tinha conquistado a maior parte da península.
A despeito de se esperar que a nova situação política resultaria proveitosa para o papado, isso não ocorreu. Somente em seus últimos anos de vida, o ariano Teodorico permitiu aos seus súditos ortodoxos que seguissem a sua própria consciência em questões de fé. Agora o imperador ortodoxo Justiniano, supostamente aliado do papa, impôs ao Ocidente o costume oriental de colocar os rendimentos da igreja nas mãos do estado.
O resultado foi toda uma sequência de papas que não passaram de títeres do imperador e da sua esposa Teodora. Os poucos que ousaram tentar interromper essa sequência sofreram todo o peso do desagrado imperial. Em meio às controvérsias teológicas da época, alguns destes papas escreveram páginas tristes da história do papado, como veremos mais à frente.
O domínio bizantino sobre a Itália, entretanto, não durou muito. Como já dissemos antes, o último baluarte godo foi conquistado pelas tropas imperiais em 562, e já seis anos depois, os lombardos invadiram o país. Seu poderio era tal que, se tivessem continuado unidos, não teriam demorado em conquistar toda a península. Eles, porém, se dividiram depois das suas primeiras vitórias, e a partir de então, as suas conquistas foram esporádicas.
Em todo caso a presença dos lombardos e as guerras constantes que essa presença acarretou obrigaram os papas a se ocuparem não só das questões religiosas, mas também da defesa de Roma e circunvizinhanças. Quando Justiniano morreu, o Império Oriental começou de novo a decair, e em pouco tempo a sua autoridade na Itália era quase nula. O exarcado (relativo aos delegado dos imperadores de Bizâncio na Itália ou na África) de Ravena, que teoricamente pertencia ao Império, se viu obrigado a se defender contra os lombardos por conta própria.
O mesmo podemos dizer de Roma, sob a direção do papa. Quando Benedito l faleceu em 579, as tropas lombardas assediaram a cidade. Seu sucessor Pelágio II salvou-a, oferecendo aos lombardos altas somas em dinheiro. Além disto, já que Constantinopla não lhe enviava ajuda, Pelágio iniciou negociações com os francos, para que estes atacassem os lombardos pelo norte. Estes contatos iniciais ainda não levaram a ações militares, mas serviram de sinal para o que sucederia várias gerações mais tarde, quando os francos se transformaram nos principais aliados do papado.

Gregório, o Grande
As coisas estavam assim quando uma terrível epidemia irrompeu na Itália. Pelágio fez tudo o que podia para enfrentar este novo desafio, mas acabou ele mesmo sucumbindo à peste. Era o ano de 590, e o eleito para sucedê-lo seria um dos maiores papas de todos os tempos.
Gregório nasceu por volta do ano 540 em Roma, em uma família que, ao que parece, pertencia à velha aristocracia do lugar. Era a época em que Justiniano reinava em Constantinopla, e seus generais estavam empenhados em derrotar os godos na Itália. Depois das primeiras vitórias, Justiniano tirara seu general Belisário do campo de batalha, quando Totila conseguiu reorganizar as tropas godas, e deter por algum tempo o avanço dos exércitos imperiais.
Em 545, Totila sitiou Roma, que se rendeu a ele em dezembro de 546. Quando os godos entraram na cidade, o arcediago (O primeiro entre os diáconos) Pelágio (o mesmo que depois seria papa) saiu ao encontro do rei vencedor e lhe suplicou que respeitasse a vida e a honra dos vencidos. Totila concordou, e por isso a queda de Roma não foi a catástrofe que poderia ter sido.
É muito provável que Gregório tenha estado em Roma durante estes acontecimentos. Em todo caso não há dúvida de que a atuação de Pelágio foi um dos modelos que Gregório seguiu quando coube a ele ser papa. ,
Tudo isto nos mostra que a Roma em que Gregório cresceu estava muito longe daquela cidade nobre dos tempos de César Augusto. Pouco depois da vitória de Totila, Belisário e as tropas imperiais tomaram novamente a cidade, somente para perdê-la de novo. Com tantos sítios seguidos a população da antiga capital reduziu-se enormemente. Muitos dos velhos monumentos e edifícios foram destruídos, ou durante os comba¬tes, ou para utilizar suas pedras para reforçar as defesas da cidade. Os aquedutos foram interrompidos seguidamente pelos diferentes atacantes, e por fim ficaram abandonados. Descuidou-se dos sistemas de drenagem dos antigos pântanos, e as inundações frequentes traziam consigo epidemias não menos frequentes.
Sabemos pouco da juventude de Gregório na cidade. Parece que ele foi prefeito, antes de decidir ser monge. Algum tempo depois, o papa Benedito o fez diácono, isto é, mem-bro do conselho consultivo e administrativo do papa. Quan¬do Benedito morreu, Pelágio II lhe sucedeu, e este nomeou o monge Gregório seu embaixador na corte de Constantinopla.
Na cidade do Bósforo, Gregório passou seis anos representando os interesses do papa e dos romanos diante do imperador. Durante este tempo esteve repetidamente envolvido nas controvérsias teológicas que sempre ferviam na corte bizantina, porém apesar disso nunca aprendeu grego. Ali também ele fez amizade com Leandro de Sevilha, a quem já nos referimos como principal instrumento da conversão do reino visigodo da Espanha à fé católica.
Por fim, em 586, o papa Pelágio enviou outro embaixador, e Gregório pôde regressar à tranquilidade do seu mosteiro em Roma. No mosteiro de Santo André, Gregório logo foi feito abade, ao mesmo tempo que servia ao papa Pelágio como ajudante e secretário.
Nestes tempos a situação em Roma era difícil, pois dois anos antes do regresso de Gregório, os lombardos tinham acabado por se unir debaixo de um rei, com o propó¬sito de completar a conquista da Itália. Apesar do imperador enviar alguns recursos esporádicos para a defesa de Roma e de outras cidades ainda não conquistadas, e apesar dos francos invadirem frequentemente os territórios lombardos, vindos do outro lado dos Alpes, a situação militar era precária.
Para complicar as coisas, irrompeu uma grande epidemia na cidade, dizimando a população. Pouco antes houvera uma inundação que destruíra os principais armazéns da igreja, onde era guardado o trigo de que dependia boa parte dos habitantes.
Como a peste produzia alucinações, começaram a circular rumores de todo tipo de coisa estranhas. Um grande dragão apareceu no rio Tibre. Do céu choviam flechas de fogo. A morte aparecia aos que iam morrer. O pânico se somou à fome e à peste. Para cúmulo dos males, o papa Pelágio, que tinha se esforçado para manter a cidade relativamente limpa, com a ajuda de Gregório e de outros, para enterrar os mortos e alimentar os famintos, adoeceu da praga e morreu.
Em tais circunstâncias, não eram muitos os que ambicio¬navam o posto vago. O próprio Gregório não tinha outro desejo senão regressar à tranquilidade do seu mosteiro. Porém o clero e o povo o elegeram com entusiasmo e, ao menos no momento, Gregório não podia fazer outra coisa senão continuar a obra interrompida de Pelágio.
Uma das suas primeiras medidas, entretanto, foi escrever ao imperador pedindo que confir¬masse sua nomeação, pois naquela época havia o costume dos imperadores de Constantinopla darem sua aprovação ao papa eleito, antes que ele pudesse ser consagrado. Porém, o prefeito da cidade, que sabia que não poderia cumprir com suas obrigações sem o auxílio de um papa como Gregório, intercep¬tou a carta.
Outra das medidas de Gregório foi convocar todo o povo para uma grande procissão de penitência, pedindo a Deus que perdoasse seus pecados e que fizesse cessar a praga. Depois de ouvir um sermão do novo papa, que ainda existe, todo o povo saiu em procissão angustiada, e conta-se que a praga cessou.
Mesmo não desejando ser papa, assim que Gregório se viu instituído no cargo começou a cumprir com suas obriga¬ções cabalmente. Na cidade de Roma, organizou a distribuição de alimentos aos necessitados, de modo que havia quem levasse comida até os cantos mais afastados da cidade. Ao mesmo tem¬po o papa supervisionava as remessas de trigo que vinham da Sicília, para ter certeza de que não faltariam provisões. Por outro lado era necessário garantir que a cidade fosse ha¬bitável e defensável, e Gregório se dedicou com afinco a essas tarefas, que normalmente cabiam às autoridades civis. Na medida do possível, os aquedutos foram reconstruídos, bem como as fortificações, e a moral da guarnição foi renovada, pois ela quase a tinha perdido por falta de pagamento.
Para defender a cidade contra os lombardos, Gregório solicitou ajuda de Constantinopla. Porém como esta ajuda não chegava, em duas ocasiões ele se viu obrigado a negociar diretamente com o inimigo, como se ele fosse o representante do poder civil. Por fim conseguiu com a rainha Teodolinda que ela deixasse educar seu filho na fé católica, e não na ariana dos lombardos.
Em tudo isto, por causa da inexistência de uma política por parte do Império, Gregório viu-se obrigado a atuar por conta própria, e por isso ele é considerado o fundador do poder temporal do papado.
Este poder se estendia diretamente a uma série de territórios que de um ou outro modo tinham se tornado propriedade do papado, e que recebiam o nome comum de "património de São Pedro". Além das igrejas e de vários palácios em Roma, ao redor da velha capital havia terras que faziam parte deste património, bem como em outras partes da Itália, na Sicília, Córsega, Sardenha, Gália, e até na África.
Como proprietário de todas estas terras, o papado gozava de enormes riquezas. E Gregório pôs esse recurso a serviço da grande tarefa de alimentar o povo romano. Apesar de não lhe pertencer o governo da cidade de Roma, Gregório viu-se obrigado a exercê-lo. Esse precedente, junto com a decadência do poder imperial na Itália, fez com que, com o passar do tempo, os sucessores de Gregório ficassem sendo donos e governantes da cidade de Roma e arredores.
Algum tempo depois, perto do fim do século VIII, alguém falsificou um documento, a chamada Doação de Constantino, que pretendia que o grande imperador tivesse doado aqueles territórios aos sucessores de Pedro.
Em Roma, além de se ocupar com as necessidades físicas do povo, Gregório dedicou também seu tempo à vida da igreja. Ele dava muita importância à pregação, razão pela qual dedicou boa parte dos seus esforços pregando nas diversas igrejas da cidade e assegurando-se que todo o clero desse atenção especial à pregação.
Os luxos a que alguns tinham se acostumado foram proibidos, assim como pagamentos excessivos que alguns clérigos recebiam por seus serviços. Além disso, Gregório adotou medidas em favor do celibato eclesiástico, que paulatinamente tinha se generalizado na Itália, mas que muitos não cum¬priam.
Como bispo de Roma, Gregório se considerava também patriarca do Ocidente. Sem reclamar para o papado a autoridade universal que Leão tinha definido antes, Gregório fez muitos mais que seu antecessor para aplicar esta autoridade em diversas regiões. Na Espanha ele deu apoio às medidas que seu amigo Leandro de Sevilha e o rei Recaredo tomavam em favor da conversão do país do arianismo para o catolicismo.
Na verdade, foi ele quem interpretou assim a rebelião de Hermenegildo, a quem nos referimos antes, que logo foi considerado mártir da fé ortodoxa, sendo que mais tarde apareceu o culto a "São Hermenegildo".
Na África, o principal problema não eram os arianos, mas os donatistas, cujo cisma ainda perdurava. Na época de Gregório, e graças às conquistas de Justiniano e de seu general Belisário, todo o norte da África fazia parte do Império Romano. O Egito estava sob a jurisdição do patriarca de Alexandria. Gregório, entretanto, como patriarca do Ocidente, achava que tinha certa jurisdição sobre o antigo reino dos vândalos, que sempre fizera parte do Império do Ocidente. Por isso tratou de intervir nessa região para destruir o donatismo que ainda existia.
Os bispos africanos, todavia, não tinham interesse em levar avante a política intransigente que Gregório queria lhes impor, e se contentaram em conviver com os donatistas, como tinham aprendido a fazê-lo durante os dias difíceis do regime vândalo.
Gregório, por seu lado, fez pressão para que as autoridades imperiais aplicassem as leis de Constantino e dos seus sucessores imediatos contra os donatistas, que supostamente ainda estavam em vigor, mas que ninguém aplicava.
Os representantes de Constantinopla, entretanto, também se mostraram mais tolerantes que o papa, de modo que a política deste, no norte da África, foi, em termos gerais, um fracasso. À Inglaterra, Gregório enviou Agostinho e seus companheiros de missão, e depois outros contingentes que continuassem e ampliassem a obra. Nos territórios francos Gregório aumentou o prestígio da sede romana através de uma série de manobras hábeis. Os diversos reis francos estavam em constantes lutas entre si, cada um tentando aumentar seus domínios às expensas dos seus vizinhos, e obter a hegemonia da região. Em tais circunstâncias as boas relações com o prestigioso bispo de Roma poderiam contribuir para o triunfo de um ou outro reino.
Gregório aproveitou, então, os desejos de vários destes governantes para estabelecer relações com eles, sobretudo ao outorgar honras especiais a este ou aquele bispo deste ou daquele reino. Ao mesmo tempo, começou a usar esses contatos para pedir aos governantes que reformassem os costumes eclesiásticos em seus domínios, onde era hábito comprar e vender cargos na igreja, e onde era frequente o caso de algum leigo ambicioso ser nomeado bispo de um dia para outro.
Em outras tentativas de reforma, Gregório fracassou redondamente, pois os chefes francos queriam reter seu poder sobre a igreja. E o que o papa pedia acabaria com esse poder. Porém, ao mesmo tempo que não conseguiu as reformas desejadas, Gregório conseguiu aumentar o prestígio e a autoridade do papado nos territórios francos, pois a partir de então ficaram numerosos precedentes que pareciam indicar que o papa tinha jurisdição sobre os assuntos eclesiásticos na França.
Em resumo, mediante a simples política de intervir em diversas situações, quase sempre com tato e habilidade diplomática, Gregório estendeu a esfera de influência do papado.
Para esta tarefa ele contou com a ajuda do monasticismo beneditino, que começava a se disseminar pela Europa ocidental.
Já que o monasticismo e o papado foram as duas características principais do cristianismo medieval, podemos dizer que no tempo de Gregório foram colocadas as bases que, a longo prazo, permitiram à igreja ocidental sair da "era das trevas". Porém, como veremos adiante, a obra de Gregório levou séculos até chegar à sua expansão máxima, e os períodos de corrupção e obscurantismo foram mais frequentes que os momentos breves de luz e reforma.
Não faríamos justiça a todas as razões por que Gregório recebeu o título de "o Grande", se nos esquecêssemos de sua obra literária e teológica. Desde antes de ser papa, ele tinha se dedicado ao estudo das Escrituras e dos antigos autores cristãos. Sendo papa, mesmo dedicando menos tempo a este estudo, produziu numerosos sermões e cartas, muitos dos quais ainda existem. Através destes escritos, ele fez sentir seu impacto sobre todo o pensamento medieval.
Gregório não era um pensador de altas esferas, nem um comentarista original das Escrituras. Pelo contrário, ele achava que dever-se-ia evitar por todos os meios possíveis o que parecia ser "original" ou "novo", pois não é tarefa do mestre cristão dizer algo novo, mas repetir o que a igreja tem ensinado desde seu nascimento, e por isso somente os hereges são autores ou pensadores originais.
Quanto a si, Gregório se conformava em ser o porta-voz da antiguidade cristã, seu intérprete para tempos presentes. Bastava-lhe ser discípulo de Agostinho, e mestre dos ensinos deste.
Porém os séculos não passam em vão. Um abismo enorme se abria entre o bispo de Hipona e seu intérprete de fins do sexto século. Apesar de toda sua sabedoria, Gregório viveu em uma época de ignorância, e em certa medida tinha de participar dessa ignorância. Além disso, somente por considerar Agostinho seu mestre infalível Gregório já está torcendo o espírito do seu venerado mestre( cujo gênio residia, pelo menos em parte, em sua mente inquieta e suas conjecturas arriscadas. O que para Agostinho não passava de suposição, para Gregório passa a ser certeza. Assim, por exemplo, Agostinho se aventurara a dizer que talvez haja um lugar onde os que morrem em pecado tenham de passar por um processo de purificação, antes de entrar na glória.
Baseando-se nessa conjectura de seu mestre, Gregório declara que indubitavelmente existe este lugar, e começa a desenvolver a doutrina do purgatório.
Principalmente no que se refere à doutrina da salvação, foi que Gregório deformou e até transformou os ensinos de Agostinho. As doutrinas agostinianas da graça irresistível e da predestinação passaram despercebidas nas obras de Gregório, que dedicou sua atenção à questão de como podemos oferecer a Deus uma satisfação pelos pecados que cometemos. Esa satisfação oferecemos através da penitência, que consiste em arrependimento, confissão e pena ou castigo. A estas três fases se junta a absolvição sacerdotal, que confirma o perdão que Deus já conferiu ao penitente. Os que morrem na fé e em comunhão com a igreja, mas não fizeram suficiente penitência por seus pecados, vão para o purgatório, onde passam algum tempo antes de ir para o céu.
Uma das maneiras de os vivos ajudarem os mortos a saí¬rem do purgatório é oferecer missas em seu nome. Para Gregório, a missa é um sacrifício em que Cristo é imolado de novo. E diz a lenda que, em certa ocasião em que esse papa celebrava a missa, o Crucificado lhe apareceu. Esta idéia da missa como sacrifício, que talvez poderia ser deduzida de alguns textos de Agostinho, mesmo que forçando-os, é parte fundamental da devoção e da teologia de Gregório.
Conta-se que quando Gregório ainda era abade de Santo André ficou sabendo que um dos seus monges, que estava à beira da morte, tinha escondido algumas moedas de ouro. A sentença do abade foi dura: o monge pecador morreria sem escutar uma palavra de perdão ou consolo, e seria enterrado em um monte de esterco, junto com seu ouro. Depois de cumprida esta sentença, e para salvação da alma de Justo (este era o nome do monge), Gregório ordenou que durante os próximos trinta dias a missa do mosteiro fosse lida em memória a ele. Findado este período, o abade declarou que, de acordo com uma visão que o monge Copioso, irmão carnal do falecido, tivera, a alma de Justo tinha saído do purgatório e estava agora na glória.
Tudo isto não foi invenção de Gregório. Era mais parte do ambiente e das crenças da época. Porém, enquanto os antigos mestres da igreja haviam se esforçado para evitar que a doutrina cristã fosse contaminada com superstições populares, Gregório simplesmente aceitou todas as crenças, superstições e lendas da sua época como se fossem verdade evangélica.
Suas obras estão cheias de narrações de milagres, aparições de defuntos, anjos e demónios, e outras coisas anti-bíblicas. Quando, com o correr do tempo, a produção literária de Gregório passou a ter a mesma autoridade infalível que tinha tido a de Santo Agostinho, boa parte das crenças populares do século sexto foi realmente incorporada à doutrina cristã.
Os sucessores de Gregório
Os papas que seguiram a Gregório mostraram-se incapazes de continuar a sua obra. Seu sucessor imediato, Sabiniano, achou ser prudente vender a bom preço o trigo que Gregório tinha distribuído gratuitamente. Quando os pobres se queixaram, dizendo que somente os ricos podiam comer, enquanto eles morriam de fome, Sabiniano começou uma companha de difamação contra Gregório, dizendo que ele tinha utilizado o património da igreja para se fazer popular.
A reação foi que começou uma campanha pública contra o papa reinante. Pedro, o Diácono, admirador fiel de Gregório, declarou que, ainda em vida deste, tinha visto o Espírito Santo, em forma de pomba, sussurrando-lhe ao ouvido. A partir de então, boa parte da iconografia cristã tem apresentado Gregório com uma pomba sobre seu ombro. Quando Sabiniano morreu, antes de completar dois anos de pontificado, dizia-se que Gregório lhe tinha aparecido três vezes, sem que o papa lhe desse atenção, e que na quarta aparição, o espírito de Gre¬gório se enfureceu tanto que matou Sabiniano com um golpe na cabeça.
O próximo papa, Bonifácio III, conseguiu que o imperador Focas lhe concedesse o título de "bispo universal", que Gregório tinha recusado. Mais tarde, outros papas citaram esse precedente para dizer que a igreja bizantina também chegou a reconhecer a supremacia de Roma. Porém o fato é que o imperador Focas, que deu este título a Bonifácio, era um usurpador, e que a única razão de ele honrar assim o papa era que ele estava aborrecido com o patriarca de Constantinopla, que por algum tempo havia se chamado de "bispo universal". Em todo caso, o papado de Bonifácio III não durou um ano, e quando o imperador Focas morreu, o patriarca de Constantinopla voltou a usar o cobiçado título.
De 607 a 625, houve uma sucessão de três papas que conseguiram restaurar parte da glória que o papado tinha perdido: Bonifácio IV, Deodato e Bonifácio V. Estes pontífices voltaram â vida austera que Gregório tinha levado, e em meio às vicissitudes da época puderam fazer algumas reformas na disciplina eclesiástica e organizar a igreja inglesa de acordo com os padrões romanos.
Durante o próximo papado, entretanto, começaram a aparecer as consequências funestas da relação estreita que existia entre Roma e Constantinopla. Como vimos, desde o tempo de João Crisóstomo os imperadores de Constantinopla tinham se acostumado a ter a última palavra em questões eclesiásticas.
No Ocidente a situação era bem diferente, pois frequentemente não houvia um poder civil efetivo. No século VII, já que não havia imperador no Ocidente, e a Itália estava na esfera de influência de Constantinopla, os imperadores orientais quiseram impor sua vontade sobre os papas, assim como o tinham feito com os patriarcas de Constantinopla. O papa Honório, sucessor de Bonifácio V, teve de enfrentar a questão do monotelismo, doutrina que discutiremos depois, e que o imperador Heráclio apoiava. Pressionado pelo imperador, o papa se declarou monotelista. Quando depois de muitas controvérsias a questão foi resolvida no concílio de Constantinopla, em 680, o papa Honório, que tinha morrido quarenta anos antes, foi declarado herege.
Enquanto isso, os sucessores de Honório tinham se mostrado mais firmes diante da doutrina monotelista e das pretensões imperiais. Só que tiveram de pagar um preço alto por essa firmeza. Durante o papado de Severino, em 640, o exarca de Ravena, que era o principal representante imperial na Itália, tomou Roma e se apossou dos tesouros da igreja. Uma parte da presa foi enviada para Constantinopla, e os clérigos que protestaram foram exilados.
Pouco depois, o papa Martim sofreu consequências semelhantes. Na época, em Constantinopla reinava Constante II, que quis encerrar o assunto e simplesmente proibiu qualquer debate sobre ele. Ao papa isso pareceu uma usurpação de poder por parte do imperador, e ele convocou um concílio que se reuniu em Latrão e condenou o monotelismo, em franca desobediência ao mandato imperial. O resultado foi que as tropas do exarcado de Ravena sequestraram o papa, que foi levado para Constantinopla, e dali para o exílio, onde morreu.
O monge Máximo, que tinha apoiado o papa decididamente, foi enviado ao exílio, depois de serem cortadas a língua e a mão direita dele, para que não pudesse difundir as suas supostas heresias. Depois desta mostra do poder imperial, os sucessores de Martim obedeceram às ordens de Constante, e guardaram silêncio em relação ao monotelismo. Quando afinal o concílio de Constantinopla se reuniu em 680, isto foi possível porque as circunstâncias políticas tinham mudado, e o novo imperador queria chegar a um acordo mais aceitável para a igreja ocidental. A isso seguiu-se um período de paz entre Roma e Constantinopla, durante o qual a primeira se submeteu à segunda, ao que parece sem nenhum protesto.
O conflito entre o Império oriental e a igreja do Ocidente surgiu de novo quando do concílio que o imperador Justiniano II convocou em fins do século VII, que é conhecido como concílio "em Trulho", por ter se reunido num dos salões do palácio imperial que recebia este nome. Entre outras coisas, tratou-se ali do casamento dos clérigos. Na época tinha se estabelecido o costume, tanto no Oriente como no Ocidente, de os clérigos serem proibidos de casar depois de sua ordenação. Porém enquanto no Oriente os homens casados tinham permissão de continuar a vida matrimonial depois da ordenação, no Ocidente, em tais casos eles eram proibidos de qualquer ato sexual.
O concílio em Trulho rejeitou o costume ocidental, declarando que não há base na Escritura para proibir aos clérigos casados que continuem tendo relações sexuais com suas esposas. O papa Sérgio se negou a aceitar as decisões do concílio, e insistiu em que todos os clérigos deveriam ser celibatários. Justiniano tentou tratá-lo, assim como seu antecessor tinha tratado Martim; porém o povo romano se rebelou, e os oficiais imperiais teriam ficado em maus lençóis se o papa não tivesse intervindo junto ao povo, pedindo-lhe moderação.
Justiniano se preparava para se vingar desse insulto quando foi deposto. Quando afinal conseguiu voltar ao trono, ele começou uma vingança sistemática contra todos que se tinham oposto a ele no período anterior. Como o papa Sérgio tinha morrido, e o imperador não podia se vingar dele, insistiu em que o novo papa, Constantino, aceitasse os decretos do concílio em Trulho.
Com este propósito em mente, ele chamou o papa a Constantinopla. Dando provas de uma coragem fora do comum, Constantino aceitou o convite do imperador. Não sabemos no que consistiram as conversações entre o imperador e o papa. O fato é que este último, apesar de ter de se humilhar diante do primeiro, voltou a Roma com o favor imperial, e não se viu obrigado a aceitar os decretos do discutido concílio. Pouco depois o imperador foi deposto e decapitado. Quando sua cabeça foi enviada a Roma, o povo a arrastou pelas ruas.
O sucessor do papa Constantino, Gregório II, também entrou em choque com a corte de Constantinopla. A causa das novas desavenças foi a questão das imagens, de que trataremos depois, que foi principalmente uma contro¬vérsia dentro da igreja oriental. Uma vez mais o papa recebia ordens do imperador, que lhe ditava o curso que deveria seguir em assuntos ao que parece puramente religiosos.
Nesse caso, o imperador ordenou que nas igrejas as imagens dos santos não fossem mais veneradas. Em todo caso o que importa aqui é que houve de novo uma ruptura entre Roma e Constantinopla, pois o papa e seus seguidores se negaram a obedecer ao mandato imperial. Tanto Gregório II quanto seu sucessor, Gregório III, convocaram concílios que se reuniram em Roma e que condenaram os "iconoclastas" (como eram chamados os que se opunham às imagens).
O imperador, enfurecido, enviou uma grande esquadra contra Roma. Porém esta foi envolvida por uma grande tempestade, e boa parte da frota imperial naufragou. Pouco antes, os muçulmanos tinham tomado várias das províncias mais ricas do Império, e se apossado também de toda a costa sul do Mediterrâneo. Todos estes desastres marcaram o fim da influência de Cons¬tantinopla sobre o Mediterrâneo ocidental.
Quanto ao que se refere ao papado, esta mudança de circunstâncias podemos ver no fato de que, até Gregório III, a eleição de um novo papa não era considerada válida enquanto não ratificada pelo impe¬rador, ou por seu representante em Ravena. Depois de Gregó¬rio ninguém mais buscou esta ratificação.
Essa nova situação fez necessária uma mudança radical na política internacional dos papas. Depois da destruição da frota bizantina, ao mesmo tempo que o papa se sentiu alivia¬do, pois a ameaça desaparecera, viu-se também assediado pelo crescente poder dos lombardos, que durante várias gerações vinham tentando transformar-se em donos absolutos da Itália.
As tropas imperiais tinham sido o principal obstáculo às ambições dos lombardos. Agora que estas tropas tinham ido embora, o que o papa podia fazer para impedir que seus antigos inimigos se apossassem de Roma? A resposta era clara. Além dos Alpes os francos tinham se transformado em uma grande potência. Pouco antes, seu chefe, Carlos Martel, tinha detido o avanço dos muçulmanos ao derrotá-los na batalha de Tours ou Poitiers. Então, por que não pedir a quem tinha salvo a Europa do islã que salvasse agora Roma dos lombardos? Este foi o pedido que Carlos Martel recebeu do papa, junto com a promessa de ser nomeado "cônsul dos romanos".
Mesmo sendo impossível saber se Gregório se apercebeu da magnitude do passo que estava dando, o fato é que naquela carta do papa ao mordomo do palácio dos francos vários precedentes estavam sendo criados. O papa estava se dirigindo a Carlos Martel e lhe oferecendo honras que tradicionalmente só o imperador, ou o senado romano, podiam outorgar, e o fazia sem consultar Constantinopla.
Gregório estava agindo mais como estadista autônomo do que como súdito do Império ou como líder espiritual. Por outro lado, com estas gestões entre Gregório e Carlos Martel estavam sendo dados os primeiros passos para o surgimento de uma Europa Ocidental unida (pelo menos em teoria) sob um papa e um imperador.
Nisso estavam as coisas quando morreram Gregório e Carlos Martel. Luitprando, o rei dos lombardos, tinha desistido de atacar os territórios romanos, talvez porque sabia das negociações empreendidas com os francos e não queria provocar a inimizade de vizinhos tão poderosos. Porém, quando Carlos Martel morreu, seu poder foi dividido entre seus dois filhos, e Luitprando começou novamente a avançar contra Roma e Ravena.
O novo papa, Zacarias, não tinha outro recurso que o prestígio do seu cargo. Assim como Leão se pôs diante do avanço de Átila, Zacarias dispôs-se a enfrentar Luitprando face a face. A entrevista teve lugar na igreja de São Valentim, em Terni, e Luitprando devolveu ao papa todos os territórios recentemente conquistados, além de várias cidades que os lombardos já dominavam havia três décadas.
Zacarias regressou a Roma em meio às aclamações do povo, que fez uma procissão de ação de graças até a basílica de São Pedro. Quando Luitprando atacou Ravena, Zacarias foi novamente falar com ele, e outra vez conseguiu uma paz vantajosa.
Depois da morte de Luitprando, entretanto, seus sucessores estavam menos dispostos a se dobrarem diante da autoridade, ou das súplicas do papa, e foi então que Zacarias concordou com a deposição do rei franco Childerico III, "o estúpido", e com a coroação de Pepino, o filho de Carlos Martel. Deste modo continuava a política estabelecida por Gregório III, de se aliar com os francos diante da ameaça dos lombardos.
Zacarias morreu no mesmo ano da coroação de Pepino (752), porém seu sucessor, Estêvão II, logo teve oportunidade para cobrar a dívida de gratidão que o novo rei franco tinha contraído com Roma. Ameaçado pelos lombardos, Estêvão viajou até a França, onde ungiu de novo o rei e seus filhos, ao mesmo tempo que lhes suplicou ajuda contra os lombar¬dos.
Duas vezes Pepino invadiu a Itália para defender o papa, e na segunda vez lhe doou não só Roma e arredores, mas também Ravena e outras cidades que os lombardos tinham conquistado, e que tradicionalmente tinham sido governadas por Constantinopla.
Apesar dos protestos do imperador, o papa e o rei dos francos não lhe deram ouvidos. O império Bizantino já não era uma potência digna de ser levada em conta no Mediterrâneo ocidental. E o papa agora era soberano temporal de boa parte da Itália. Isso era possível, pelo menos na teoria, porque o imperador que reinava em Constantinopla se tinha declarado contrário às imagens, e por isso não era necessário obedecer-lhe.
Quando Estêvão morreu, seu irmão, Paulo, foi seu sucessor, e ocupou a sede pontifícia por dez anos, sempre sob a proteção de Pepino. Porém quando este papa morreu, um duque, vizinho poderoso, se apoderou à força da cidade e nomeou seu irmão Constantino papa.
Este é um dos primeiros exem¬plos de uma situação que se repetirá através de toda a Idade Média. Já que agora o papado era uma possessão territorial, e além disto gozava de grande prestígio e autoridade em outras regiões da Europa, muitos o cobiçavam não por razões religiosas, mas puramente políticas.
Como não havia um sistema de eleição rigorosamente estabelecido, não faltaram nobres das proximidades, ou famílias poderosas de Roma mesmo, que se apossaram do papado e o utilizaram para seus próprios fins.
Neste caso, todavia, Constantino não pôde manter-se no poder, pois alguns romanos apelaram aos lombardos, que intervieram com as armas, depuseram o usurpador, e procederam a uma nova eleição. O papa eleito foi Estêvão III, que empreendeu uma vingança terrível contra os que tinham apoiado a usurpação, vazando-lhes os olhos, mutilando-os e encarcerando-os.
Pouco depois morreu Pepino, o rei dos francos, e seus filhos Carlos (Carlos Magno) e Carlomão lhe sucederam, divi¬dindo o reino. Quando Carlomão morreu em 771, Carlos Magno se apossou dos territórios do seu irmão, deserdando a seus sobrinhos. Isso não era totalmente irregular, pois entre os francos a coroa não era estritamente hereditária, mas eletiva. Apesar do costume de herdar os territórios ter surgido através das gerações, quando da morte de Carlomão, os nobres do seu reino deveriam pelo menos ter a chance de eleger seu sucessor ou sucessores. Carlos Magno fez isto, sabendo que os nobres do reino do seu falecido irmão preferiam a ele por rei, aos fracos e inexperientes filhos de Carlomão.
Estes se refugiaram na corte de Desidério, rei dos lombardos, que se fez defensor de sua causa. O resultado de tudo isso foi uma aliança ainda mais estreita entre o papa, na época Adriano, e Carlos Magno.
Desidério decidiu aproveitar uma oportunidade em que Carlos Magno estava envolvido em outras guerras fronteiriças para atacar alguns dos estados pontifícios. Porém Carlos Magno atravessou inesperadamente os Alpes e infligiu tantas derrotas aos lombardos que a força destes ficou seriamente abalada.
Em um ato solene Carlos Magno confirmou a doação de territórios que seu pai Pepino tinha feito ao papa. Isto ocorreu no ano 774. A partir de então, Carlos Magno visitou por diversas vezes a cidade papal.
Uma destas visitas teve lugar em fins de 800. O sucessor de Adriano, Leão III, tinha sido atacado fisicamente por uma das famílias poderosas de Roma, que desejava o papado para um dos seus membros. Leão atravessou os Alpes e pediu socorro a Carlos Magno, que voltou novamente a Roma, escutou os argumentos de ambas as partes, e se decidiu a favor do papa. No dia de Natal, Leão presidiu o culto solene, estando presentes Carlos Magno, toda sua corte e seus principais oficiais, bem como uma enorme multidão do povo romano. No fim do culto, o papa tomou uma coroa, andou até. onde estava o rei, coroou-o, e proclamou: "Deus dê vida e vitória ao grande e pacífico imperador!"
Ao ouvir estas palavras todos os presentes irromperam em vivas e aclamações, enquanto o papa ungia o novo imperador.
Era um ato sem precedentes. Até poucas gerações antes, a eleição de cada novo papa não era válida enquanto não fosse confirmada pelo imperador de Constantinopla. Agora um papa se atrevia a coroar um rei com o título de imperador. E o fazia sem consulta prévia ao Império Oriental.
É impossível saber com certeza quais eram os propósitos específicos de Leão ao outorgar a Carlos Magno a dignidade imperial. Uma coisa, porém, estava clara. Desde o tempo de Rômulo Augústulo não houvera imperador no Ocidente. Em teoria, o imperador de Constantinopla o era de todo o Império Romano. Porém, na verdade, o governo imperial fora efetivo no Ocidente somente em algumas regiões da África e da Itália. E também nestas, sua autoridade foi ignorada frequentemente. Em tempos mais recentes os muçulmanos tinham conquistado os territórios imperiais da África, e por diversas razões a autoridade do imperador na Itália tinha sido limitada ao extremo sul da península. Agora, em virtude da ação de Leão, havia um imperador no Ocidente, e o papado se colocava definitivamente fora da jurisdição do Império do Oriente. Havia nascido a cristandade ocidental.

2 comentários:

Andressa Bragança disse...

PARABENNNSSS pelo belissimo trabalho.
Amei o blog e ja esta em meus favoritos.
AMO historia da Igreja
Abraços

Andressa

Enéias Ramos Corrêa disse...

Parabéns pelo blog.
Gostaria de saber se o digno Reverendo pode me sugerir um livo que trate do dogma da transubstanciação e conseqüente exlusão de crianças da Eucaristía.
Obrigado.

Pr. Enéias Corrêa