quinta-feira, 28 de junho de 2007

História da Igreja 16

A Era dos Reformadores

Parte 3
A Teologia de Lutero
Antes de continuar narrando a vida de Lutero e seu trabalho reformador, devemos nos deter para considerar a sua teologia que foi a base de sua vida e de sua obra. Ao chegar o momento da dieta de Worms, a teologia do Reformador havia alcançado sua maturidade. Então a partir daí, o que Lutero fez foi simplesmente elaborar as consequências dessa teologia. Portanto, esse parece ser o momento adequado para interrom¬per a narrativa e dar ao leitor uma idéia mais adequada da visão que Lutero tinha da mensagem cristã. Ao contarmos sua perigrinação espiritual, dissemos algo sobre a doutrina da justificação pela fé. Porém essa doutrina, apesar de ser fundamental, não é a totalidade da teologia de Lutero.

A Palavra de Deus
É de todos sabido que Lutero tratou de fazer da Palavra de Deus o ponto de partida e a autoridade final de sua teologia. Como professor das Sagradas Escrituras, a Bíblia tinha para ele qrande importância, e nela descobriu a resposta para suas angústias espirituais. Mas isso não quer dizer que Lutero fosse um biblicista rígido, pois para ele a Palavra de Deus é muito mais que a Bíblia. A Palavra de Deus é nada menos que Deus mesmo.
Essa última afirmação se baseia nos primeiros versículos do Evangelho de João, onde se diz que: "no princípio era o Verbo (ou Palavra), e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus". As Escrituras nos dizem que, num sentido estrito, a Palavra de Deus é Deus mesmo, a segunda pessoa da Trindade, o Verbo que se fez carne e habitou entre nós. Assim, quando Deus"fala, o que sucede não é simplesmente que nos comunica certa informação, mas que também e, sobretudo, que Deus atua. Isto pode ser visto também no livro de Génesis, onde a Palavra de Deus é a força criadora: "Disse Deus...". Assim quando Deus fala, Deus cria o que pronuncia. Sua Palavra além de dizer-nos algo, faz algo em nós e em toda a criação. Essa Palavra se encarnou em Jesus Cristo que, por sua vez, é a revelação máxima de Deus e sua máxima ação. Em Jesus, Deus se nos deu a conhecer. Porém, também nele venceu os poderes do maligno que nos sujeitavam. A revelação de Deus é também a vitória de Deus.
A Bíblia é, então, a Palavra de Deus, não porque seja infalível, ou porque seja um manual de verdades que os teólo¬gos podem utilizar em seus debates entre si. A Bíblia é a Palavra de Deus porque nela chega Jesus Cristo até nós. Quem lê a Bíblia e não encontra nela Jesus Cristo não leu a Palavra de Deus. Por isso, Lutero, ao mesmo tempo que insistia na autoridade das Escrituras, podia fazer comentários pejorativos sobre certas partes dela. A epístola de Tiago, por exemplo, parecia-lhe "pura palha", pois nela não se trata do evangelho, mas sim de uma série de regras de conduta. Mesmo que não estivesse disposto a tirar tais livros do Cânon, Lutero confessava abertamente que lhe era difícil ver Jesus Cristo neles e que, portanto, tinham escasso valor para ele.
Essa idéia da Palavra de Deus como Jesus Cristo era a base da resposta de Lutero a um dos principais argumentos dos católicos. Estes afirmavam que, como era a igreja quem tinha determinado quais os livros que deviam formar o cânon, a igreja tinha autoridade sobre as Escrituras. A resposta de Lutero era que, nem a igreja havia criado a Bíblia, nem a Bíblia havia criado a igreja, mas que o evangelho é que havia criado. A autoridade final não está na Bíblia, nem na igreja, mas no evangelho, na mensagem de Jesus Cristo, que é a Palavra de Deus encarnada. Posto que a Bíblia dá um testemunho mais fidedigno desse evangelho do que a igreja corrompida do papa, e do que as tradições medievais, a Bíblia tem autoridade sobre a igreja e sobre essas tradições, mesmo que seja certo que nos primeiros séculos foi a igreja que reconheceu o evangelho em certos livros, e não em outros, e determinou assim o conteúdo do cânon bíblico.

O Conhecimento de Deus
Lutero concorda com boa parte da teologia tradicional ao afirmar que é possível ter certo conhecimento de Deus por meios puramente racionais ou naturais. Esse conhecimento permite ao ser humano saber que Deus existe e distinguir entre o bem e o mal. Os filósofos da antiguidade o tiveram, e as leis romanas mostram que de modo geral os pagãos sabiam distinguir entre o bem e o mal. Além disso, os filósofos chegaram à conclusão de que há um Ser Supremo, do qual todas as coisas derivam sua existência.
Porém esse não é o verdadeiro conhecimento de Deus. A Deus não se conhece como quem usa uma escada para subir um telhado. Todos os esforços da mente humana para elevar-se ao céu e conhecer a Deus são totalmente inúteis.
É isso que Lutero chama de "teologia da glória". Tal teologia pretende ver Deus tal como é, em sua própria glória, sem ter em conta a distância enorme que separa o ser humano de Deus. O que a teologia da glória faz no final das contas é pretender ver Deus naquelas coisas que nós humanos consi¬deramos mais valiosas e, portanto, fala do poder de Deus, da glória de Deus, da bondade de Deus. Porém tudo isso não é mais do que fazer Deus à nossa própria imagem e pretender que Deus seja como nós mesmos desejamos que Ele seja.
O fato é que Deus em sua revelação se nos dá a conhecer de um modo muito distinto. A suprema revelação de Deus tem lugar na cruz de Cristo e, portanto, Lutero propõe que em lugar da teologia da glória, se siga o caminho da "teologia da cruz”. O que essa teologia busca é ver a Deus, não onde nós querermos vê-Lo, nem como nós desejamos que Ele se]a, mas sim onde Deus se revela, e como Ele mesmo se revela, isto é, na cruz. Ali Deus se manifestou na debilidade, no sofrimento, no escândalo. Isso quer dizer que Deus atua de um modo radicalmente distinto do que poderia se esperar. Deus, na cruz, destroi todas as nossas idéias preconcebidas da glória divina.
Quando conhecemos a Deus na cruz, o conhecimento anterior, isto é, tudo o que sabíamos acerca de Deus mediante a razão, ou pela lei da consciência, cai por terra. O que agora conhecemos de Deus é muito distinto do outro suposto conhecimento de Deus em sua glória.

A Lei e o Evangelho
A Deus conhece-se verdadeiramente em sua revelação. Porém, em sua própria revelação, Deus se nos dá a conhecer de dois modos, a saber: a lei e o evangelho. Isso não quer dizer simplesmente que primeiro vem a lei e depois o evangelho. Nem quer dizer tampouco que o Antigo Testamento se refira à Lei, e o Novo Testamento ao evangelho. O que quer dizer é muito mais profundo. O contraste entre a Lei e o evangelho dá a entender que, quando Deus se revela, essa revelação é de uma só vez, palavra de condenação e de graça.
A justificação pela fé, a mensagem do perdão gratuito de Deus, não quer dizer que Deus seja indiferente diante do pecado. Não se trata simplesmente de que Deus nos perdoa porque, no final das contas, nosso pecado não lhe faça mal. Pelo contrário, Deus é santo, e o pecado Lhe causa repugnância. Quando Deus fala, o contraste entre sua santidade e o nosso pecado nos esmaga, e essa é a lei.
Porém, ao mesmo tempo, e até às vezes na mesma Palavra, Deus pronuncia seu perdão para conosco. Esse perdão é o evangelho, e é tão maior, exatamente porque a lei é esmaga¬dora. Não se trata, então, de um evangelho que nos dê a entender que o nosso pecado não tem importância, mas de um evangelho que, precisamente diante da gravidade do pecado, se torna mais surpreendente.
Quando escutamos essa palavra de perdão, a lei, que antes nos era onerosa e até odiosa, se nos torna doce e aceitável. Comentando sobre o evangelho de João, Lutero nos diz:
"Antes não havia na lei nenhuma delícia para mim. Porém, agora, descobri que a Lei é boa e saborosa, e que me tem sido dada para que eu viva, e agora encontro nela meu prazer. Antes me dizia o que devia ser feito. Agora começo a ajustar-me nela. E por isso agora adoro, louvo e sirvo a Deus".
Esta dialética constante entre a lei e o evangelho quer dizer que o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador. Não se trata de que o pecador deixe de ser pecador quando é justificado. Pelo contrário, quem recebe a justificação pela fé descobre nela mesma o quanto é pecador, e não por ser justificado é que deixa de pecar. A justificação não é a ausência do pecado, mas o fato de que Deus nos declara justos, ainda que em meio ao nosso pecado, de igual modo ao evangelho que acontece sempre em meio à lei.

A Igreja e os Sacramentos
Lutero não foi nem o individualista nem o racionalista que muitos desejam. Durante o século XIX, quando o individualismo e o racionalismo se fizeram populares, muitos historiadores deram a impressão de que Lutero havia sido um dos precurso¬res de tais correntes. Isso ia frequentemente unido com o intento de mostrar a Alemanha como a grande nação, mãe da civilização moderna e de tudo quanto há nela de valioso. Lutero se converteu, então, no grande herói alemão fundador do modernismo.
Porém tudo isso não se ajusta à verdade histórica. O fato é que Lutero distanciou-se muito de ser racionalista. Para pro¬varmos basta observarmos suas frequentes referências à "porca razão" e "essa rameira, a razão". E quanto ao seu suposto individualismo, a verdade é que este era mais poderoso entre os renascentistas italianos do que no Reformador alemão, e que, em todo caso, Lutero dava demasiada importância à igreja para ser um verdadeiro individualista.
Apesar de seu protesto contra as doutrinas comumente aceitas e de sua rebeldia contra as autoridades da igreja romana, Lutero sempre pensou que a igreja era parte essencial da mensagem cristã. Sua teologia não era a de uma comunhão direta do indivíduo com Deus, mas sim de uma vida cristã no meio de uma comunidade de fiéis, a qual repetidamente cha¬mou de "igreja mãe".
Se bem que seja certo que todos os cristãos, pelo simples fato de serem batizados, se tornam sacerdotes, isso não quer dizer que cada um de nós deva isolar-se em si mesmo para chegar a Deus. Certamente, há uma comunicação direta com o Criador, mas há também uma responsabilidade orgânica. O ser sacerdotes não quer dizer que o sejamos somente para nós mesmos, mas que o somos também para os demais, e os outros o são para nós. Em lugar de abolir a necessidade da igreja, a doutrina do sacerdócio universal dos crentes a aumentava. Claro está que não necessitamos já de um sacerdócio hierárquico que seja nosso único meio de chegarmos a Deus. Porém necessitamos desta comunidade de crentes, o corpo de Cristo, dentro da qual cada membro é sacerdote dos demais e nutre a cada um deles. Sem essa relação com o corpo, o membro não pode continuar vivendo.
Dentro dessa igreja, a Palavra de Deus chega até nós pelos sacramentos. Para que um rito seja um verdadeiro sacramento tem de ter sido instituído por Jesus Cristo, e há de ser um sinal físico das promessas evangélicas. Portanto, há somente dois sacramentos: o batismo e a ceia. Os demais ritos que recebem esse nome, mesmo que possam ser benéficos, não são sacramentos do evangelho.
O batismo é o sinal da morte e ressurreição do cristão com Jesus Cristo. Porém é muito mais que um sinal, pois por ele e nele fomos feitos membros do corpo de Cristo. O batismo e a fé andam estreitamente unidos, pois o rito sem a fé não é válido. Mas isso não deve ser entendido no sentido de que devemos ter fé antes de sermos batizados e que, assim, não se possa batizar as crianças. Se dissermos tal coisa, cairíamos no erro daqueles que crêem que a fé é uma obra humana, e não um dom de Deus. Na salvação, a iniciativa é sempre de Deus, e isto é o que anunciamos ao batizar crianças tão pequeninas que são incapazes de entender do que se trata. Além disso, o batismo não é somente o começo da vida cristã, mas é o fundamento, ou o contexto, dentro do qual toda essa vida tem lugar. O batismo é válido, não só no momento de ser administrado, mas para toda a vida. Por ele se conta que o próprio Lutero quando se sentia fortemente tentado, exclamava: "sou batizado". Em seu batismo estava a força para resistir a todas as investidas do maligno.
A ceia é o outro sacramento da fé cristã. Lutero rechaçou boa parte da teologia católica sobre a ceia. Particularmente, se opôs às missas privadas, à ceia como repetição do sacrifício de Cristo, à ideia de que a missa confere méritos, e à doutrina da transubstanciação. Mas tudo isso não o levou a pensar que a ceia era de pouca importância. Pelo contrário, para ele a eucaristia sempre continuou junto com a pregação, como o centro do culto cristão.
A questão de como Cristo está presente no sacramento foi motivo de controvérsias, não só com os católicos, mas também com os protestantes. Lutero rechaçava categoricamente a doutrina da transubstanciação, que lhe parecia demasiadamente presa a categorias aristotélicas e, portanto, pagãs, e que, além do mais, era a base da idéia da missa como sacrifício meritório, que se opunha radicalmente à doutrina da justificação pela fé.
Porém, por outro lado, Lutero também não estava dispos¬to a dizer que a ceia era um mero símbolo de realidades espirituais. As palavras de Jesus ao instituir o sacramento: "isto é meu corpo", lhe pareciam completamente claras. Portanto, segundo Lutero, na ceia os fiéis participam verdadeira e literalmente do corpo de Cristo. Isto não indica, como na transubstanciação, que o pão se converta em corpo, e o vinho em sangue. O pão continua sendo pão, e o vinho, vinho. Todavia, agora estão também neles o corpo e o sangue do Senhor, e o crente se alimenta deles ao tomar o pão e o vinho. Se bem que mais tarde se deu a essa doutrina o nome de "consubstanciacão", Lutero nunca a chamou assim e preferia chamá-la de a presença de Cristo em, com, debaixo, ao redor e por trás do pão e do vinho.
Nem todos os que se opunham às doutrinas tradicionais concordavam com Lutero, nesse ponto, que logo se tornou um dos fatores mais divisionistas entre eles. Caristadt, o colega de Lutero, na universidade de Wittenberg, que participou com ele no debate de Leipzig, dizia que a presença de Cristo no sacramento era simbólica e que, quando Jesus disse "isto é o meu corpo", estava apontando para si mesmo, e não para o pão. Zwínglio, de quem trataremos mais adiante, sustentava opiniões parecidas, se bem que com melhores argumentos bíblicos. Posteriormente, essa questão foi um dos principais motivos de divisão entre os luteranos e reformados ou calvinistas.

Os Dois Reinos
Antes de terminar esta brevíssima exposição dos principais pontos da teologia de Lutero, devemos nos referir ao modo pelo qual o Reformador entendeu a relação entre a igreja e o estado. Segundo ele, Deus tinha estabelecido dois reinos, um sob a lei e outro sob o evangelho. O estado opera debaixo da lei e seu principal propósito é pôr limites ao pecado humano. Sem o estado, os maus não teriam freios. Os crentes por outra parte, pertencem ao segundo reino e estão debaixo do evangelho. Isso quer dizer que os crentes não vão esperar que o estado apoie a sua fé e persiga aos hereges. Além disso, não há razão nenhuma para que esperemos que os governan¬tes sejam cristãos. Como governantes, sua obediência se deve à lei e não ao evangelho. No reino do evangelho, as autoridades civis não têm poder algum. E no que se refere a esse reino, os cristãos não estão sujeitos ao estado. Porém, não esqueçamos que os crentes, ao mesmo tempo que são justificados pela fé, continuam sendo pecadores. Portanto, enquanto somos pecadores, todos estamos sujeitos ao estado.
O que isso quer dizer em termos concretos é que a verda¬deira fé não tem de impôr-se mediante autoridade civil, mas mediante a proclamação da Palavra. Lutero se opôs repetidamente a que os príncipes que o apoiavam empregassem sua autoridade para defender sua causa e somente depois de muito vacilar, por fim lhes disse que podiam apelar para as armas em defesa própria contra aqueles que pretendiam esma¬gar a Reforma.
Isso não quer dizer que Lutero foi pacifista. Quando, como veremos mais a frente, os turcos ameaçaram a cristandade, Lutero chamou seus seguidores às armas. E quando diversos grupos e movimentos, tais como os campo¬neses rebeldes e os anabatistas, lhe pareciam subversivos, não vacilou em afirmar que as autoridades civis tinham o dever de esmagá-los. O que se quer dizer é que Lutero sempre teve dúvidas sobre como a fé devia relacionar-se com a vida civil e política. E essas vacilações têm continuado a aparecer em boa parte da tradição luterana até o século XXI.

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