quarta-feira, 13 de junho de 2007

História da Igreja - Parte 11

A controvérsia ariana e o Concílio de Nicéia
Desde o começo a igreja esteve envolvida por controvérsias teológicas. No tempo do apóstolo Paulo, foi a questão da relação entre judeus e gentios; depois apareceu a ameaça do gnosticismo e de outras doutrinas semelhantes; no século III, quando Cipriano era bispo de Cartago, foi debatida a questão da readmissão dos que tinham caído. Todas estas controvérsias tinham sido de vulto, e às vezes amargas. Mas havia dois fatores que limitavam o fragor das contendas. O primeiro era que a única maneira de vencer o debate era a força do argumento ou da fé. Quando dois grupos diferiam quanto a qual deles interpretava o evangelho corretamente, não era possível recorrer às autoridades imperiais para resolver o problema. O segundo fator que limitava o alcance das controvérsias era que os que estavam envolvidos nelas sempre tinham outras ocupações, além de debater o problema.
Paulo, enquanto escrevia contra os judaizantes, se dedicava ao trabalho missionário, e sempre estava exposto a ser encarcerado, açoitado, ou talvez morto. Tanto Cipriano como seus opositores sabiam que a perseguição que acabavam de passar não era a última, e que acima dos dois grupos havia o Império, que a qualquer momento podia desencadear uma nova tempestade. A mesma coisa podemos dizer dos cristãos que discutiam o gnosticismo, no segundo século.
Com o surgimento da paz da igreja, no entanto, as circunstâncias mudaram. O perigo de uma perseguição parecia estar cada vez mais remoto, e por isso, quando surgia uma controvérsia teológica, os que estavam envolvidos nela se sentiam com mais liberdade para prosseguir o debate.
Muito mais importante, todavia, era o fato de agora o estado estava interessado em que todos os conflitos que pudessem aparecer entre os fiéis fossem resolvidos. Constantino queria que a igreja fosse "o cimento do Império", e por isso qualquer divisão nela podia ameaçar a unidade do Império. Por esta razão, já desde o tempo de Constantino, o estado começou a usar seu poder para acabar com as diferenças de opinião que surgiam dentro da igreja, como veremos a seguir.
É bem possível que estas opiniões dissidentes tenham sido, de fato, contrárias à verdadeira doutrina cristã, e que, por isso, foi bom que tenham desaparecido. Mas o perigo estava em que, em vez de permitir que a verdade surgisse de um debate teológico e da autoridade das Escrituras, muitos governantes tentaram simplificar este processo simplesmente decidindo que este ou aquele partido estava errado, ordenando-lhe que se calasse. O resultado foi que em muitos casos os contendentes, em vez de tentar convencer seus opositores, ou o restante da igreja, tentavam convencer o imperador.
Em pouco tempo o debate teológico desceu ao nível da intriga política — particularmente no século V, como veremos no curso desta história.
Começamos a ver tudo isso no caso da controvérsia ariana, que iniciou com um debate local, cresceu até se transformar em uma dissensão séria em que Constantino achou que deveria intervir, e pouco depois desembocou em uma série de intrigas políticas. Mas se nos dermos conta do espírito dos tempos, não nos surpreenderá tanto isso, mas o fato de que através de tudo isso a igreja soube tomar decisões sábias, rejeitando as doutrinas que de um ou outro modo punham em perigo a mensagem crista.
As origens da controvérsia ariana
As raízes da controvérsia ariana remontam a tempos bem anteriores a Constantino, pois estão na maneira com que, através da obra de Justino, de Clemente de Alexandria, de Orígenes e de outros, a igreja entendia a natureza de Deus.
Como dissemos anterioormente, quando os cristãos do primeiro século se lançaram pelo mundo a proclamar o evangelho, eles eram acusados de ateus e ignorantes. E era verdade que eles não tinham deuses que pudessem ser vistos ou apalpados, como os pagãos tinham. Em resposta a estas acusações, alguns cristãos apelaram às pessoas que a antiguidade considerava sábios por excelência, isto é, os filósofos. Os melhores filósofos pagãos tinham dito que acima de todo o universo existe um ser su¬premo, e alguns tinham chegado a dizer que os deuses pagãos eram feitos pelos homens.
Assim, apelando para estes sábios, os cristãos começaram a dizer que eles também, como os filósofos de antigamente, criam em um só ser supremo, e este ser era Deus. Este argumento era muito convincente, e não há dúvida de que contribuiu para que muitos intelectuais aceitassem o cristianismo.
Este argumento, no entanto, trazia consigo um perigo. Era grande a possibilidade de os cristãos, em seu afã de mostrar como sua fé e a filosofia eram compatíveis, chegassem a con¬vencer a si mesmos que a melhor maneira de conceber Deus não era a dos profetas e outros autores das Escrituras, mas a de Platão, Plotino e outros. Estes filósofos concebiam a perfeição como algo imutável, impassível e estático, e muitos cristãos chegaram à conclusão que o Deus de que as Escrituras falavam também era assim. Naturalmente era necessário resolver o conflito que surgiu entre esta ideia de Deus e a que aparece nas Escrituras, onde Deus é ativo, onde Deus chora com os que sofrem, e onde Deus intervém na história.
Este conflito entre as Escrituras e a filosofia, no que se refere à doutrina de Deus, foi resolvido de duas maneiras.
Uma delas foi a interpretação alegórica das Escrituras. De acordo com esta interpretação, sempre que as Escrituras se referem a algo "indigno" de Deus — isto é, algo que se opu¬nha à maneira de os filósofos conceberem o ser supremo — isto não deveria ser interpretado literalmente, mas de maneira alegórica. Se as Escrituras, por exemplo, dizem que Deus falou, isto não deve ser entendido literalmente, pois um ser imutável não fala. Intelectualmente, isto satisfez a muitos. Emocionalmente, porém, isto deixava muito a desejar, pois a vida da igreja se baseava na ideia de que era possível ter uma relação íntima com um Deus pessoal, e o ser supremo imutável, impassível, estático e distante dos filósofos de modo algum era pessoal.
Isto deu origem à segunda maneira de resolver o conflito entre a ideia que os filósofos faziam de Deus e o testemunho das Escrituras. Esta segunda maneira era a doutrina do Logos ou Verbo, como foi desenvolvida por Justino, Orígenes, Clemente e outros. De acordo com essa doutrina, é verdade que o próprio Deus — o "Pai" — é imutável, imóvel, mas Deus tem um Verbo, Palavra, Logos ou Razão que é pessoal, e que se relaciona diretamente com o mundo e com os seres humanos. Por esta razão Justino diz que quando Deus falou com Moisés, não foi o Pai quem falou, mas o Verbo.
Por causa da influência de Orígenes e de seus discípulos, este modo de ver as coisas tinha se difundido por toda a igreja oriental — isto é, a igreja que falava grego e não latim. Este foi o contexto dentro do qual se desenvolveu a controvérsia ariana, e a longo prazo o resultado desta controvérsia foi mos¬rar como é errado ver as coisas dessa maneira.
A controvérsia surgiu na cidade de Alexandria, quando Licínio ainda governava no leste e Constantino no oeste. Tudo começou com uma série de desacordos teológicos entre Ale-xandre, bispo de Alexandria, e Ário, um dos presbíteros de mais prestígio e popularidade na cidade.
Os pontos em debate eram vários e sutis, mas podemos resumir toda a controvérsia à questão de: Se o Verbo era co-eterno com o Pai ou não. A frase principal em debate era, como dizia Ário, "se houve quando o Verbo não existia". Alexandre dizia que o Verbo sempre tinha existido junto ao Pai. Ário dizia o contrário. Isto pode nos parecer uma infantilidade, mas no fundo estava em jogo a divindade do Verbo. Ário dizia que o Verbo não era Deus, mas somente a primeira de todas as criaturas.
Reparem que Ário não dizia que o Verbo não tivesse pré-existido antes do nascimento de Jesus. Nessa pré-existência todos estavam de acordo. O que Ário dizia era que o Verbo tinha sido criado por Deus, se bem que antes de toda a criação. Alexandre dizia que o Verbo, por ser divino, não era uma criatura, mas sempre havia existido com Deus. Em outras palavras, se a questão fosse traçar uma linha divisória entre Deus e as criaturas, Ãrio traçaria a linha entre Deus e o Verbo, colocando assim o Verbo como a primeira das criaturas, e Alexandre traçaria a linha de maneira que o Verbo ficasse junto com Deus, separado das criaturas.
Os dois partidos tinham — além de certos textos bíblicos favoritos — razões lógicas que faziam a posição do oponente aparecer isustentável.
Ário, de um lado, dizia que Alexandre estava propondo, no fim das contas, que o monoteísmo cristão fosse abandonado, pois no esquema de Alexandre havia dois que eram Deus, e portanto dois deuses.
Alexandre respondia que a posição de Ário negava a divin¬dade do Verbo, e em consequência de Jesus Cristo. E já que a igreja desde o começo tinha adorado a Jesus Cristo, se a proposta de Àrio fosse aceita, a igreja teria de: ou deixar de adorar a Jesus Cristo, ou adorar uma criatura. As duas alternativas eram inaceitáveis, e por isso Ârio deveria estar equivocado. O conflito ficou público quando Alexandre, apelando para sua responsabilidade e autoridade episcopal, condenou as doutrinas de Ãrio e o depôs de seus cargos na igreja de Alexandria. Ário não aceitou este veredito, e por sua vez apelou às massas e a vários bispos de destaque que tinham sido seus colegas de estudo em Antioquia. Logo houve protestos populares em Alexandria, onde o povo marchava pelas ruas cantando as máximas teológicas de Ário.
Os bispos a quem Ário tinha escrito responderam declarando que Ário tinha razão, e que era Alexandre que estava ensinando doutrinas falsas. Desta forma, o debate local em Alexandria ameaçava se transformar em um cisma geral, que poderia chegar a dividir toda a igreja oriental. As coisas estavam neste ponto quando Constantino, que acabara de derrotar Licínio, decidiu se meter no assunto. Sua primeira gestão consistiu em enviar o bispo Ôsio de Córdoba, seu conselheiro em assuntos eclesiásticos, para que tentasse reconciliar as partes em conflito. Mas quando Ôsio constatou que as raízes teológicas do conflito eram profundas, e que a dissensão não poderia ser resolvida com gestões individuais, Constantino decidiu dar um passo que estivera considerando já por algum tempo > convocar uma grande assembléia ou concílio de todos os bispos cristãos, para pôr em ordem a vida da igreja, e para decidir sobre a controvérsia ariana.
O concílio de Nicéia
O concílio afinal se reuniu na cidade de Nicéia, na Ásia Menor, perto de Constantinopla, em 325. A posteridade conhe¬ce esta assembléia como o primeiro concílio ecumênico, isto é, universal.
Não sabemos o número exato de bispos que assistiram ao concílio, mas ao que parece foram uns trezentos. Para compre¬endermos a importância do que estava acontecendo, recordemos que vários dos presentes tinham sofrido prisões, torturas ou exílio pouco antes, e que alguns levavam em seu corpo as marcas físicas da sua fidelidade. E agora, poucos anos depois daqueles dias de provações, todos estes bispos eram convidados a se reunir na cidade de Nicéia, e o imperador cobria todos os seus gas¬tos. Muitos dos presentes se conheciam de ouvir falar, ou por correspondência. Agora, pela primeira vez na história da igreja, eles podiam ter uma visão física da universalidade da sua fé. Eusébio de Cesaréia nos descreve a cena, em sua Vida de Constantino:

“Ali se reuniram os mais distintos ministros de Deus, da Europa, Líbia (isto é, África) e Ásia. Uma só casa de oração, como que ampliada por obra de Deus, abrigava sírios e cilícios, fenícios e árabes, delegados da Palestina e do Egito, tebanos e líbios, junto com os que vinham da Mesopotâmia. Havia também um bispo persa, e tampouco faltava um cita na assembleia. Ponto, Galácia, Panfília, Capadócia, Ásia e Frigia enviaram seus bispos mais dis¬tintos, bem como os que moravam nas regiões mais remotas da Trácia, Macedônia, Acaia e Epiro. Até mesmo da Espanha, um de grande fama (Ôsio de Córdoba) se sentou como membro da assembléia. O bispo da cidade imperial (Roma) não pôde participar por causa da sua idade avançada, mas seus presbíteros o representaram. Constantino é o primeiro príncipe de todas as épocas que juntou semelhante grinalda mediante o vínculo da paz, e a apresentou a seu Salvador como oferta de gratidão pelas vitórias que conseguiu sobre seus inimigos.”
Neste ambiente de euforia, os bispos se puseram a discutir as muitas questões legislativas que eram necessárias resolver, uma vez terminada a perseguição. A assembléia aprovou uma série de regras para a readmissão dos que tinham caído, sobre como os presbíteros e bispos deveriam ser eleitos e ordenados, e sobre a ordem de precedência das diversas sedes.
A questão mais escabrosa, porém, que o concílio de Nicéia tinha de discutir era a controvérsia ariana. Em relação a este assunto havia várias tendências no concílio.
Em primeiro lugar, havia um pequeno grupo de arianos convictos, liderados por Eusébio de Nicomédia — personagem importantíssimo em toda esta controvérsia, que não deve ser confundido com Eusébio de Cesaréia. Ârio, por não ser bispo, não tinha o direito de participar das deliberações do concílio. Seja como for, Eusébio e os seus estavam convictos de que sua posição era correta, e que a assembléia, assim que ouvisse seu ponto de vista exposto com clareza, daria razão a Ário e repreenderia Alexandre por tê-lo condenado.
Em segundo lugar, havia um pequeno grupo que estava convencido de que as doutrinas de Ário punham em perigo o próprio cerne da fé cristã, e que por isto era necessário condená-las. O líder deste grupo era Alexandre de Alexandria. Junto a ele estava um jovem diácono que depois ficaria famoso como um dos gigantes cristãos do século IV, Atanásio.
Os bispos que procediam do oeste, isto é, da região do Império onde era falado latim, não estavam interessados na especulação teológica. Para eles a doutrina da Trindade estava resumida na velha fórmula enunciada por Tertuliano mais de um século antes > uma substância e três pessoas.
Outro pequeno grupo - contando provavelmente com não mais que três ou quatro pessoas - defendia posições próximas do "patripassionismo", ou seja, da doutrina de acordo com a qual o Pai e o Filho são a mesma pessoa, e que por isto, Pai sofreu na cruz. Estas pessoas estiveram de acordo com as decisões de Nicéia, mas mais tarde foram condenadas. Para não complicar demais nossa narração, porém, não voltaremos a nos ocupar delas.
Por último, a maior parte dos bispos presentes não pertencia a nenhum destes grupos. Para eles era uma verdadeira lástima o fato de Ârio e Alexandre se terem envolvido em uma controvérsia que ameaçava dividir a igreja, agora que afinal a igreja gozava de paz em relação ao Império. A esperança destes bispos, no início das reuniões, parece ter sido conseguir uma posição conciliatória, resolver as diferenças entre Alexandre e Ário, e esquecer a questão. Exemplo típico desta atitude é Eusébio de Cesaréia, o historiador. Nisto estavam as coisas, quando Eusébio de Nicomédia, o líder do partido ariano, pediu a palavra para expor sua doutrina. Ao que parece, Eusébio estava tão convicto da verdade do que dizia, que tinha certeza que os bispos, assim que ouvissem uma exposição clara de suas doutrinas, as aceitariam como corretas, ficando a questão encerrada. Mas, quando os bispos ouviram a exposição das doutrinas arianas, sua reação foi bem diferente do que Eusébio esperava. A doutrina de o Filho ou Verbo ser somente uma criatura — por mais exaltada que fosse esta criatura — parecia-lhes atentar contra o próprio âmago da sua fé. Aos gritos de "blasfémia!", "mentira!" e "heresia!" Eusébio teve de se calar, e conta-se que alguns dos presentes lhe arrancaram seu discurso, o rasgaram em pedaços e o pisotearam.
O resultado de tudo isso foi que a atitude da assembléia mudou. Antes a maioria quisera tratar o caso com a maior suavidade possível, e talvez evitar que algum lado fosse condenado, mas agora a maior parte estava convencida de que era necessário condenar as doutrinas expostas por Eusébio de Nicomédia.
No começo, tentou-se fazer isto somente com citações bíblicas. Mas logo ficou claro que os arianos podiam interpretar qualquer citação de uma maneira que os favorecia — ou pelo menos que podiam aceitar. Por esta razão a assembléia decidiu compor um credo que expressasse a fé da igreja em relação às questões em debate. Depois de um processo que não podemos narrar aqui, mas que contou, entre outras coisas, com a intervenção de Constantino, sugerindo que fosse incluída a palavra "consubstancial" — palavra esta que discutiremos mais adiante — chegou-se à seguinte fórmula, conhecida como credo de Nicéia:

“Cremos em um Deus Pai Todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis.
E em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus; gerado como o Unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus; luz de luz; Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não feito; consubstanciai com o Pai; mediante o qual todas as coisas foram feitas, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra; que para nós humanos e para nossa salvação desceu e se fez carne, se fez homem, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro dia, e virá para julgar os vivos e os mortos.
E no Espírito Santo.
Aos que dizem, pois, que houve quando o Filho de Deus não existia, e que antes de ser concebido não existia, e que foi feito das coisas que não são, ou que foi formado de outra substância ou essência, ou que é uma criatura, ou que é mutável ou variável, a estes a igreja católica anatematiza.”

Esta fórmula, a que depois foram acrescentadas diversas cláusulas — e foram tirados os anátemas do último parágrafo — é a base do que hoje em dia chamamos de "Credo Niceno", o credo cristão mais universalmente aceito. O chamado "Credo Apostólico", por ter surgido em Roma e nunca ter sido conhecido no Oriente, é usado somente pelas igrejas de origem ocidental — ou seja, a romana e as protestantes. Mas o credo niceno, ao mesmo tempo que é usado pela maioria das igrejas ocidentais, também é o credo mais comum entre as igrejas ortodoxas orientais — grega, russa, e outras.
Paremos alguns instantes para analisar o sentido do credo, assim como foi aprovado pelos bispos reunidos em Nicéia. Desta análise fica claro que o propósito da fórmula é excluir toda doutrina que queira dizer que o Verbo é, em algum sentido, uma criatura. Podemos ver isto, em primeiro lugar, em frases como: "Deus de Deus; luz de luz; Deus verdadeiro de Deus verdadeiro". Mas podemos vê-lo também em outras frases, como quando o credo diz "gerado, não feito".
Reparem que, no princípio, o mesmo credo diz que o Pai é "criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis". Portanto, dizendo que o Filho não é "feito", o credo o exclui destas coisas "visíveis e invisíveis" que o Pai fez. Além disso o último parágrafo condena todos que digam que o Filho "foi feito das coisas que não são", ou seja, que foi feito do nada, como a criação. E no texto do credo, para não deixar margem a dúvidas, consta que o Filho foi concebido "da substância do Pai", e que é "consubstanciail com o Pai". Esta última frase, "consubstanciail com o Pai , foi a que provocou mais resistência ao credo de Nicéia, pois parecia dar a entender que o Pai e o Filho são a mesma coisa, se bem que o sentido aqui não é este, mas somente asse¬gurar que o Filho não é feito do nada, como as criaturas.
Seja como for, os bispos se consideraram satisfeitos com este credo, e quase todos o assinaram, dando assim a entender que ele era uma expressão genuína da sua fé. Somente alguns poucos — entre eles Eusébio de Nicomédia — se negaram a assiná-lo. Estes foram condenados pela assembléia, e depostos A esta sentença Constantino acrescentou a sua, ordenando que os bispos depostos abandonassem suas cidades. Esta sen¬tença de exílio, acrescentada à de heresia, teve consequências funestas, como já dissemos, pois estabeleceu o precedente de que o estado intervém para assegurar a ortodoxia da igreja, ou de seus membros.
A controvérsia depois do concílio
Entretanto, o concílio de Nicéia não pôs fim à discusão. Eusébio de Nicomédia era um político hábil - e parece até ter sido parente distante de Constantino. Sua estratégia foi reconquistar a simpatia do imperador, que logo lhe deu permissão para regressar a Nicomédia. Já que nesta cidade ficava a residência de verão de Constantino, isto deu a Eusébio a oportunidade de se aproximar cada vez mais do imperador. Mais tarde até o próprio Ário foi trazido do seu lugar de desterro, e Constantino ordenou ao bispo de Constantinopla que admitisse o herege para a Santa Ceia. O bispo estava no conflito de obedecer ao imperador ou à sua consciência quando Ário morreu.
Em 328, morreu Alexandre de Alexandria, e Atanásio lhe sucedeu, o diácono que o havia acompanhado a Nicéia, e que, deste momento em diante seria o grande campeão da causa nicena.
A partir de então esta causa ficou tão identificada com o novo bispo de Alexandria que quase podemos dizer que a história subsequente da controvérsia ariana é a biografia de Atanásio. Como mais adiante falaremos sobre Atanásio, não entraremos aqui em detalhes. Basta dizer que, depois de uma série de manejos, Eusébio de Nicomédia e seus seguidores conseguiram que Constantino enviasse Atanásio para o exílio. Antes eles já tinham conseguido que o imperador promulgasse sentenças semelhantes contra diversos outros líderes do partido niceno. Quando Constantino afinal decidiu receber o batismo, em seu leito de morte, quem o batizou foi Eusébio de Nicomédia.
À morte de Constantino, depois de um breve interregno, lhe sucederam seus três filhos Constantino II, Constante e Constancio. A Constantino II coube a região das Gálias, Grã-Bretanha, Espanha e Marrocos. A Constâncio coube a maior parte do Oriente. Os territórios de Constante ficaram no meio dos de seus irmãos, abrangendo o norte da África, a Itália e alguns territórios ao norte da Itália. No começo, a nova situação favoreceu os nicenos, pois o mais velho dos filhos de Constantino favorecia sua causa, e fez com que Atanásio e os demais voltassem do exílio. Mas quando irrompeu a guerra entre Constantino II e Constante, Constâncio, que como dissemos reinava no Oriente, se sentiu livre para estabelecer sua política favorável aos arianos.
Mais uma vez Atanásio se viu obrigado a partir para o exílio, do qual voltou quando Constantino II morreu, e todo o Ocidente foi unificado sob Constante, o que fez com que Constâncio moderasse suas inclinações arianas. Mas mais tarde Constâncio acabou sendo o único dono do Império, e foi então que, como diria Jerônimo — sobre quem também falaremos mais adiante - "o mundo despertou de um sono profundo e percebeu que tinha ficado ariano".
Os líderes nicenos tiveram novamente de abandonar suas dioceses, e a pressão imperial foi tão grande que mais tarde os anciãos Ósio de Córdoba e Libério — o bispo de Roma — assinaram uma confissão ariana.
Estavam as coisas nesse pé, quando um fato inesperado veio mudar o curso dos acontecimentos. À morte de Constâncio sucedeu seu primo Juliano, conhecido pelos historiadores cristãos como "o Apóstata". Aproveitando as contendas entre os cristãos, a reaçao pagã tinha ascendido ao poder.
A reação pagã: Juliano, o Apóstata
Juliano tinha razões de sobra para não simpatizar com Constâncio, ou com a fé cristã que este professava. De fato, quando Constantino morreu tinha ocorrido uma matança de todos os parentes do grande imperador, com excessão de seus três filhos. As circunstâncias em que isto se deu não são totalmente claras, e por isto talvez seja injusto culpar Constâncio por tudo. A sucessão esteve controvertida por algum tempo quando Constantino morreu, e durante este período, os soldados de Constantinopla mataram quase toda a parentela do imperador falecido. Eles não fizeram isto para que outra dinastia assumisse o trono, pelo contrário; a razão foi para que ninguém reclamasse o poder, que pertencia exclusivamente aos três filhos de Constantino. Destes, somente Constâncio estava em Constantinopla naquela época, e por isso, ele foi sempre considerado responsável pela morte dos seus parentes.
Seja como for, tenha ou não Constâncio mandado matar a família de Juliano, o fato é que este estava convicto de que seu primo era o culpado. O pai de Juliano, Constâncio, era meio-irmão de Constantino, e por isto Juliano e o imperador Constâncio eram primos-irmãos. Juliano suspeitava — e em todo o Império isso era comentado em voz baixa — que Constâncio tinha ordenado a morte de todos os parentes próximos do grande imperador, temendo que algum deles pretendesse o trono.
A longa luta pelo poder
De toda a família, sobreviveram somente Juliano e seu meio-irmão Galo, vários anos mais velho que ele. Juliano pensou, depois, que sua vida tinha sido poupada porque os soldados tiveram misericórdia da sua pouca idade — seis anos — e da enfermidade aparentemente mortal de seu irmão. Mas parece ser mais provável que Constâncio decidiu que estes dois remanescentes da casa de Constâncio Cloro não fossem mortos, pois eram jovens demais para dirigir uma rebelião, e, se acontecesse que nem Constâncio nem seus irmãos deixassem descen¬dência, sempre seria possível recorrer a Galo ou a Juliano, que então já teriam alcançado sua maioridade.
De qualquer forma Galo e Juliano foram afastados da corte, e enquanto o maior dos dois irmãos se dedicava ao exercício físico, o menor se interessava cada vez mais pelos estudos filosóficos. Ambos tinham sido batizados e instruídos nas doutrinas cristãs, e durante seu exílio da corte foram ordenados como leitores da igreja.
Mais tarde, Constâncio teve de recorrer a Galo, pois tinha se tornado único senhor do Império em 350, e não tinha filhos que o ajudassem a governar ou que pudessem garantir a sucessão ao trono. Por essa razão, em 351, Constâncio convocou Galo e lhe deu o título de César, confiando-lhe o governo da parte oriental do Império. Mas Galo demonstrou não ser um bom governante, e também acabou sendo acusado de conspirar contra Constâncio para se apoderar do trono, de modo que Cons¬tâncio o mandou prender e decapitar em 354.
Enquanto isso, Juliano tinha continuado seus estudos de filosofia, principalmente na cidade de Atenas, onde funcionava a mais famosa escola destas matérias, e onde conheceu Basílio de Cesaréia, cuja vida e obra falaremos mais adiante. Em Atenas, Juliano foi iniciado nas antigas religiões de mistério. Ele já tinha abandonado definitivamente o cristianismo, e procurava a verdade e a beleza na literatura e na religião da época clássica.
Por fim, depois de vencer os receios que a experiência que tivera com Galo lhe inspirava, Constâncio decidiu convocar Juliano para o governo, dando-lhe o título de César e confiando-lhe o governo das Gálias. Ninguém esperava que Juliano fosse um bom governante, pois tinha passado a vida entre livros e filósofos, e, de qualquer forma, os recursos que Constâncio lhe confiou eram muito escassos. Mas Juliano surpreendeu os que não esperavam grande coisa dele. Sua administração das Gálias foi sábia, e em suas campanhas contra os bárbaros ele demonstrou ser um general hábil, tornando-se popular entre seus soldados.
Tudo isso não era totalmente do agrado do seu primo, o imperador Constâncio, que logo começou a temer que Juliano conspirasse contra ele e tentasse lhe arrebatar o trono. A tensão foi aumentado entre os dois parentes. Quando Constâncio, preparando-se para uma campanha contra os persas, ordenou que boa parte das tropas que estavam nas Gálias se dirigissem para o Oriente, estas tropas se sublevaram e proclamaram Juliano "Augusto" — isto é, imperador supremo. Constâncio não pôde fazer nada no momento, pois a ameaça persa parecia ser séria. Mas assim que este perigo foi afastado, o imperador marchou para enfrentar Juliano e seus soldados rebeldes. Quan¬do a guerra parecia ser inevitável, e os dois lados se preparavam para uma luta sem quartel, Constâncio morreu, e Juliano não teve maiores dificuldades para marchar sobre Constantinopla e se apoderar de todo o império. Era o ano 361.
A primeira atitude de Juliano foi se vingar dos principais responsáveis pelos seus infortúnios, e dos que tinham tentado mante-lo afastado do poder durante seu exílio. Com este propósito, ele nomeou um tribunal que, supostamente, era independente, mas que, na verdade, satisfazia os desejos do novo imperador, e que condenou à morte vários dos seus piores inimigos.
Fora isto Juliano foi um governante hábil, que soube pôr em ordem a administração do Império. Mas ele não é lembrado tanto por isto quanto por sua política religiosa, que lhe valeu o apelido de "o Apóstata".
A política religiosa de Juliano
Esta política consistiu, por um lado, em restaurar a glória perdida do paganismo, e por outro lado, em impedir o progresso do cristianismo.
Depois da ascensão de Constantino, o paganismo tinha perdido seu antigo brilho. O próprio Constantino, mesmo não tendo perseguido os pagãos, saqueou diversos templos para obter obras de arte para Constantinopla. Esta política continuou sob o regime dos filhos de Constantino, que legislavam em favor do cristianismo e iam colocando cada vez mais obstá-culos ao culto pagão. Quando Juliano ascendeu ao trono, os templos estavam quase totalmente abandonados, e havia sacerdotes pagãos que andavam esfarrapados, sustentando-se de diversas maneiras, e apenas se ocupando dos cultos.
Juliano começou uma reforma total do paganismo. Suas primeiras providências foram ordenar que todos os objetos e propriedades que tinham sido tomados dos templos fossem devolvidos. Além disso, ele passou a organizar o sacerdócio pagão em uma hierarquia semelhante à da igreja cristã. Acima dos sacerdotes de cada região havia arquisacerdotes, que por sua vez estavam subordinados ao sacerdote máximo da província, e por cima de todos estava o sumo pontífice, que ere o próprio Juliano. Nessa hierarquia, os sacerdotes deveriam levar uma vida exemplar, não só se ocupando do culto, mas também das obras de caridade. Fica evidente que, apesar dos seus sentimentos anticristãos, boa parte da reforma pagã de Juliano era inspirada no exemplo da igreja cristã.
Enquanto promulgava estas leis, Juliano estava empenhado em restaurar o culto pagão de maneira mais direta. Ele se considerava eleito pelos deuses para esta obra, e por isso, enquanto esperava que todo o Império regressasse à sua antiga fé, ele se sentia obrigado a prestar aos deuses o culto que os outros não lhes prestavam.
Por ordem de Juliano houve sacrifícios em massa, em que eram oferecidos centenas de touros e outros animais aos deuses. Mas Juliano percebeu que sua reforma não era tão popular como ele tinha desejado. As pessoas zombavam dos sacrifícios, às vezes ao mesmo tempo que participavam deles. Por essa razão, era necessário não só promover o paganismo, mas também atacar o cristianismo, que era seu rival mais poderoso.
Com este propósito em mente, Juliano tomou uma série de medidas, se bem que temos de dizer com toda a justiça que ele nunca decretou a perseguição direta da jgreja. Se em alguns lugares houve cristãos que perderam a vida, isso foi causado por tumultos populares, ou pelo excessivo zelo das autoridades locais, pois Juliano estava convicto de que sua causa não progrediria com uma perseguição.
Em vez de perseguir os cristãos, Juliano seguiu uma política dupla de dificultar sua difusão e ridicularizá-los. No primeiro sentido, ele proibiu que cristãos ensinassem as letras clássicas. Dessa forma, ao mesmo tempo que evitava o que para ele era um sacrilégio, ele se assegurava de que os cristãos não poderiam fazer uso das grandes obras da antiguidade pagã para difundir sua própria doutrina, como vinham fazendo desde o tempo de Justino, no segundo século. Para ridicularizar os cristãos, Juliano começou a chamá-los de "galileus", sempre se referindo a eles com este nome. Escreveu também uma obra, Contra os galileus, em que evidencia seu conhecimento das Escrituras cristãs, e ridiculariza seu conteúdo, como também os ensinos de Jesus. Por último, ele se dispôs a reconstruir o templo de Jerusalém, não porque simpatizasse com os judeus, mas porque pensava que assim poderia contradizer os cristãos, que diziam que a destruição do templo tinha ocorrido em cumprimento das profecias do Antigo Testamento.
Juliano estava às voltas com todos estes projetos quando a morte o surpreendeu.
A morte de Juliano
Basílio de Cesaréia, o bispo cristão que tinha sido condiscípulo de Juliano em Atenas, tivera uma visão em que São Mercúrio, um dos velhos mártires de Cesaréia, descia do céu e atravessava o coração de Juliano com uma lança. A visão de Basílio não se cumpriu, mas pouco depois, quando Juliano dirigia suas tropas em uma campanha contra os persas, ele foi atingido por uma lança inimiga, e morreu. Conta-se que suas últimas palavras foram: "Venceste, Galileu!", mas isto não passa de uma lenda pouco digna de crédito.
Seja como for, tenha ou não Juliano pronunciado estas palavras, é verdade que o Galileu já tinha vencido quando Juliano ainda vivia. As reformas religiosas do imperador apóstata nunca conseguiram apoio do povo que zombava delas, pois o paganismo tinha perdido sua força vital e não podia ser ressuscitado mediante decretos imperiais.

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