sexta-feira, 29 de junho de 2007

História da Igreja - 19

A Era dos Reformadores
Parte 6
O Movimento Anabatista
Tanto Lutero como Zwínglio se queixavam de que, através dos séculos, o cristianismo havia deixado de ser o que havia sido nos tempos do Novo Testamento. Lutero desejava livrá-lo de tudo o que era contrário às Escrituras. Zwínglio ia mais longe e sustentava que somente deveria ser praticado aquilo em que se cresse, ou aquilo que era encontrado na Bíblia. Mas logo apareceram outros que assinalavam que o próprio Zwínglio não levava essas idéias a sua conclusão lógica.

Os Primeiros Anabatistas
Segundo essas pessoas, Zwínglio e Lutero esqueciam que no Novo Testamento havia um contraste marcante entre a igreja e a sociedade que a rodeia. Esse contraste logo resultou em perseguição, porque a sociedade romana não podia tolerar o cristianismo primitivo. Assim, a união entre a igreja e o estado que teve lugar a partir da conversão de Constantino, constituiu-se em si mesma um abandono do cristianismo primitivo. Portanto, a reforma iniciada por Lutero devia ir mais além, se verdadeiramente queria ser obediente ao mandato bíblico.
A igreja não deveria confundir-se com o restante da sociedade. E a diferença fundamental entre ambas é que, embora se pertença a uma sociedade pelo simples fato de se nascer nela, e sem fazer decisão alguma a esse respeito, para ser parte da igreja há necessidade de se fazer uma decisão pessoal. A igreja é uma comunidade voluntária, e não uma sociedade dentro da qual nascemos.
A consequência imediata de tudo isso é que o batismo das crianças deve ser rechaçado. Esse batismo dá a entender que uma pessoa é cristã simplesmente por ter nascido em uma sociedade supostamente cristã. Porém, tal entendimento oculta a verdadeira natureza da fé cristã, que requer decisão própria.
Além disso, esses reformadores mais radicais sustentavam que a fé cristã era, em sua própria essência, pacifista. O Sermão do Monte deveria ser obedecido ao pé da letra, apesar de muitas objeções sobre a impossibilidade de praticá-lo, pois tais objeções eram devidas à falta de fé. Os cristãos não deve¬riam tomar as armas para defenderem-se a si mesmos, nem para defender sua pátria, mesmo que fosse ameaçada pelos turcos. Como era de se esperar, tais doutrinas não foram bem recebidas na Alemanha, onde a ameaça dos turcos era cons¬tante, nem tão pouco em Zurich e nas demais regiões da Suíça, onde a fé protestante estava em perigo de ser aniquilada pelos católicos.
Essas opiniões apareceram em diversos lugares, no século XVI, e, ao que parece, sem que houvesse conexão direta entre seus focos. Entretanto, foi em Zurich que, primeiramente, elas vieram à luz. Havia ali um grupo de crentes, assíduos leitores da Bíblia, e vários deles letrados, que forçavam Zwínglio a tomar medidas mais radicais de reforma. Em particular, essas pessoas, que se chamavam pelo nome de "irmãos", sustenta¬vam que se devia fundar uma congregação, ou um grupo dos verdadeiros crentes, para contrastar com aqueles que se diziam cristãos pelo fato de terem nascido num país cristão e terem sido batizados quando crianças.
Quando finalmente observou-se que Zwínglio não seguiria o caminho que eles propunham, alguns dos "irmãos" decidiram fundar eles mesmos essa comunidade de verdadeiros crentes. Em sinal disso, o ex-sacerdote Jorge Blaurock pediu a outro dos irmãos, Conrado Grebel, que o batizasse. Em 21 de janeiro de 1525, junto à fonte que se encontrava no meio da praça de Zurich, Grebel batizou Blaurock que, em seguida, fez o mesmo com outros irmãos. Aquele primeiro batismo, todavia, não foi por imersão, pois o que preocupava a Blaurock, Grebel e os demais não era a forma em que se administrava o rito, mas a necessidade que a pessoa tivesse e proclamasse sua fé antes de ser batizada. Mais tarde, em seus esforços por serem bíblicos em todas as suas práticas, começaram a batizar por imersão.
Assim, de imediato, se deu a essas pessoas o nome de "anabatistas", que quer dizer "rebatizadores". Naturalmente, esse nome não era de todo exato, porque o que os supostos rebatizadores diziam não era que era necessário batizar-se de novo, mas sim que o primeiro batismo não era válido e que, assim, o que se recebia depois de confessar a fé era o primeiro e único batismo. Porém, em todo caso, a história os identifica como "anabatistas", e esse é o nome que daremos a eles a fim de evitar confusões.
O movimento anabatista logo atraiu grande oposição, tanto por parte dos católicos como dos reformadores. Ainda que essa oposição se expressasse comumente em termos teológicos, o fato é que os anabatistas foram perseguidos porque eram considerados subversivos. Apesar de todas as reformas, Lutero e Zwínglio continuaram aceitando os termos fundamentais da relação entre o cristianismo e a sociedade que se havia desenvolvido a partir de Constantino. Nem um nem outro interpretava o evangelho de maneira a ser uma provocação radical a ordem social. E foi isso, ainda que sem querer, o que fizeram os anabatistas. Seu pacifismo extremo se tornou intolerável aos encarregados de manter a ordem social e política, particularmente numa época de grande incerteza como foi o século XVI.
Além do mais, ao insistir no contraste entre a igreja e a sociedade natural, os anabatistas estavam afirmando que as estruturas de poder dessa sociedade não deveriam ser transferidas para a igreja. Mesmo contra os propósitos iniciais de Lutero, o luteranismo se via agora sustentado pelos príncipes que o haviam abraçado, os quais gozavam de grande autoridade, não somente nos assuntos políticos, como também nos eclesiásticos. Na Zurich, de Zwínglio, o Conselho de Governo era quem, no final das contas, ditava a política religiosa. E isso era o que ocorria nos territórios católicos, onde se conservava a tradição medieval. Mesmo que isso não queira dizer que a igreja e o estado concordavam em todos os pontos, era certo que havia pelo menos um corpo de proposições em comum, e era dentro desse contexto que se produziam os conflitos entre as autoridades civis e as eclesiásticas. Porém, os anabatistas deitaram tudo isso por terra, ao insistir numa igreja de caráter voluntário, distinta da sociedade civil.
Além disso, muitos dos anabatistas eram igualitários. Muitos se tratavam entre si de "irmãos". Na maioria dos seus grupos as mulheres tinham tanto direito como os homens. E pelo menos na teoria, os pobres e os ignorantes eram tão importantes como os ricos e os sábios.
Tudo isso causava um efeito altamente subversivo para a Europa do século XVI e, portanto, logo começaram as perseguições aos anabatistas. Em 1525, as regiões católicas da Suíça começaram a condenar os anabatistas à pena capital. No ano seguinte, o Conselho de Governo de Zurich decretou também a pena de morte para quem rebatizasse, ou quem se deixasse rebatizar. E em poucos meses todos os demais territórios protestantes da Suíça seguiram o exemplo de Zurich. Na Alemanha não existia uma política uniforme, pois se aplicavam aos anabatistas as velhas leis contra os hereges, e cada estado seguia pelo caminho que melhor lhe parecia. Em 1528, Carlos V decretou a pena de morte para os anabatistas, apelando para uma velha lei romana, criada para extirpar o donatismo, segundo a qual quem se fizera culpável de rebatizar, ou de rebatizar-se, devia ser condenado à pena de morte. A dieta de Spira, de 1529, a mesma em que os príncipes luteranos protestaram e por isso receberam o nome de protestantes, aprovou o decreto imperial contra os anabatistas. E desta vez ninguém protestou. O único príncipe alemão que, sem protestar formalmente, se negou por razões de consciência a aplicar o decreto imperial em seus territórios, foi o magistrado Felipe de Hesse.
Em alguns lugares, como na Saxônia eleitoral em que vivia Lutero, os anabatistas foram acusados tanto de hereges como de rebeldes. Visto que o primeiro era um crime religioso, e o segundo um crime civil, tanto as cortes eclesiásticas como as civis tinham jurisdição para castigar quem se atrevesse a repetir o batismo, e quem se negasse a apresentar seus filhos pequenos para o receber.
O número de mártires foi enorme, provavelmente maior do que todos os que morreram durante os três primeiros séculos da história da igreja. O modo pelo qual se aplicava a pena de morte variava de lugar para lugar e, até de caso para caso. Com cruel ironia, em alguns lugares se condenavam os anabatistas a morrerem afogados. Outras vezes, eram queimados vivos, segundo o costume estabelecido séculos antes. Porém não faltaram casos nos quais eles foram mortos em meio a torturas incríveis, como a de serem esquartejados ainda vivos. As histórias de heroísmo em tais circunstâncias encheriam muitos volumes. E o notável é que, quanto mais eram perseguidos, mais crescia o movimento.

Os Anabatistas Revolucionários
Mesmo que muitos dos primeiros chefes do movimento fossem eruditos, e quase todos eles fossem pacifistas, logo aquela primeira geração pereceu vítima da perseguição. E o movimento cada vez mais foi se fazendo radical, mesclando-se com o ressentimento popular que havia dado lugar diante da rebelião dos camponeses. Pouco a pouco, o pacifismo original foi esquecido e o movimento tornou-se violento.
Ainda antes do surgimento do movimento anabatista, Tomás Muntzer tinha unido algumas das doutrinas, que depois o movimento promulgaria, com ânsias de justiça por parte dos camponeses. E agora muitos anabatistas faziam o mesmo. Entre eles se contava Melchor Hoffman, correeiro que tinha sido pregador leigo luterano na Dinamarca, mas que, mais tarde, tinha deixado as doutrinas de Lutero a respeito da ceia, transformando-se num seguidor de Zwínglio. Em Estrasburgo, onde o anabatismo era relativamente forte e havia uma certa medida de tolerância, Hoffman se tornou anabatista. Pouco depois começou a anunciar que o dia do Senhor estava próximo. Sua pregação inflamou as multidões, que correram para Estrasburgo, onde segundo ele seria estabelecida a Nova Jerusalém. O próprio Hoffman predisse que seria encarcerado por seis meses e que então viria o fim. Além disso, abandonou o pacifismo inicial dos anabatistas, declarando que ao aproximar-se o fim seria necessário que os filhos de Deus pegassem as armas contra os filhos das trevas. Quando foi encarcerado e se cumpriu assim a primeira parte da sua profecia, foram muitos os que correram para Estrasburgo na espera do sinal do alto para tomar as armas. Mas, o fato de que a cada dia eram mais os anabatistas que haviam na cidade, obrigou as autoridades a tomarem medidas cada vez mais repressivas. E Hoffman continuava encarcerado.
Então alguém disse que, na realidade, a Nova Jerusalém seria estabelecida, não em Estrasburgo, mas sim em Múnster. Nessa cidade, o equilíbrio entre os católicos e protestantes era tal que existia uma trégua entre todos os partidos e, como consequência disso, não se perseguia os anabatistas. Para lá foram os visionários e o povo cuja crescente opressão havia levado ao desespero. O reino viria logo. Viria em Múnster. E então os pobres receberiam as terras por herança.
Rapidamente o número dos anabatistas em Múnster foi tal que conseguiram apoderar-se da cidade. Seus chefes eram um padeiro holandês, João Matthys, e seu principal discípulo, João de Leiden. Uma das primeiras providências foi mandar os católicos para fora da cidade. O bispo, expulso de sua sede, reuniu um exército e sitiou a Nova Jerusalém. Enquanto isso, dentro da cidade, se insistia cada vez mais em que tudo se ajustasse à Bíblia. Os protestantes moderados foram também considerados ímpios. Constantemente, se destruíam as esculturas, pinturas e demais objetos do culto tradicional. Fora da cidade, o bispo matava a todos os anabatistas que caíssem em suas mãos. Os defensores se exaltavam cada vez mais, à medida em que a situação piorava, pois os alimentos se escas¬seavam. Diariamente, havia aqueles que criam receber visões do alto. E numa saída militar contra as forças do bispo, João Matthys caiu morto, e João de Leiden o sucedeu.
Devido à guerra constante e o êxodo de muitos varões, a população feminina da cidade era muito maior que a masculina, e João de Leiden decretou a poligamia, usada pelos patriarcas do Antigo Testamento. Por lei, toda mulher na cidade deveria estar casada com algum homem. O sítio se prolonga¬va e, ao mesmo tempo que os sitiados necessitavam de alimen¬tos, os fundos do bispo começaram a terminar. Numa ação desesperada, João de Leiden saiu com um punhado de homens e derrotou numa escaramuça os soldados do bispo. Então, em celebração daquela vitória, ele foi proclamado rei da Nova Jerusalém.
Porém, pouco depois, um grupo de habitantes da Nova Jerusalém, talvez fastiados pelos excessos que se cometiam, ou talvez impulsionados pela fome e pelo medo, abriram as portas da cidade para o bispo, cujas tropas arrasaram os defensores do reduto apocalíptico.
O rei da Nova Jerusalém foi preso e exibido por toda região, com seus principais assessores, em jaulas individuais de ferro. Pouco depois foram torturados e executados.
Assim terminou o principal broto do anabatismo revolucionário. Melchor Hoffman continuou encarcerado e esqueci¬do, ao que parece, até a sua morte. E até os dias de hoje, na igreja de São Lamberto, em Múnster, podem ser vistas as três jaulas em que foram exibidos o rei e seus dois principais assessores.

O Anabatismo Posterior
A queda de Múnster pôs fim ao anabatismo revolucionário. E logo se começaram a escutar vozes daqueles que diziam que a tragédia de Múnster se devia ao fato do anabatismo ter se desviado do pacifismo original, que era parte da verdadeira fé. De igual modo, dos primeiros chefes, estes novos chefes criam que a razão pela qual os cristãos não estavam dispostos a cumprir os preceitos do Sermão do Monte não é que não fossem exequíveis, mas sim porque havia falta de fé. Aquele que verdadeiramente tem fé, pratica o amor que Jesus ensinou e deixa as consequências da prática nas mãos de Deus.
O mais notável porta-voz dessa nova geração foi Menno Simons, um sacerdote católico holandês que abraçou o anabatismo em 1536, isto é, no mesmo ano em que foram executados João de Leiden e seus companheiros. Simons se uniu a um grupo de anabatistas holandeses cujo chefe era Obbe Philips, porém logo se destacou entre eles de tal maneira que o grupo recebeu o nome de "menonitas".
Apesar dos menonitas terem sofrido as mesmas perseguições de que foram alvo os anabatistas em geral, Menno Simons conseguiu sobreviver e passou o resto de sua vida viajando pela Holanda e o norte da Alemanha, pregando sua fé. Para ele o pacifismo era parte fundamental da fé cristã e, portanto, repudiava toda relação com a ala revolucionária do anabatismo. Os cristãos, segundo cria Menno Simons, não tinham que prestar juramento algum e, portanto, não poderiam ocupar cargos públicos que requeriam tais juramentos. Porém, tinham que obedecer às autoridades civis em tudo, exceto no que as Escrituras proibiam. O batismo, que Menno praticava jogando água sobre a cabeça, somente seria administrado aos adultos que confessassem a sua fé. Nem esse rito, nem a ceia conferem graça alguma, mas são sinais externos do que sucede internamente entre o cristão e Deus. Além disso, seguindo o exemplo de Jesus, Menno e os seus praticavam a lavagem mútua dos pés.
Apesar de se absterem de participar ativamente em qualquer ato de subversão, os menonitas logo foram considerados subversivos por muitos governos, pois se negavam a participar da vida comum da sociedade, particularmente no que se referia a portar armas. Isso, por sua vez, fez com que se espalhassem por toda Europa. Muitos emigraram para a Europa oriental, particularmente para a Rússia. Outros marcharam para a América do Norte, onde a tolerância religiosa prometia-lhes uma vida de paz. Porém, também na Rússia e na América do Norte, tiveram dificuldades, pois em ambos os casos o estado queria que se ajustassem às suas leis, sujeitando-se ao serviço militar obrigatório. Por essa causa, nos séculos XIX e XX fortes contingentes emigraram para a América do Sul, onde havia territórios em que podiam viver em isolamento relativo do resto da sociedade.
Até os dias de hoje, os menonitas são o principal ramo do velho anabatismo do século XVI, e continuam insistindo em seu pacifismo e dedicando-se, frequentemente, ao serviço social.

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