quarta-feira, 27 de junho de 2007

História da Igreja 15

A Era dos Reformadores
Parte 2
Martinho Lutero: O Caminho para a Reforma
Poucos personagens na história do cristianismo têm sido discutidos tanto. ou tão calorosamente, como Martinho Lutero. Para uns, Lutero é o "bicho-papão" que destruiu a unidade da igreja, a besta selvagem que pisou na vinha do Senhor, um monge renegado que se dedicou a destruir as bases da vida monástica. Para outros, ele é o grande herói que fez voltar, uma vez mais, a pregação do evangelho puro, o campeão da fé bíblica, o reformardor de uma igreja corrompida. Nos últimos anos, devido em parte ao novo espírito de compreensão entre os cristãos, os estudos sobre Lutero têm sido muito mais equilibrados e, tanto católicos como protestantes, se têm achado na obrigação de corrigir certas opiniões formadas, não pela investigação histórica, mas pelo fragor da polémica. Hoje, são poucos os que duvidam da sinceridade de Lutero, e há muitos católicos que afirmam que o protesto do monge agostiniano foi mais do que justificável e que, em muitos pontos, ele tinha razão. Paralelamente a isso, são poucos os historiadores protestantes que seguem vendo em Lutero um herói sobrehumano que reformou o cristianismo por si só, e cujos pecados e erros foram de menor importância.
Ao estudarmos sua vida e o ambiente em que ela se desenvolveu, Lutero aparece como um homem por vezes rude, mas também erudito, cujo impacto se deveu a dar à sua erudição uma conotação e aplicação populares. Era indubitavelmente sincero até a paixão e, frequentemente, vulgar nas suas expressões. Sua fé era profunda e nada lhe importava mais do que ela. Quando se convencia de que Deus queria que tomasse certo caminho, o seguia até as últimas consequências e não como alguém que, pondo a mão no arado, olha para trás. Seu uso da linguagem, tanto o latim como o alemão, era magistral, ainda que, quando um ponto lhe parecia ser de grande importância, ele o reprisava até o exagero. Uma vez convencido da verdade da sua causa estava disposto a enfrentar os mais poderosos senhores do seu tempo. Porém, essa mesma profundidade de convicção, essa paixão, essa tendência ao exagero, o levaram a tomar atitudes que depois ele e seus seguidores tiveram de deplorar.
Por outro lado, o impacto que Lutero causou se deve em boa parte às circunstâncias que estavam fora do alcance de sua mão e das quais ele mesmo, frequentemente, não se aper¬cebia. A invenção da imprensa fez com que suas obras fossem difundidas de uma maneira que tinha sido impossível fazê-lo poucas décadas antes. O crescente nacionalismo alemão, do qual
ele mesmo era até certo ponto participante, se prestou a ser um apoio inesperado e muito valioso. Os humanistas, que sonhavam com uma reforma segundo a concebia Erasmo, ainda que frequentemente não pudessem aceitar o que lhes parecia ser os exageros e a rudeza do monge alemão, tão pouco estavam dispostos a que o esmagassem sem antes ser escutado, como havia ocorrido no século anterior com João Huss. As circunstâncias políticas no começo da Reforma foram um dos fatores que impediram que Lutero fosse condenado imediatamente e, quando por fim, as autoridades eclesiásticas e políticas se viram livres para agir, já era demasiado tarde para calar o seu protesto.
Ao estudar a vida de Lutero e também sua obra, uma coisa fica bem clara: a tão esperada reforma se produziu, não porque Lutero ou outra pessoa se havia proposto a isso, mas porque ele chegou no momento oportuno e porque nesse momento o Reformador, e muitos outros junto dele, estiveram dispostos a cumprir sua responsabilidade histórica.

A Peregrinação Espiritual
Lutero nasceu em 1483, em Eisleben, Alemanha, onde seu pai, de origem camponesa, trabalhava nas minas. Sete anos antes, Isabel havia herdado o trono de Castela. Se bem que isso não se relaciona diretamente com a juventude de Lutero, pois Castela era então somente um pequeno reino a centenas de quilómetros de distância, nós o mencionamos para que o estudnte veja que, antes do nascimento de Lutero, já se havia começado a tomar, na Espanha, as medidas reformado¬ras que mencionamos anteriormente.
A infância do pequeno Martinho não foi feliz. Seus pais eram extremamente severos com ele e, muitos anos mais tarde, ele mesmo contava com amargura alguns dos castigos que lhe tinham sido impostos. Durante toda a sua vida foi presa de períodos de depressão e angústia profunda, e há quem pense que isso se deve em boa parte à austeridade excessiva exigida na sua infância. Na escola, suas primeiras experiências não foram melhores, pois também posteriormente se queixava de como o tinham golpeado por não saber suas lições. Se bem que não se deva exagerar em tudo isso, não resta dúvida que essas situações deixaram marcas permanentes no caráter do jovem Martinho.
Em julho de 1505, pouco antes de completar os 22 anos de idade, Lutero ingressou no mosteiro agostiniano de Erfurt. As causas que o levaram a dar esse passo foram muitas. Duas semanas antes, quando se achava no meio de uma tormenta elétrica, sentiu sobremaneira o temor da morte e do inferno e prometeu a Santa Ana que se tornaria um monge. Algum tempo depois, ele mesmo diria que os rigores do seu lar o levaram ao mosteiro. Por outro lado, seu pai havia decidido que seu filho se tornasse um advogado e fazia grandes esforços para lhe dar uma educação adequada a essa carreira. Lutero não queria ser advogado e, portanto, é muito possível que, ainda sem saber, havia interposto a vocação monástica entre seus próprios desejos e os projetos de seu pai. Este último se mostrou profundamente irado ao receber notícias do ingresso de Martinho no mosteiro e demorou muito tempo para perdoar-lhe. Porém, a razão principal que levou Lutero a tomar o hábito, como em tantos outros casos, foi o seu interes¬se pela própria salvação. O tema da salvação e da condenação permeava todo o ambiente da época. A vida presente não parecia ser mais que uma preparação e prova para a vida vindoura. Logo seria tolice dedicar-se a ganhar prestígio e riquezas no presente, mediante a advocacia, e descuidar do futuro. Lutero entrou no mosteiro como fiel filho da igreja, com o propósito de utilizar os meios de salvação que a igreja lhe oferecia e dos quais o mais seguro lhe parecia ser a vida monástica.
O ano de noviciado parece ter transcorrido tranquilamente, pois Lutero fez seus votos e seus superiores o escolheram para se tornar um sacerdote. Segundo ele mesmo conta, a ocasião da celebração de sua primejra missa foi uma experiência surpreendente, pois o temor de Deus se apoderou dele ao pensar que estava oferecendo nada menos que Jesus Cristo. Repetidamente, esse temor esmagador de Deus pressionou-o, pois não estava seguro de que tudo o que estava fazendo em benefício de sua salvação era suficiente. Deus lhe parecia um juiz severo, como antes tinham sido seus pais e seus professo-res, que no julgamento lhe pediria contas de todas as suas ações e o acharia faltoso. Era necessário, portanto, valer-se de todos os recursos da igreja para estar salvo.
Entretanto, esses recursos eram insuficientes para um espírito profundamente religioso, sincero e apaixonado como o de Lutero. Supunha-se que as boas obras e a confissão fossem a resposta para a necessidade que aquele jovem monge tinha de se justificar diante de Deus. Porém não bastavam nem uma coisa nem outra. Lutero tinha um sentimento muito profundo de sua própria pecaminosidade e cada vez mais tratava de sobrepor-se a ela, mas cada vez mais se apercebia que o pecado era muito mais poderoso do que ele. Isto não quer dizer que não fosse um bom monge, ou que levasse uma vida licenciosa ou imoral. Pelo contrário, Lutero se esforçou em ser um monge perfeito. Repetidamente castigava seu corpo, segundo lhe ensinaram os grandes mestres do monaquismo. E sempre socorria-se do confessionário com tanta frequência quanto fosse possível. Porém tudo isso não bastava. Se, para que os pecados fossem perdoados, era necessário confessa los, o grande medo de Lutero era esquecer alguns de seus pecados. Portanto, uma e outra vez repassava cada uma de suas ações e pensamentos e, quanto mais os repassava, mais pecado encontrava neles. Houve ocasiões em que no mesmo momento que saía do confessionário percebia que tinha havido um pecado que não fora confessado. A situação ficava então desesperadora. O pecado era algo muito mais profundo que as meras ações ou pensamentos conscientes. Era todo um estado de vida, e Lutero não encontrava maneira alguma de confessá-lo e ser perdoado mediante o sacramento da penitência.
Seu conselheiro espiritual lhe recomendou que lesse as obras dos místicos. Pelos fins da Idade Média, houve uma forte onda de misticismo, impulsionada precisamente pelo sentimento que muitos ti¬nham de que a igreja, devido a sua corrupção, não era o melhor meio de aproximar-se de Deus. Lutero seguiu então esse caminho, não porque duvidava da autoridade da igreja, mas porque essa autoridade, através de seu confessor, lhe ordenara isso.
O misticismo lhe cativou por algum tempo, como antes lhe acontecera com a vida monástica. Talvez ali encontrasse o caminho da salvação. Mas logo esse caminho se tornou outro beco sem saída. Os místicos diziam que bastava amar a Deus, visto que tudo mais era uma consequência do amor. Isto pareceu a Lutero como uma palavra de libertação, pois não era necessário levar em conta todos os seus pecados, como até então fizera. Porém, não tardou muito para aperceber-se de que amar a Deus não era assim tão fácil. Se Deus era como seus pais e mestres que o haviam surrado até tirar-lhe sangue, como poderia ele amá-Lo? Por último, Lutero chegou até a confessar que não amava a Deus, mas sim que o odiava.
Não havia saída possível. Para ser salvo era necessário confessar os pecados e Lutero havia descoberto que, por mais que se esforçasse, seu pecado ia muito mais adiante que sua confissão. Se, como diziam os místicos, bastava amar a Deus, isso não era de grande ajuda pois Lutero tinha que reconhecer que era impossível amar a um Deus justo que lhe pediria contas de todas as suas ações.
Nessa encruzilhada, seu confessor, que era também seu superior, tomou uma medida surpreendente. O normal seria pensar que um sacerdote que estava passando por uma crise existencial pela qual atravessava Lutero, não estava pronto para servir como pastor, ou como mestre de outros. Porém, foi exatamente isso que propôs seu confessor. Séculos antes, Jerônimo havia encontrado um modo de escapar de suas tentações no estudo do hebraico. Mesmo que os problemas de Lutero fossem distintos dos de Jerônimo, talvez o estudo, o ensino e o trabalho pastoral pudessem ter para ele um resultado semelhante. Para isso ele ordenou a Lutero, que não esperava tal coisa, que se preparasse para ir dirigir cursos sobre as Escrituras na universidade de Wittenberg.
Muitas vezes se tem dito entre os protestantes que Lutero não conhecia a Bíblia e que foi, no momento de sua conversão, ou pouco antes, que começou a estudá-la, mas isso não é certo. Como monge que tinha de recitar as horas canónicas de oração, Lutero sabia o Saltério de memória. E além disso, em 1512 ele obteve seu doutorado em teologia e, para tanto, teria que ter estudado as Escrituras.
O que é certo é que quando se viu obrigado a preparar conferências sobre a Bíblia, Lutero começou a ver nela uma possível resposta para suas angústias espirituais. Em meados de 1513, começou a dar aulas sobre os Salmos. Devido aos anos que passara recitando o Saltério, sempre dentro do contexto do ano litúrgico que se centraliza nos principais acontecimentos da vida de Cristo, Lutero interpretava os Salmos cristologicamente. Neles, era Cristo quem falava. E assim, viu Cristo passando pelas angústias semelhantes às que passava. Este foi o princípio de sua grande descoberta. Porém se tudo se resumia nisto, Lutero teria chegado simplesmente à piedade popular tão comum, que pensa que Deus o Pai exige justiça, e é o Filho quem nos perdoa. Precisamente por seus estudos teológicos, Lutero sabia que tal idéia era falsa e não estava disposto a aceitá-la. Porém em todo caso, nas angústias de Jesus Cristo, começou a achar consolo para as suas.
A grande descoberta veio provavelmente em 1515, quando Lutero começou a dar conferências sobre a epístola de Romanos, pois ele mesmo disse, depois, que foi no primeiro capítulo dessa epístola onde encontrou a resposta para as suas dificuldades. Essa resposta não veio facilmente. Não ocorreu simplesmente que, num bom dia, Lutero abriu sua Bíblia no primeiro capítulo de Romanos e descobriu ali que "o justo viverá pela fé". Segundo ele mesmo conta, a grande descoberta foi precedida por uma grande luta e uma amarga angústia, pois Romanos 1.17 começa dizendo que: "no evangelho a justiça de Deus se revela". Segundo este texto, o evangelho é a revelação da justiça de Deus. E era precisamente a justiça de Deus que Lutero não podia tolerar. Se o evangelho fosse a mensagem de que Deus não é justo, Lutero não teria tido problemas. Porém este texto relaciona indissoluvelmente a justiça de Deus com o evangelho. Segundo Lutero conta, ele odiava a frase "a justiça de Deus” e esteve meditando nela dia e noite para compreender a relação entre as duas partes do versículo que começa afirmando que "no evangelho a justiça de Deus se revela" e conclui dizendo que "o justo viverá pela fé".
A resposta foi surpreendente. A "justiça de Deus" não se refere aqui, como pensa a teologia tradicional, ao fato de que Deus castigue aos pecadores. Refere-se, sim, a que a "justiça" do justo não é obra sua, mas dom de Deus. A "justiça de Deus" é a que tem quem vive pela fé, não porque seja em si mesmo justo, ou porque cumpra as exigências da justiça divina, mas porque Deus lhe dá esse dom. A "justificação pela fé" não quer dizer que a fé seja uma obra mais sutil que as boas obras, e que Deus nos paga por essa obra. Quer dizer sim que, tanto a fé como a justificação do pecador, são obras de Deus, dom gratuito. Em consequência, continua comentando Lutero sobre sua descoberta, "senti que havia nascido de novo e que as portas do paraíso me haviam sido abertas. As Escrituras todas tiveram um novo sentido. E a partir de então a frase "a justiça de Deus" não me encheu mais de ódio, mas se tornou indizivelmente doce em virtude de um grande amor".

Acontece a Tormenta
Se bem que os acontecimentos posteriores revelaram outra faceta de Lutero, durante todo esse tempo ele se revelou um homem relativamente reservado, dedicado a seus estudos e sua luta espiritual. Sua grande descoberta embora tivesse lhe trazido uma nova compreensão do evangelho, não o levou a protestar de imediato contra o modo pelo qual a igreja entendia a fé cristã. Pelo contrário, ele continuou dedicado a seus labores docentes e pastorais e, embora haja indícios de que ensinou sua nova teologia, não pretendeu contrapô-la à que se ensinava na igreja. O que é mais notável é que ele mesmo não tinha percebido que sua grande descoberta se opunha a todo o sistema de penitências e, conseqüentemente, à teologia e às doutrinas comuns na sua época.
Pouco a pouco, e sem pretender ocasionar controvérsia alguma, Lutero foi convencendo seus colegas na universidade de Wittenberg. Quando por fim decidiu que havia chegado o momento de lançar seu grande repto, compôs noventa e cinco teses, que deviam servir de base para um debate académico. Nelas Lutero atacava vários dos princípios fundamentais da teologia escolástica e esperava que a publicação dessas teses, e o seu posterior debate, seriam uma oportunidade de dar a conhecer ao resto da igreja sua descoberta. Porém, para sua surpresa, chegou a data do debate e somente lhe deram atenção os círculos académicos da universidade. Ao que parece, a descoberta de que o evangelho devia ser entendido de maneira diferente da que comumente se pregava, algo tão importante para Lutero, não teve a mesma repercussão para o resto do mundo.
Mas então, sucedeu o inesperado. Quando Lutero produziu outras teses, sem crer de modo algum que teriam mais impacto que as anteriores, se criou uma revolução tal que toda a Europa se viu envolvida nas suas consequências. O que tinha acontecido era que, ao atacar a venda das indulgências, crendo que não se tratava mais do que uma consequência natural do que se havia discutido anteriormente, Lutero se havia atrevido, ainda que sem sabê-lo, a opor-se ao lucro e aos desígnios de vários personagens muito mais poderosos do que ele.
A venda de indulgências que Lutero atacou tinha sido autorizada pelo papa Leão X, e nela estavam envolvidos os interesses económicos e políticos da poderosíssima casa dos Hohenzollern, que aspirava à hegemonia da Alemanha. Um dos membros dessa casa, Alberto de Brandeburgo, tinha já duas sedes episcopais e desejava ocupar também o arcebispado de Mainz, que era o mais importante da Alemanha. Para isso se pôs em contato com Leão X, um dos piores papas daquela época de papas indolentes, avarentos e corrompidos. Leão X fez saber que estava disposto a conceder a Alberto o que ele lhe pedia, em troca de dez mil ducados. Posto que esta era uma soma considerável, o Papa autorizou Alberto a proclamar uma grande venda de indulgências em seus territórios, em troca de que a metade do produto fosse enviada ao erário papal. Parte do que sucedia era que Leão X sonhava com o término da Basílica de São Pedro, iniciada por seu predeces¬sor Júlio II, cujas obras marchavam lentamente por falta de fundos. Logo, a grande basílica que hoje é o orgulho da igreja romana foi uma das causas indiretas da reforma protestante. Quem se encarregou da venda das indulgências na Alemanha Central foi o dominicano João Tetzel, homem sem escrúpulos que com o fim de promover sua mercadoria, fazia afirmações escandalosas. Por exemplo: Tetzel e seus subalter¬nos proclamavam que a indulgência que vendiam deixava o pecador "mais limpo do que saíra do batismo", ou "mais limpo do que Adão antes de cair", que "a cruz do vendedor de indulgências tinha tanto poder como a cruz de Cristo" e que, no caso de alguém comprar uma indulgência para um parente já morto, "tão pronto a moeda caísse no cofre, a alma saía do purgatório".
Tais afirmações causavam repugnância entre os mais informados que sabiam que a doutrina da igreja não era assim como a apresentavam Tetzel e os seus seguidores. Entre os humanistas que se doíam pela ignorância e superstição que parecia reinar por todos os lugares, a pregação de Tetzel era vista como o exemplo mais triste do estado a que tinha chegado a igreja. O espírito nacionalista alemão também se ressentia dessa situação, porque via na venda das indulgências uma maneira pela qual Roma explorava mais uma vez o povo alemão, aproveitando de sua credulidade, para logo esbanjar em luxos e festins os escassos recursos que os pobres alemães tinham conseguido produzir com o suor de seus rostos. Porém, ainda que muitos abrigassem esses sentimentos, ninguém protestava, e as vendas continuavam.
Foi então que Lutero fixou suas famosas noventa e cinco teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg. Essas teses, escritas em latim, não tinham o propósito de criar uma como¬ção religiosa, como tinha sido o caso das anteriores. Depois daquela experiência, Lutero parece ter pensado que a questão que tinha sido debatida era principalmente do interesse dos teólogos, e que portanto suas novas teses não teriam mais impacto que aquele produzido nos círculos académicos. Porém, ao mesmo tempo, essas noventa e cinco teses, escritas acaloradamente com um sentimento de indignação profunda, eram muito mais devastadoras que as anteriores, não porque se referissem a tantos pontos importantes de teologia, mas porque punham o dedo sobre a chaga do ressentimento alemão contra os exploradores estrangeiros. E além do mais, ao atacar concretamente a venda das indulgências, punha em perigo os projetos dos poderosos. Se bem que seu ataque fosse relativamente moderado, algumas das teses iam mais além da mera questão da eficácia e dos limites das indulgências e apontavam para a exploração da qual o povo era objeto. Segundo Lutero, se era verdade que o papa tinha poderes para tirar uma alma do purgatório, tinha que utilizar esse poder, não por razões tão triviais como a necessidade de fundos para construir uma igreja, mas simplesmente por amor, e assim fazê-lo gratuitamente (tese 82). E ainda mais, o certo é que o papa deveria dar do seu próprio dinheiro aos pobres de quem os vendedores de indulgências tiravam, mesmo que para isso tivesse que vender a Basílica de São Pedro (tese 51).
Lutero deu a conhecer suas teses na véspera da festa de Todos os Santos, e seu impacto foi tal que frequentemente se marca essa data, 31 de outubro de 1517, como o começo da reforma protestante. Os impressores produziram um grande número de cópias das teses e as distribuíram por toda a Alema¬nha, tanto no original latino, como em tradução alemã. O próprio Lutero havia mandado uma cópia a Alberto de Brandeburgo, acompanhada com uma carta muito respeitosa. Alber¬to enviou as teses e a carta para Roma, pedindo a Leão X que interviesse. O imperador Maximiliano se encolerizou diante das atitudes e dos ensinos daquele monge impertinente, e também pediu a Leão X que interviesse. Nesse meio tempo, Lutero publicou uma explicação de suas noventa e cinco teses, na qual, além de esclarecer o que tinha sido escrito em
breves proposições, aguçava seu ataque contra a venda das indulgências e contra a teologia que servia para apoiá-la.
A resposta do papa foi pôr a questão debaixo da jurisdição dos agostinhos, cuja próxima reunião capitular, teria lugar em Heidelberg, e Lutero foi convocado. Para lá foi nosso monge, temendo por sua vida, pois se dizia que seria condenado e queimado. Porém para grande surpresa sua, muitos dos monges se mostraram favoráveis a sua doutrina. Alguns dos mais jovens a acolheram entusiasticamente. Para outros a disputa entre Lutero e Tetzel era um caso a mais na velha rivalidade entre os agostinhos e os dominicanos, e portanto, não estavam dispostos a abandonar seu campeão. Em consequência, Lutero regressou a Wittenberg fortalecido pelo apoio de sua ordem e feliz por haver ganhado vários conversos para sua causa.
O papa então tomou outro caminho. Em breve deveria se reunir em Augsburgo a dieta do Império, isso é, a assembleia de todos os potentados alemães, sob a presidência do imperador Maximiliano. O legado papal a essa dieta era o cardeal Cajetano, homem de grande erudição, cuja missão principal era convencer os príncipes alemães da necessidade de em¬preender uma cruzada contra os turcos, que ameaçavam a Europa, e de promulgar um novo imposto para esse fim. A ameaça dos turcos era tal que Roma estava tomando medidas para reconciliar-se com os husitas da Boémia, mesmo que isso implicasse em acatar várias de suas demandas. Portanto, a cruzada e o imposto eram a principal missão de Cajetano, a quem o papa comissionou para se entrevistar com Lutero e o obrigar a retratar-se. Se o monge se negasse, deveria ser levado prisioneiro a Roma.
O leitor Frederico, o Sábio da Saxônia, dentro de cuja jurisdição vivia Lutero, obteve do imperador Maximiliano um salvo-conduto para o frade, a quem se dispôs a ajudar em Augsburgo, mesmo sabendo que pouco mais de cem anos atrás e, em circunstâncias muito parecidas, João Huss tinha sido queimado em violação a um salvo-conduto imperial.
A entrevista com Cajetano não produziu o resultado dese¬jado. O cardeal se negava a discutir com o monge e exigia sua renúncia. O frade, por sua vez, não estava disposto a retratar-se, se não fosse convencido de que estava errado. Quando por fim se inteirou de que Cajetano tinha autoridade para arrastá-lo, ainda que em violação do salvo-conduto imperial, abandonou a cidade às escondidas no meio da noite, regressou a Wittenberg e apelou a um concílio geral.
Durante todo este período, Lutero havia contado com a proteção de Frederico, o Sábio, eleitor da Saxônia e portanto de Wittenberg. Frederico, não protegia Lutero porque estava convencido de suas doutrinas, mas sim porque lhe pareceu que a justiça exigia um julgamento correto. A princi¬al preocupação de Frederico era ser um governante justo e sábio. Com esse propósito fundou a Universidade de Wittenberg, onde muitos dos professores lhe diziam que Lutero tinha razão, e que se enganavam aqueles que o acusavam de heresia. Pelo menos, enquanto Lutero não fosse condenado oficial¬mente, Frederico estava disposto a evitar que se cometesse com ele uma injustiça semelhante a que havia acontecido no caso de João Huss. Entretanto, a situação se tornava cada vez mais difícil, pois cada vez mais eram mais numerosos os que diziam que Lutero era herege, tornando a posição de Frederico bastante precária.
Assim estavam as coisas, quando a morte de Maximiliano deixou vago o trono alemão, e era necessário eleger um novo imperador. Visto que se tratava de uma dignidade eletiva, e não hereditária, imediatamente se começou a discutir sobre quem seria o novo imperador. Os dois candidatos mais poderosos eram Carlos l, da Espanha (o filho de Joana, a Louca e Felipe, o Formoso, neto de Isabel) e Francisco l, da França. Mas nenhum desses candidatos era do agrado do Papa Leão X, pois ambos eram demasiadamente poderosos, e sua eleição à dignidade imperial quebraria o equilíbrio dos poderes europeus que era a base da política papal. Carlos tinha, além dos recur¬sos da Espanha, que começava a receber as riquezas do Novo Mundo, suas possessões hereditárias nos Países Baixos, Áustria e o sul da Itália. Se a tudo isso se lhe acrescentasse o trono alemão, seu poder não teria rival em toda Europa. Francisco, como rei da França, tampouco lhe parecia aceitável, pois uma união entre as coroas francesa e alemã podia ter consequências funestas para o papado. Portanto, era necessário buscar outro candidato cuja possibilidade de ser eleito estivesse, não em seu poder, mas em seu prestígio de homem sábio e justo. Dentro de tais critérios, o candidato ideal era Frederico, o Sábio, respeitado por todos os demais senhores alemães. Se Frederico fosse eleito, as potências europeias ficariam suficientemente divididas para permitir ao papa gozar de certo poder. Portanto, desde antes da morte de Maximiliano, Leão X tinha decidido aproximar-se de Frederico e apoiar a sua candidatura.
Porém, Frederico protegia a Lutero, pelo menos até que o frade revolucionário fosse devidamente julgado. Portanto, Leão decidiu que o melhor era prorrogar a condenação de Lutero e tratar de aproximar-se do monge e do eleitor que o defendia. Com essas instruções, enviou Karl von Miltitz, parente de Frederico, à Alemanha, com uma rosa de ouro para o eleitor em sinal de favor papal e, por assim dizer, com um ramo de oliva para o monge.
Miltitz se entrevistou com Lutero e conseguiu deste a promessa de não continuar a controvérsia, desde que seus inimigos fizessem o mesmo. Isso trouxe uma breve trégua, até que o teólogo conservador João Eck, professor da universidade de Ingolstadt, interveio no assunto. Em lugar de atacar Lutero, o qual se fizera aparecer como aquele que quebrara a paz, Eck atacou a Carlstadt, outro professor da universidade de Wittenberg que tinha se convencido das doutrinas de Lutero, e que era muito mais impetuoso e exagerado do que o Reformador. Eck propôs a Carlstadt um debate que teria lugar na universidade de Leipzig. Dadas e estabelecidas as ques¬tões, ficava claro que o propósito de Eck era atacar Lutero através de Carlstadt e, portanto, o Reformador declarou que devido a serem discutidas as suas doutrinas em Leipzig, ele também participaria do debate.
A discussão se conduziu com todas as formalidades dos exercícios académicos e durou vários dias. Quando chegou o momento de Lutero e Eck se enfrentarem, ficou claro que o primeiro era melhor conhecedor das Escrituras, porém que o segundo se achava mais à vontade no direito canônico e na teologia medieval. E com toda a esperteza, Eck levou o combate para seu próprio campo, e por fim obrigou a Lutero declarar que o Concílio de Constanza se enganara ao condenar Huss, e que um cristão com a Bíblia, no seu entender, tem mais autoridade que todos os papas e os concílios contra ela. Isso bastou. Lutero tinha se declarado defensor de um herege condenado
por um concílio ecumênico. Mesmo que os argumentos do Reformador se mostrassem melhores do que os do seu oponente em vários pontos, foi Eck quem ganhou o debate, pois nele conseguiu demonstrar aquilo a que se propusera: que Lutero era um herege, pois defendia as doutrinas dos hussitas.
Começou então um novo período de confrontações e perigos. Porém Lutero e os seus haviam empregado bem o tempo que as circunstâncias políticas lhes haviam dado, de maneira que por toda a Alemanha, e até fora dela, eram cada vez mais os que viam o monge agostiniano como o campeão da fé bíblica. Além do número sempre crescente de seus seguidores, particularmente entre os professores de Wittenberg e de outras universidades, e entre os sacerdotes mais zelosos de suas responsabilidades, Lutero tinha as simpatias dos humanistas, que viam nele um defensor da reforma que eles mesmos propunham, e dos nacionalistas, para quem o monge era o porta-voz do protesto alemão diante dos abusos de Roma.
Logo, ainda que umas semanas antes do debate de Leipzig, Carlos l da Espanha tinha sido eleito imperador (com o voto de Frederico, o Sábio) e, portanto, o papa não tinha que andar com mesuras como antes, a posição de Lutero tinha se fortalecido. Muitos cavaleiros alemães chegaram a enviar-lhe mensagens prometendo-lhe apoio armado, se o conflito chegasse a estourar. Quando por fim o papa resolveu atuar, sua ação resultou demasiadamente tardia e ineficiente. Na bula Exsurge domine, Leão X declarou que um javali selvagem havia penetrado na vinha do Senhor e ordenava que os livros de Martinho Lutero fossem queimados, e dava ao monge rebelde sessenta dias para submeter-se à autoridade romana, sob pena de excomunhão e anátema.
A bula demorou muito tempo para chegar às mãos de Lutero, pois as circunstâncias políticas eram sobremodo complexas. Em vários lugares, ao receber cópias da bula, as obras do Reformador foram queimadas. Porém em outros, alguns estudantes e outros partidários de Lutero, preferiram queimar algumas das obras que se opunham ao movimento reformador. Quando enfim a bula chegou às mãos de Lutero, este a queimou, junto com outros livros que continham as doutrinas papistas. O rompimento era definitivo e não havia modo de se voltar atrás.
Faltava ver, entretanto, que atitudes tomariam os senho¬res alemães e particularmente o Imperador, pois sem eles era pouco o que o papa poderia fazer contra Lutero. As gestões de cada parte foram demasiadamente numerosas para se narrar aqui. Basta dizer que, ainda que Carlos V fosse católico convicto, não deixou de utilizar a questão de Lutero como uma arma contra o papa quando este pareceu inclinar-se para o seu rival, Francisco l, da França. Posteriormente, depois de muitas idas e vindas, se resolveu que Lutero compareceria diante da dieta do Império, reunida em Worms no ano de 1521.
Quando Lutero chegou a Worms, foi levado diante do Imperador e vários dos principais personagens do Império. Quem estava encarregado de interrogá-lo lhe apresentou um montão de livros e lhe perguntou se os havia escrito. Depois de examiná-los, Lutero confirmou que os havia escrito todos e vários outros que não estavam ali. Então seu interlocutor lhe serguntou se continuava sustentando tudo o que havia dito neles ou se estava disposto a retratar-se de algo. Este era um momento difícil para Lutero, não tanto porque temia o poder Imperial, mas porque temia sobremaneira a Deus. Atrever-se a se opor a toda a igreja e ao Imperador, que tinha sido ordenado por Deus, era um passo temerário. Uma vez mais o monge temeu diante da majestade divina e pediu um dia para considerar sua resposta.
No dia seguinte, correu a notícia de que Lutero compareceria diante da dieta e a assistência foi grande. A presença do Imperador em Worms, rodeado de soldados espanhóis que abusavam do povo, havia exacerbado ainda mais o sentimento nacional. Uma vez mais, em meio ao maior silêncio, se pergun¬tou a Lutero se se retratava. O monge respondeu dizendo que o que havia escrito não era mais que a doutrina cristã que tanto ele como seus inimigos sustentavam, e portanto ninguém deveria pedir-lhe que se retratasse daquilo. Outra parte tratava sobre a tirania e as injustiças a que estavam submetidos os alemães, e também disto não se retrataria, pois tal não era o propósito da dieta, e tal negação somente contribuiria para aumentar a injustiça que se cometia. A terceira parte, que consistia em ataques a certos indivíduos e em pontos de doutrina que seus oponentes refutavam, certamente não havia sido escrita com demasiada aspereza. E assim tão pouco dela se retrataria, a não ser que lhe convencessem de que estava enganado.
Seu interlocutor insistiu: "Retratas-te, ou não?” E Lutero lhe respondeu, em alemão, desdenhando, portanto, o latim dos teólogos: "Não posso nem quero retratar-me de coisa alguma, pois ir contra a consciência não é justo nem seguro. Deus me ajude. Amém".
Ao queimar a bula papal, Lutero havia rompido definitivamente com Roma. E agora em Worms, rompia com o Império. Não lhe faltavam razões suficientes para clamar: "Deus me ajude".

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