tag:blogger.com,1999:blog-66266393245253534372024-03-12T19:43:15.862-07:00HISTÓRIA DA IGREJA IEsta página tem por finalidade colocar à disposição dos alunos, bem como de todos que se interessam pela História da Igreja, o material das aulas na Escola Teológica Rev. Celso Lopes.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.comBlogger20125tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-2981683471033536672007-06-29T07:14:00.000-07:002009-05-06T04:29:26.556-07:00História da Igreja - 20<strong>A Era dos Reformadores</strong><br /><strong>Parte 7</strong><br /><strong>JOÃO CALVINO</strong><br />Sem dúvida, o mais importante sistematizador da teologia protestante no século XVI foi João Calvino. Enquanto Lutero foi o espírito fogoso e propulsor do novo movimento, Calvino foi o pensador cuidadoso que forjou, das diversas doutrinas protestantes, um todo coerente. Além disso, para Lutero sua busca tormentosa da salvação e sua descoberta da justificação pela fé foram tais que sempre dominaram toda sua teologia. Calvino, como homem da segunda geração, não permitiu que a doutrina da justificação eclipsasse o restante da teologia cristã e, por isso, deu maior atenção a aspectos do cristianismo que foram postergados por Lutero: em particular, a doutrina da santificação.<br /><br /><strong>A formação de Calvino</strong><br />Calvino nasceu na pequena cidade de Noyon, na França, em 10 de julho de 1509, quando Lutero já havia ditado suas primeiras conferências na universidade de Wittenberg. Seu pai pertencia à classe média da cidade e trabalhava, principalmente, como secretário do bispo e procurador da biblioteca da catedral. Fazendo uso de tais conexões, procurou para seu filho João os benefícios eclesiásticos com os quais custeasse seus estudos.<br />Com esses recursos, o jovem Calvino foi estudar em Paris, onde conheceu tanto o humanismo como a reação conservadora que se lhe opunha. A discussão teológica que tinha lugar nos seus dias levou-o a conhecer as doutrinas de Wyclif, Huss e Lutero. Porém, segundo ele mesmo disse: "estava obstinadamente atado às superstições do papado". Em 1529, completou seus estudos em Paris, ao obter o grau de Mestre em Artes, e decidiu dedicar-se à jurisprudência. Com esse propósito, continuou seus estudos em Orleans e em Bourges, sob a orientação dos dois mais célebres juristas daquela época: Pierre de l'Estoile e Andrea Alciati. O primeiro seguia os métodos tradicionais no estudo e na interpretação das leis, enquanto o segundo era um humanista elegante e talvez algo vaidoso. Quando houve um debate entre ambos, Calvino interveio em favor do primeiro. Isto é importante porque indica que, ainda nesses tempos em que começava a desejar cultivar um espírito humanista, Calvino não sentia simpatias pela elegância vã de que frequentemente se viam possuídos alguns dos mais famosos humanistas.<br />Contudo, apesar de seu conflito com Alciati, Calvino estava disposto a seguir o caminho dos humanistas. Logo se uniu a um pequeno círculo de estudiosos e admiradores de Erasmo e se dedicou aos estudos humanistas. Logo, ainda que recebesse sua licença para praticar a advocacia em 1530, sua principal ocupação durante os anos seguintes parece ter sido a preparação de um comentário sobre a obra de Sêneca, De clementia. Este comentário, publicado em 1532, foi relativamente bem recebido, embora não colocasse seu autor entre os mais ilustres humanistas.<br /><br /><strong>A Conversão</strong><br />Não se sabe o motivo certo que levou Calvino a abandonar a fé romana, nem a data exata em que isso ocorreu. Diferentemente de Lutero, Calvino nos diz muito pouco sobre o estado interior de sua alma. Todavia, o mais provável parece ser que, no meio do círculo de humanistas que frequentava e através de seus estudos das Escrituras e da antiguidade cristã, Calvino chegou à convicção de que teria de abandonar a comunhão romana e seguir o caminho dos protestantes.<br />Em 1534, se apresentou em sua cidade natal de Noyon e renunciou aos benefícios eclesiásticos que seu pai havia conseguido e que eram a sua principal fonte de sustento econômico. Se ele já estava decidido, nesse momento, a abandonar a igreja romana, ou se esse ato foi simplesmente um passo a mais na sua peregrinação espiritual, nos é impossível saber. O fato é que em outubro de 1534, Francisco I, até então relativamente tolerante com os protestantes, mudou sua política e, em janeiro do ano seguinte, Calvino se exilava na cidade protestante de Basileia.<br /><br /><strong>As Institutas da Religião Cristã</strong><br />Calvino sentia-se chamado a dedicar-se ao estudo e às obras literárias. Seu propósito não era de modo algum chegar a ser um dos líderes da Reforma, mas sim encontrar um lugar tranquilo onde pudesse estudar as Escrituras e escrever sobre a nova fé. Pouco antes de chegar a Basileia, havia escrito um breve tratado sobre o estado das almas dos mortos antes da ressurreição. Segundo ele encarava sua própria vocação, sua tarefa consistiria em escrever outros tratados como esse, que serviriam para aclarar a fé da igreja numa época de tanta confusão.<br />Portanto, seu principal projeto era um breve resumo da fé cristã do ponto de vista protestante. Até então, quase toda literatura protestante, chegava pela urgência da polêmica, e assim tratava somente dos pontos em discussão, e havia dito pouca coisa sobre outras doutrinas fundamentais do cristianismo, como por exemplo a Trindade, a Encarnação, e outras. O que Calvino se propunha então era cobrir esse vazio com um breve manual ao qual deu o título de Institutas da Religião Cristã..<br />A primeira edição surgiu em Basileia, no ano de 1536. Era um livro de 516 páginas, porém de formato pequeno, de modo que cabia facilmente nos amplos bolsos que se usavam antigamente, e podia, assim, circular dissimuladamente pela França. Constava de apenas seis capítulos. Os primeiros quatro tratavam sobre a lei, o Credo, o Pai Nosso e os sacramentos. Os últimos dois, de tom mais polêmico, resumiam a posição protestante com respeito aos "falsos sacramentos" romanos e a liberdade cristã.<br />O êxito desta obra foi imediato e surpreendente. Em nove meses se esgotou a edição, que, por estar em latim, era acessível a leitores de diversas nacionalidades.<br />A partir de então Calvino continuou preparando edições sucessivas das Institutas que foi crescendo segundo iam pas¬sando os anos. As diversas polêmicas da época, as opiniões de vários grupos que Calvino considerava errados e as necessi¬dades práticas da igreja, foram contribuindo para o crescimento da obra, de tal maneira que para seguirmos o curso do desenvolvimento teológico de Calvino e das polêmicas em que se envolveu, bastaria comparar as edições sucessivas das Instituías. Visto que não podemos fazer tal coisa aqui, nos limitaremos a fazer constar as datas e os idiomas em que as diversas edições surgiram durante a vida de Calvino, terminando com um breve resumo da última edição.<br />Após a edição de 1536, em latim, surgiu em Estrasburgo a edição de 1539, no mesmo idioma. Em 1541, Calvino publicou em Genebra a primeira edição francesa, que é uma obra mestra da literatura nesse idioma. A partir de então, as edições surgiram em pares, uma latina seguida de sua versão francesa, como segue: 1543 e 1545, 1550 e 1551, 1559 e 1560. Visto que as edições latina e francesa de 1559 e 1560 foram as últimas produzidas durante a vida de Calvino, são elas as que nos dão o texto definitivo das Institutas.<br />Esse texto definitivo dista muito de ser o pequeno manual de doutrina que Calvino tinha tido em mente publicar quando da primeira edição, pois os seis capítulos de 1536 se haviam transformado em quatro livros com um total de oitenta capítulos. O primeiro livro trata sobre Deus e sua revelação, assim como da criação e da natureza do ser humano, porém sem Incluir a queda e a salvação. O segundo livro trata sobre Deus como redentor e o modo em que se nos dá a conhecer, primeiramente, no Antigo Testamento, e depois em Jesus Cristo. <br />O terceiro livro trata sobre como, pelo Espírito, podemos participar da graça de Jesus Cristo e dos frutos que ele produz. Por último, o quarto livro trata dos "meios externos" para essa participação, isto é, fala-nos sobre a igreja e os sacramentos. Por toda obra se manifesta um conhecimento profundo, não só das Escrituras, mas também de antigos escritores cristãos, particularmente Santo Agostinho, e as controvérsias teológicas do século XVI. Sem dúvida alguma, esta foi a obra-prima de teologia sistemática protestante em todo aquele século.<br /><br /><strong>O Reformador de Genebra</strong><br />Calvino não tinha a menor intenção de dedicar-se à vida ativa de seus muitos correligionários que em diversas partes levaram a cabo a obra reformadora. Mesmo que sentisse para com eles profundo respeito e admiração, estava convencido de que seus dons não eram os de pastor, ou um "cabo de guerra", mas sim os de estudioso e de escritor.<br />Depois de uma breve visita a Ferrara, e outra à França, decidiu estabelecer seu domicílio em Estrasburgo, onde a causa reformadora havia triunfado e onde havia uma grande atividade teológica e literária que lhe parecia oferecer um ambiente propício para seus trabalhos.<br />Mas o caminho mais direto para Estrasburgo estava fechado por razões de uma guerra, e Calvino teve que se desviar e passar por Genebra. A situação nessa cidade era confusa. Algum tempo antes, a cidade protestante de Berna havia envia¬do missionários a Genebra, e estes tinham conseguido o apoio de um pequeno núcleo de leigos instruídos que ansiavam pela reforma da igreja e de um forte contingente de burgueses cujo principal desejo parece ter sido o de ganhar certas vantagens e liberdades que não tinham sob o regime católico. O clero, em geral de escassa instrução e menor convicção, simplesmente havia seguido ordens do governo de Genebra quando este decidiu abolir a missa e optar pelo protestantismo. Isto tinha ocorrido poucos meses antes da chegada de Calvino a Genebra e, portanto, os missionários procedentes de Berna, cujo chefe era Guilherme Farei, se encontravam à frente da vida religiosa de toda uma cidade e carentes de pessoal necessário.<br />Calvino chegou a Genebra com a intenção de não passar ali mais que um dia e prosseguir seu caminho para Estrasburgo. Porém alguém avisou a Farei que o autor das Instituías se encontrava na cidade, e assim se produziu uma entrevista inolvidável, que o próprio Calvino nos conta.<br />Farei, que "ardia com um maravilhoso zelo pelo avanço do evangelho", apresentou a Calvino várias razões pelas quais precisava de sua presença em Genebra. Calvino escutou atentamente seu interlocutor, uns quinze anos mais velho que ele, porém se negou a aceitar seu rogo, dizendo-lhe que tinha projetado certos estudos e que não lhe seria possível terminá-los na situação em que Farei descrevia. Quando por fim, Farei tinha esgotado todos seus argumentos, sem conseguir convencer ao jovem teólogo, apelou ao Senhor de ambos e insurgiu contra o teólogo com voz estridente: "Deus amaldiçoe teu descanso e a tranquilidade que buscas para estudar, se diante de uma necessidade tão grande te retiras e te negas a prestar socorro e ajuda".<br />Diante de tal imprecação, nos conta Calvino: "essas palavras me espantaram e me quebrantaram e desisti da viagem que tinha empreendido". E assim começou a carreira de João Calvino como reformador de Genebra.<br />Mesmo que de início Calvino aceitasse simplesmente permanecer na cidade e colaborar com Farei, logo sua habilidade teológica, seu conhecimento da jurisprudência e seu zelo refor¬mador fizeram dele o personagem central da vida religiosa da cidade, enquanto Farei, gostosamente, se tornava um seu colaborador. Porém nem todos estavam dispostos a seguir o caminho da reforma que Calvino e Farei haviam traçado. E quando começaram a exigir que se seguissem verdadeiramente os princípios protestantes, muitos dos burgueses que haviam apoiado a ruptura com Roma começaram a oferecer-lhes resistência, ao mesmo tempo que faziam chegar a outras cidades protestantes da Suíça rumores sobre supostos erros dos reformadores genebrinos. O conflito se travou finalmente em torno do assunto do direito da excomunhão. Calvino insistia em que, para que a vida religiosa se conformasse verdadeiramente aos princípios reformadores, era necessário excomungar os pecadores impenitentes. Diante do que pareceu um rigor excessivo, o governo da cidade se negou a seguir os conselhos de Calvino. Posteriormente, o conflito foi tal que Calvino foi desterrado. O fiel Farei, que poderia permanecer na cidade, escolheu antes o exílio que tornar-se um instrumento dos burgueses que queriam uma religião com toda sorte de liberdade e poucas obrigações.<br />Calvino viu nisso tudo uma porta que o céu lhe abria para continuar sua vida de estudos e retiro, que havia projetado, e se dirigiu a Estrasburgo. Porém nessa cidade o chefe do movimento reformador, Martinho Bucero, também não o deixou em paz. Havia ali um forte contingente de fraceses, exilados por motivos religiosos, carentes de direção pastoral, e Bucero fez com que Calvino se encarregasse deles. Foi aí então que o nosso teólogo produziu uma liturgia francesa e traduziu vários salmos e outros hinos, para que fossem cantados pelos franceses exilados. Além disso, produziu a segunda edição das Institutas, e se casou com a viúva Idelette de Bure, com quem foi feliz até que a morte a levou em 1549.<br />Os três anos que Calvino passou em Estrasburgo foram provavelmente os mais felizes e tranquilos de sua vida. Porém, apesar disso, lhe doía sempre não ter podido continuar a obra reformadora em Genebra, por cuja igreja sentia um grande amor e responsabilidade. Portanto, quando as circunstâncias mudaram na cidade suíça e o governo o convidou a regressar, Calvino não vacilou e, uma vez mais, ficou com a responsabilidade da obra reformadora em Genebra.<br />Foi em meados de 1541 que Calvino regressou a Genebra. Uma de suas primeiras ações foi redigir as Ordenanças Eclesiásticas, que foram aprovadas poucos meses depois pelo governador da cidade, se bem que com algumas emendas. Segundo se estabelecia nelas, o governo da igreja ficava, principalmente, nas mãos do Consistório, que era formado pelos pastores e por doze leigos que recebiam o nome de "anciãos". Visto que os pastores eram cinco, os leigos eram a maioria no Consistório. Entretanto, apesar disso, o impacto pessoal de Calvino era tal que quase sempre esse corpo seguia suas orientações e seus desejos.<br />Durante os próximos doze anos, houve conflitos repetidos entre o Consistório e o governo da cidade, pois o corpo eclesiástico, seguindo a inspiração de Calvino, tratava de regular os costumes com uma severidade que nem sempre era do agrado do governo. Em 1553, a oposição tinha voltado a ganhar as eleições, e a situação política de Calvino era precária. Foi então que começou o famoso processo de Miguel Servetto. Este era um médico espanhol, autor de vários livros de teologia, que estava convencido de que a união da igreja com o estado a partir de Constantino tinha se constituído numa grande apostasia, e que o Concílio de Nicéia, ao promulgar a doutrina da Trindade, havia ofendido a Deus. Servetto acabava de escapar dos cárceres da inquisição católica na França, onde corria contra ele um processo de heresia e se viu obrigado a passar por Genebra, onde foi reconhecido quando foi escutar Calvino pregar. Foi arrastado, e Calvino preparou uma lista de trinta e oito acusações contra ele. Visto que Servetto era um erudito, e além do mais tinha sido acusado de heresia pelos católicos, o partido que se opunha a Calvino em Genebra adotou sua causa. Porém, o governo da cidade pediu conselho às regiões protestantes da Suíça e todos concordaram que Servetto era herege. Isso calou a oposição, e resolveram condenar Servetto a ser queimado vivo, mas Calvino tratou de mudar essa condenação, transformando-a na de decapitação, por ser uma pena menos cruel.<br />A morte de Servetto foi duramente criticada, principalmente por Sebastião Castellon, a quem Calvino tinha feito expulsar da cidade por interpretar o Cântico dos Cânticos como um poema de amor. A partir de então esse incidente se tornou o símbolo do dogmatismo rígido que reinava na Genebra de Calvino. E não há dúvida de que há muito de verdade nisso. Contudo, não se deve esquecer que naquela época e em diversas partes da Europa, tanto católicos como protestantes estavam procedendo de maneira semelhante contra aqueles que eram considerados hereges. O próprio Servetto foi condenado à fogueira pela inquisição francesa, que não pôde levar a cabo sua sentença por causa da fuga do réu.<br />Em todo caso, depois da execução de Servetto, a autoridade de Calvino em Genebra não teve rival, sobretudo porque os teólogos de todas as demais regiões da Suíça protestante lhe tinham dado apoio, ao mesmo tempo em que seus opositores se colocaram na difícil situação de defender um herege condenado tanto pelos católicos como pelos protestantes da Suíça.<br />Em 1559, Calvino viu cumprir-se um dos seus sonhos, ao ser fundada a Academia de Genebra, sob a direção de Teodoro de Beza, que depois sucedeu Calvino como chefe religioso da cidade. Naquela academia, se formou a juventude genebrina segundo os princípios calvinistas. Mas seu principal impacto se deve a que nela cursaram estudos superiores pessoas procedentes de vários outros países, que depois levaram o calvinismo a eles.<br />Pelo fim de seus dias, Calvino preparou seu testamento e se despediu de seus colaboradores. Farei, que havia se dedicado a prosseguir a obra reformadora em Neuchâtel, foi ver seu amigo pela última vez. Calvino morreu em 27 de maio de 1564.<br /><br /><strong>Calvino e o Calvinismo</strong><br />Durante a vida de Calvino, a principal questão teológica que dividia os protestantes (é claro sem se contar os anabatistas) era a da presença de Cristo na comunhão, que segundo temos visto foi a principal causa de desavença entre Lutero e Zwínglio. Nesse ponto, Calvino seguiu o exemplo de seu amigo Bucero, o reformador de Estrasburgo, que tomava uma posição intermediária entre Lutero e Zwínglio. Para Calvino, a presença de Cristo na comunhão é real, porém espiritual. Isto quer dizer que não se trata de um mero símbolo, ou de um exercício de devoção, mas que na comunhão há uma verdadeira ação por parte de Deus em benefício da igreja que participa dela. Porém, ao mesmo tempo, isso não quer dizer que o corpo de Cristo desça do céu, nem que está presente em vários altares ao mesmo tempo, como pretendia Lutero. O que sucede é que, no ato da comunhão, pelo poder do Espírito Santo, os crentes são levados ao céu, e participam com Cristo de uma antecipação do banquete celestial.<br />Em 1536, Buceto, Lutero e outros chegaram a Concórdia de Wittemberg, um documento que conseguiu salvar as diferenças entre ambas as posições. Em 1549, Bucero, Calvino, os principais teólogos protestantes suíços e vários outros do sul da Alemanha, firmaram o Consenso de Zurich, outro documento semelhante. Além disso, Lutero havia dado boa acolhida às Instituías de Calvino. Portanto, as diferenças entre os diversos reformadores com relação ao significado da comunhão não pareciam ser insolúveis.<br />Entretanto, os seguidores dos grandes mestres estavam dispostos a mostrarem-se mais extremados que eles mesmos. Em 1552, o luterano Joaquim Westphal publicou um ataque contra Calvino, onde dizia que o calvinismo estava se introduzindo sub-repticiamente nos territórios luteranos e se declarava campeão da posição de Lutero com respeito a comunhão. Lutero já havia morrido, e Melanchthon se negou a atacar Calvino, como era o desejo de Westphal. Porém, o resultado disso tudo foi o distanciamento cada vez maior entre os que seguiam Lutero e os que aceitavam o Consenso de Zurich que, a partir de 1580, receberam o nome de "reformados".<br />Portanto, durante este primeiro período, a marca característica dos "calvinistas" ou "reformados" não era sua doutrina da predestinação, mas sua opinião com respeito à comunhão. Só mais tarde, segundo veremos noutra parte dessa história, a doutrina da predestinação veio a ser característica distintiva do calvinismo. Enquanto vivos não havia essa divisão, pois tanto Lutero quanto Calvino afirmavam a predestinação.<br />Em todo caso, devido em parte à Academia de Genebra e em parte às Instituías da Religião Cristã, a influência de Calvino logo se fez sentir em diversas partes da Europa, e, mais tarde, surgiram várias igrejas — na Holanda, Escócia, Hungria, França, e outros lugares. — que seguiriam as doutrinas do reformador de Genebra e que se conhecem como "reformadas" ou "calvinistas".<br />Por último, devemos men¬cionar que alguns historiadores e economistas têm assinalado a existência de uma relação entre o calvinismo e as origens do capitalismo. Alguns têm tratado de provar que o calvinismo foi o espírito propulsor do capitalismo. Porém, o mais correto parece ser que ambos os movimentos começaram a ganhar impulso na mesma época e que, logo depois, se aliaram. Seguindo o curso do calvinismo em diversos países, veremos algo dessa aliança e os seus resultados.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-69849373507039154492007-06-29T05:37:00.000-07:002009-05-06T04:28:58.474-07:00História da Igreja - 19<strong>A Era dos Reformadores</strong><br /><strong>Parte 6</strong><br /><strong>O Movimento Anabatista</strong><br />Tanto Lutero como Zwínglio se queixavam de que, através dos séculos, o cristianismo havia deixado de ser o que havia sido nos tempos do Novo Testamento. Lutero desejava livrá-lo de tudo o que era contrário às Escrituras. Zwínglio ia mais longe e sustentava que somente deveria ser praticado aquilo em que se cresse, ou aquilo que era encontrado na Bíblia. Mas logo apareceram outros que assinalavam que o próprio Zwínglio não levava essas idéias a sua conclusão lógica.<br /><br /><strong>Os Primeiros Anabatistas</strong><br />Segundo essas pessoas, Zwínglio e Lutero esqueciam que no Novo Testamento havia um contraste marcante entre a igreja e a sociedade que a rodeia. Esse contraste logo resultou em perseguição, porque a sociedade romana não podia tolerar o cristianismo primitivo. Assim, a união entre a igreja e o estado que teve lugar a partir da conversão de Constantino, constituiu-se em si mesma um abandono do cristianismo primitivo. Portanto, a reforma iniciada por Lutero devia ir mais além, se verdadeiramente queria ser obediente ao mandato bíblico. <br />A igreja não deveria confundir-se com o restante da sociedade. E a diferença fundamental entre ambas é que, embora se pertença a uma sociedade pelo simples fato de se nascer nela, e sem fazer decisão alguma a esse respeito, para ser parte da igreja há necessidade de se fazer uma decisão pessoal. A igreja é uma comunidade voluntária, e não uma sociedade dentro da qual nascemos.<br />A consequência imediata de tudo isso é que o batismo das crianças deve ser rechaçado. Esse batismo dá a entender que uma pessoa é cristã simplesmente por ter nascido em uma sociedade supostamente cristã. Porém, tal entendimento oculta a verdadeira natureza da fé cristã, que requer decisão própria.<br />Além disso, esses reformadores mais radicais sustentavam que a fé cristã era, em sua própria essência, pacifista. O Sermão do Monte deveria ser obedecido ao pé da letra, apesar de muitas objeções sobre a impossibilidade de praticá-lo, pois tais objeções eram devidas à falta de fé. Os cristãos não deve¬riam tomar as armas para defenderem-se a si mesmos, nem para defender sua pátria, mesmo que fosse ameaçada pelos turcos. Como era de se esperar, tais doutrinas não foram bem recebidas na Alemanha, onde a ameaça dos turcos era cons¬tante, nem tão pouco em Zurich e nas demais regiões da Suíça, onde a fé protestante estava em perigo de ser aniquilada pelos católicos.<br />Essas opiniões apareceram em diversos lugares, no século XVI, e, ao que parece, sem que houvesse conexão direta entre seus focos. Entretanto, foi em Zurich que, primeiramente, elas vieram à luz. Havia ali um grupo de crentes, assíduos leitores da Bíblia, e vários deles letrados, que forçavam Zwínglio a tomar medidas mais radicais de reforma. Em particular, essas pessoas, que se chamavam pelo nome de "irmãos", sustenta¬vam que se devia fundar uma congregação, ou um grupo dos verdadeiros crentes, para contrastar com aqueles que se diziam cristãos pelo fato de terem nascido num país cristão e terem sido batizados quando crianças.<br />Quando finalmente observou-se que Zwínglio não seguiria o caminho que eles propunham, alguns dos "irmãos" decidiram fundar eles mesmos essa comunidade de verdadeiros crentes. Em sinal disso, o ex-sacerdote Jorge Blaurock pediu a outro dos irmãos, Conrado Grebel, que o batizasse. Em 21 de janeiro de 1525, junto à fonte que se encontrava no meio da praça de Zurich, Grebel batizou Blaurock que, em seguida, fez o mesmo com outros irmãos. Aquele primeiro batismo, todavia, não foi por imersão, pois o que preocupava a Blaurock, Grebel e os demais não era a forma em que se administrava o rito, mas a necessidade que a pessoa tivesse e proclamasse sua fé antes de ser batizada. Mais tarde, em seus esforços por serem bíblicos em todas as suas práticas, começaram a batizar por imersão.<br />Assim, de imediato, se deu a essas pessoas o nome de "anabatistas", que quer dizer "rebatizadores". Naturalmente, esse nome não era de todo exato, porque o que os supostos rebatizadores diziam não era que era necessário batizar-se de novo, mas sim que o primeiro batismo não era válido e que, assim, o que se recebia depois de confessar a fé era o primeiro e único batismo. Porém, em todo caso, a história os identifica como "anabatistas", e esse é o nome que daremos a eles a fim de evitar confusões.<br />O movimento anabatista logo atraiu grande oposição, tanto por parte dos católicos como dos reformadores. Ainda que essa oposição se expressasse comumente em termos teológicos, o fato é que os anabatistas foram perseguidos porque eram considerados subversivos. Apesar de todas as reformas, Lutero e Zwínglio continuaram aceitando os termos fundamentais da relação entre o cristianismo e a sociedade que se havia desenvolvido a partir de Constantino. Nem um nem outro interpretava o evangelho de maneira a ser uma provocação radical a ordem social. E foi isso, ainda que sem querer, o que fizeram os anabatistas. Seu pacifismo extremo se tornou intolerável aos encarregados de manter a ordem social e política, particularmente numa época de grande incerteza como foi o século XVI.<br />Além do mais, ao insistir no contraste entre a igreja e a sociedade natural, os anabatistas estavam afirmando que as estruturas de poder dessa sociedade não deveriam ser transferidas para a igreja. Mesmo contra os propósitos iniciais de Lutero, o luteranismo se via agora sustentado pelos príncipes que o haviam abraçado, os quais gozavam de grande autoridade, não somente nos assuntos políticos, como também nos eclesiásticos. Na Zurich, de Zwínglio, o Conselho de Governo era quem, no final das contas, ditava a política religiosa. E isso era o que ocorria nos territórios católicos, onde se conservava a tradição medieval. Mesmo que isso não queira dizer que a igreja e o estado concordavam em todos os pontos, era certo que havia pelo menos um corpo de proposições em comum, e era dentro desse contexto que se produziam os conflitos entre as autoridades civis e as eclesiásticas. Porém, os anabatistas deitaram tudo isso por terra, ao insistir numa igreja de caráter voluntário, distinta da sociedade civil.<br />Além disso, muitos dos anabatistas eram igualitários. Muitos se tratavam entre si de "irmãos". Na maioria dos seus grupos as mulheres tinham tanto direito como os homens. E pelo menos na teoria, os pobres e os ignorantes eram tão importantes como os ricos e os sábios.<br />Tudo isso causava um efeito altamente subversivo para a Europa do século XVI e, portanto, logo começaram as perseguições aos anabatistas. Em 1525, as regiões católicas da Suíça começaram a condenar os anabatistas à pena capital. No ano seguinte, o Conselho de Governo de Zurich decretou também a pena de morte para quem rebatizasse, ou quem se deixasse rebatizar. E em poucos meses todos os demais territórios protestantes da Suíça seguiram o exemplo de Zurich. Na Alemanha não existia uma política uniforme, pois se aplicavam aos anabatistas as velhas leis contra os hereges, e cada estado seguia pelo caminho que melhor lhe parecia. Em 1528, Carlos V decretou a pena de morte para os anabatistas, apelando para uma velha lei romana, criada para extirpar o donatismo, segundo a qual quem se fizera culpável de rebatizar, ou de rebatizar-se, devia ser condenado à pena de morte. A dieta de Spira, de 1529, a mesma em que os príncipes luteranos protestaram e por isso receberam o nome de protestantes, aprovou o decreto imperial contra os anabatistas. E desta vez ninguém protestou. O único príncipe alemão que, sem protestar formalmente, se negou por razões de consciência a aplicar o decreto imperial em seus territórios, foi o magistrado Felipe de Hesse.<br />Em alguns lugares, como na Saxônia eleitoral em que vivia Lutero, os anabatistas foram acusados tanto de hereges como de rebeldes. Visto que o primeiro era um crime religioso, e o segundo um crime civil, tanto as cortes eclesiásticas como as civis tinham jurisdição para castigar quem se atrevesse a repetir o batismo, e quem se negasse a apresentar seus filhos pequenos para o receber.<br />O número de mártires foi enorme, provavelmente maior do que todos os que morreram durante os três primeiros séculos da história da igreja. O modo pelo qual se aplicava a pena de morte variava de lugar para lugar e, até de caso para caso. Com cruel ironia, em alguns lugares se condenavam os anabatistas a morrerem afogados. Outras vezes, eram queimados vivos, segundo o costume estabelecido séculos antes. Porém não faltaram casos nos quais eles foram mortos em meio a torturas incríveis, como a de serem esquartejados ainda vivos. As histórias de heroísmo em tais circunstâncias encheriam muitos volumes. E o notável é que, quanto mais eram perseguidos, mais crescia o movimento.<br /><br /><strong>Os Anabatistas Revolucionários</strong><br />Mesmo que muitos dos primeiros chefes do movimento fossem eruditos, e quase todos eles fossem pacifistas, logo aquela primeira geração pereceu vítima da perseguição. E o movimento cada vez mais foi se fazendo radical, mesclando-se com o ressentimento popular que havia dado lugar diante da rebelião dos camponeses. Pouco a pouco, o pacifismo original foi esquecido e o movimento tornou-se violento.<br />Ainda antes do surgimento do movimento anabatista, Tomás Muntzer tinha unido algumas das doutrinas, que depois o movimento promulgaria, com ânsias de justiça por parte dos camponeses. E agora muitos anabatistas faziam o mesmo. Entre eles se contava Melchor Hoffman, correeiro que tinha sido pregador leigo luterano na Dinamarca, mas que, mais tarde, tinha deixado as doutrinas de Lutero a respeito da ceia, transformando-se num seguidor de Zwínglio. Em Estrasburgo, onde o anabatismo era relativamente forte e havia uma certa medida de tolerância, Hoffman se tornou anabatista. Pouco depois começou a anunciar que o dia do Senhor estava próximo. Sua pregação inflamou as multidões, que correram para Estrasburgo, onde segundo ele seria estabelecida a Nova Jerusalém. O próprio Hoffman predisse que seria encarcerado por seis meses e que então viria o fim. Além disso, abandonou o pacifismo inicial dos anabatistas, declarando que ao aproximar-se o fim seria necessário que os filhos de Deus pegassem as armas contra os filhos das trevas. Quando foi encarcerado e se cumpriu assim a primeira parte da sua profecia, foram muitos os que correram para Estrasburgo na espera do sinal do alto para tomar as armas. Mas, o fato de que a cada dia eram mais os anabatistas que haviam na cidade, obrigou as autoridades a tomarem medidas cada vez mais repressivas. E Hoffman continuava encarcerado.<br />Então alguém disse que, na realidade, a Nova Jerusalém seria estabelecida, não em Estrasburgo, mas sim em Múnster. Nessa cidade, o equilíbrio entre os católicos e protestantes era tal que existia uma trégua entre todos os partidos e, como consequência disso, não se perseguia os anabatistas. Para lá foram os visionários e o povo cuja crescente opressão havia levado ao desespero. O reino viria logo. Viria em Múnster. E então os pobres receberiam as terras por herança.<br />Rapidamente o número dos anabatistas em Múnster foi tal que conseguiram apoderar-se da cidade. Seus chefes eram um padeiro holandês, João Matthys, e seu principal discípulo, João de Leiden. Uma das primeiras providências foi mandar os católicos para fora da cidade. O bispo, expulso de sua sede, reuniu um exército e sitiou a Nova Jerusalém. Enquanto isso, dentro da cidade, se insistia cada vez mais em que tudo se ajustasse à Bíblia. Os protestantes moderados foram também considerados ímpios. Constantemente, se destruíam as esculturas, pinturas e demais objetos do culto tradicional. Fora da cidade, o bispo matava a todos os anabatistas que caíssem em suas mãos. Os defensores se exaltavam cada vez mais, à medida em que a situação piorava, pois os alimentos se escas¬seavam. Diariamente, havia aqueles que criam receber visões do alto. E numa saída militar contra as forças do bispo, João Matthys caiu morto, e João de Leiden o sucedeu.<br />Devido à guerra constante e o êxodo de muitos varões, a população feminina da cidade era muito maior que a masculina, e João de Leiden decretou a poligamia, usada pelos patriarcas do Antigo Testamento. Por lei, toda mulher na cidade deveria estar casada com algum homem. O sítio se prolonga¬va e, ao mesmo tempo que os sitiados necessitavam de alimen¬tos, os fundos do bispo começaram a terminar. Numa ação desesperada, João de Leiden saiu com um punhado de homens e derrotou numa escaramuça os soldados do bispo. Então, em celebração daquela vitória, ele foi proclamado rei da Nova Jerusalém.<br />Porém, pouco depois, um grupo de habitantes da Nova Jerusalém, talvez fastiados pelos excessos que se cometiam, ou talvez impulsionados pela fome e pelo medo, abriram as portas da cidade para o bispo, cujas tropas arrasaram os defensores do reduto apocalíptico. <br />O rei da Nova Jerusalém foi preso e exibido por toda região, com seus principais assessores, em jaulas individuais de ferro. Pouco depois foram torturados e executados.<br />Assim terminou o principal broto do anabatismo revolucionário. Melchor Hoffman continuou encarcerado e esqueci¬do, ao que parece, até a sua morte. E até os dias de hoje, na igreja de São Lamberto, em Múnster, podem ser vistas as três jaulas em que foram exibidos o rei e seus dois principais assessores.<br /><br /><strong>O Anabatismo Posterior</strong><br />A queda de Múnster pôs fim ao anabatismo revolucionário. E logo se começaram a escutar vozes daqueles que diziam que a tragédia de Múnster se devia ao fato do anabatismo ter se desviado do pacifismo original, que era parte da verdadeira fé. De igual modo, dos primeiros chefes, estes novos chefes criam que a razão pela qual os cristãos não estavam dispostos a cumprir os preceitos do Sermão do Monte não é que não fossem exequíveis, mas sim porque havia falta de fé. Aquele que verdadeiramente tem fé, pratica o amor que Jesus ensinou e deixa as consequências da prática nas mãos de Deus.<br />O mais notável porta-voz dessa nova geração foi Menno Simons, um sacerdote católico holandês que abraçou o anabatismo em 1536, isto é, no mesmo ano em que foram executados João de Leiden e seus companheiros. Simons se uniu a um grupo de anabatistas holandeses cujo chefe era Obbe Philips, porém logo se destacou entre eles de tal maneira que o grupo recebeu o nome de "menonitas".<br />Apesar dos menonitas terem sofrido as mesmas perseguições de que foram alvo os anabatistas em geral, Menno Simons conseguiu sobreviver e passou o resto de sua vida viajando pela Holanda e o norte da Alemanha, pregando sua fé. Para ele o pacifismo era parte fundamental da fé cristã e, portanto, repudiava toda relação com a ala revolucionária do anabatismo. Os cristãos, segundo cria Menno Simons, não tinham que prestar juramento algum e, portanto, não poderiam ocupar cargos públicos que requeriam tais juramentos. Porém, tinham que obedecer às autoridades civis em tudo, exceto no que as Escrituras proibiam. O batismo, que Menno praticava jogando água sobre a cabeça, somente seria administrado aos adultos que confessassem a sua fé. Nem esse rito, nem a ceia conferem graça alguma, mas são sinais externos do que sucede internamente entre o cristão e Deus. Além disso, seguindo o exemplo de Jesus, Menno e os seus praticavam a lavagem mútua dos pés.<br />Apesar de se absterem de participar ativamente em qualquer ato de subversão, os menonitas logo foram considerados subversivos por muitos governos, pois se negavam a participar da vida comum da sociedade, particularmente no que se referia a portar armas. Isso, por sua vez, fez com que se espalhassem por toda Europa. Muitos emigraram para a Europa oriental, particularmente para a Rússia. Outros marcharam para a América do Norte, onde a tolerância religiosa prometia-lhes uma vida de paz. Porém, também na Rússia e na América do Norte, tiveram dificuldades, pois em ambos os casos o estado queria que se ajustassem às suas leis, sujeitando-se ao serviço militar obrigatório. Por essa causa, nos séculos XIX e XX fortes contingentes emigraram para a América do Sul, onde havia territórios em que podiam viver em isolamento relativo do resto da sociedade.<br />Até os dias de hoje, os menonitas são o principal ramo do velho anabatismo do século XVI, e continuam insistindo em seu pacifismo e dedicando-se, frequentemente, ao serviço social.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-22253105710879994632007-06-29T04:08:00.000-07:002009-05-06T04:28:23.512-07:00História da Igreja - 18<strong>A Era dos Reformadores</strong><br /><strong>Parte 5</strong><br /><strong>Ulrico Zwínglio e a Reforma na Suíça</strong><br />Ao estudar Lutero e o movimento reformador que ele dirigiu na Alemanha, vimos que o nacionalismo alemão e o humanismo moveram-se paralelamente à obra do grande Reformador que, na verdade, não era nem nacionalista, nem humanista. O caso de Ulrico Zwínglio é muito distinto, pois nele os princípios reformadores, o sentimento patriótico e o humanismo se conjugaram em um programa de reforma religiosa, Intelectual e política.<br /><br /><strong>A Peregrinação de Zwínglio</strong><br />Zwínglio nasceu em janeiro de 1484, menos de dois mêses depois que Lutero, em uma pequena aldeia suíça. Depois de receber as primeiras letras de seu tio, foi estudar em Basileia e Berna, onde o humanismo estava em moda. Depois. foi para a Universidade de Viena e de novo voltou a Basileia. Quando recebeu seu título de Mestre em Artes, em 1506, deixou os estudos formais para ser sacerdote na aldeia de Glarus. Porém, ainda ali continuou seus estudos humanistas e chegou a dominar o grego. Nisso era excepicional, pois sabemos por outros testemunhos que havia muitíssimos sacerdotes ignorantes, e até nos dizem que eram poucos os que haviam lido o Novo Testamento.<br />Em 1512 e 1515, Zwínglio acompanhou os contigentes de mercenários procedentes de seu distrito, em campanhas pela Itália. A primeira expedição foi vitoriosa e o jovem sacerdote viu seus compatriotas entregues ao saque. O resultado da segunda foi totalmente oposto e deu a Zwínglio a oportunidade de ver de perto o impacto da derrota sobre os vencidos. Tudo aquilo o foi convencendo de que um dos grandes males da Suíça era que sua juventude estava constantemente envolvida em guerras que não eram de sua incumbência e que o serviço mercenário destruía a fibra moral da sociedade.<br />Depois de passar dez anos em Glarus, Zwínglio foi no¬meado cura de uma abadia que era o centro das peregrinações, e ali sua pregação contra a idéia de que tais exercícios procuravam a salvação atraiu a atenção de muitos.<br />Quando por fim chegou a ser cura da cidade de Zurich, Zwínglio tinha chegado a idéias reformadoras muito parecidas com as de Lutero. Todavia, seu caminho para essas idéias não tinha sido o tormento espiritual do reformador alemão, mas sim o estudo das Escrituras utilizando os métodos humanistas, e a indignação diante das superstições do povo, da espoliação de que era objeto por parte de alguns líderes eclesiásticos e o serviço militar mercenário.<br />Assim a autoridade de Zwínglio em Zurich foi grande. Quando alguém chegou vendendo indulgências, o cura reformador conseguiu que o governo o expulsasse. Quando Francisco I pediu à Confederação Suíça soldados para as suas guerras contra Carlos V, todas as regiões cederam, porém Zurich se negou, seguindo o conselho de seu pregador. Pouco depois os legados do papa, que era aliado de Francisco l, prevaleceram sobre o governo de Zurich, mostrando que existiam tratados que o obrigavam a proporcionar-lhes soldados. Isto fez que a partir daí boa parte dos ataques de Zwínglio, antes dirigidos de maneira impessoal contra as superstições, se transferissem mais diretamente contra o papa.<br />Naquela mesma época, Lutero estava causando grande revolução na Alemanha, enfrentando o Imperador em Worms. E assim os inimigos de Zwínglio começaram a dizer que suas doutrinas eram as mesmas do alemão. Mais tarde, o próprio Zwínglio diria que, antes de ter conhecido as doutrinas de Lutero, havia chegado a conclusões semelhantes com base em seus estudos na Bíblia. Assim, percebe-se aqui não um resultado direto da obra de Lutero, mas sim de uma reforma paralela à da Alemanha, que logo começou a estabelecer contatos com ela, cuja origem porém era independente. Em todo caso, em 1522, Zwínglio estava pronto a empreender sua obra reformadora e o Conselho de Governo de Zurich o apoiava.<br /><br /><strong>O Rompimento com Roma</strong><br />Zurich estava debaixo da jurisdição eclesiástica do episcopado de Constança, que começou a dar sinais de preocupação pelo que se estava pregando em Zurich. Quando Zwínglio pregou contra as leis do jejum e da abstinência, e alguns membros de sua paróquia se reuniram para comer salsichas durante a quaresma, o bispo eleito de Constança acusou o pregador diante do Conselho de Governo. Mas Zwínglio se defendeu baseando-se nas Escrituras, e lhe foi permitido continuar pregando. Pouco depois, Zwínglio começou a criticar o celibato, dizendo que não era bíblico e que em todo caso aqueles que o ensinavam não o cumpriam. O papa, na ocasião Adriano VI, tratou de acalmar seu zelo, fazendo-lhe promessas tentadoras. Porém Zwínglio persistia em sua posição e conseguiu que o Conselho convocasse um debate entre ele e o vigário do bispo sobre essas doutrinas que ele pregava.<br />Chegado o momento do debate, várias centenas de pessoas se reuniram para presenciá-lo. Zwínglio propôs e defendeu suas diversas teses baseado nas Escrituras. O vigário não respondeu às suas teses e disse prontamente que reuniria um concílio universal que decidiria sobre as questões que se debatiam. Quando foi pedido a ele que provasse que Zwínglio estava enganado, ele se negou a fazê-lo. Em consequência, o Conselho declarou que, visto que ninguém havia aparecido para refutar as doutrinas de Zwínglio, este podia continuar pregando livremente. Essa decisão por parte do Conselho marcou o rompimento de Zurich com o episcopado de Constança e, portanto, com Roma.<br />A partir daí, Zwínglio, com o apoio do Conselho, foi levando avante a sua reforma, que consistia na restauração da fé e práticas bíblicas. Em relação a isso Zwínglio diferia de Lutero, pois, embora o alemão cresse que deviam ser preservadas todas as práticas tradicionais, exceto aquelas que contradissessem a Bíblia, o suíço sustentava que tudo o que não fosse encontrado explicitamente nas Escrituras devia ser rechaçado. Isto o levou, por exemplo, a suprimir o uso dos órgãos nas igrejas, pois se tratava de um instrumento que não aparecia na Bíblia. Sob a direção de Zwínglio, houve rápidas mudanças em Zurich. A ceia começou a ser oferecida em ambas as espécies. Muitos sacerdotes, monges e freiras se casaram. Foi estabelecido um sistema de educação pública geral, sem distinção de classes. Ao mesmo tempo, pregadores e leigos procedentes de Zurich propagavam suas doutrinas por outras regiões suíças.<br />A Confederação Suíça, como seu nome o indica, não era um estado centralizado, mas sim um complexo mosaico de diversos estados, cada um com seu próprio governo e suas próprias leis, que se haviam reunido com certos propósitos concretos, particularmente o de garantir sua independência. Dentro desse mosaico, rapidamente algumas regiões se tornaram protestantes, embora outras continuassem obedientes a Roma e a sua hierarquia. Essa divergência religiosa somou-se a outras diferenças profundas, e a guerra civil chegou a parecer inevitável.<br />As regiões católicas começaram a dar passos para uma aliança com Carlos V, e Zwínglio aconselhou aos protestantes que atacassem os católicos antes que fosse tarde demais. Entretanto, as autoridades não estavam dispostas a serem as primeiras a partir para as armas. Quando finalmente Zurich decidiu-se a atacar, as demais regiões não estavam de acordo. Por fim, contra o conselho de Zwínglio, tomaram medidas económicas contra as regiões católicas, a quem acusavam de haver traído a Confederação ao aliar-se com Carlos V, e através dele com a odiada casa dos Habsburgo.<br />Em outubro de 1531, as cinco regiões católicas reuniram seus exércitos e atacaram Zurich de surpresa. Os defensores tiveram apenas tempo de se prepararem para o combate, pois não sabiam quem os atacava até que viram os pendões do inimigo no horizonte. Zwínglio saiu com os primeiros soldados, disposto a oferecer resistência, enquanto o grosso do exército se preparava para a defesa. Ali, em Cappel, as regiões católicas derrotaram Zurich, e Zwínglio morreu em combate.<br />Pouco mais de um mês depois foi firmada a paz de Cappel, e por ela os protestantes se comprometiam pagar os gastos da recente campanha, porém era permitido a cada região decidir qual seria a sua fé. A partir daí, o protestantismo ficou estabelecido em várias regiões suíças, e o catolicismo em outras.<br /><br /><strong>A Teologia de Zwínglio</strong><br />Não podemos nos deter aqui para expor detalhadamente a teologia do reformador suíço, que em todo caso coincidia em muitos pontos com a de Lutero. Portanto, nos limitaremos a assinalar os principais pontos de contraste entre ambos os reformadores.<br />A principal diferença entre ambos os reformadores se relaciona com o caminho que cada um deles seguiu para chegar às suas doutrinas. Enquanto Lutero foi uma alma atormentada que por fim encontrou sua paz na mensagem bíblica da justificação pela fé, Zwínglio foi um erudito humanista, que se dedicou a estudar as Escrituras porque elas eram a fonte da fé cristã, e parte do movimento humanista consistia precisamente em regressar às fontes da antiguidade. Isso, por sua vez, quer dizer que a teologia de Zwínglio é mais racionalista que a de Lutero.<br />Um bom exemplo disso é o modo pelo qual os dois reformadores discutiam a doutrina da predestinação. Ambos criam na predestinação, tanto porque ela é necessária para afirmar a justificação absolutamente gratuita, como também, porque se encontra nas epístolas de Paulo. Porém, enquanto para Lutero a predestinação era o resultado e a expressão de sua experiência de sentir-se impotente diante de seu próprio pecado e ver-se obrigado a declarar que sua salvação não era uma obra sua, mas de Deus; para Zwínglio a predestinação é algo que se deduz racionalmente do caráter de Deus. Para o reformador de Zurich, a melhor prova da predestinação é que, se Deus é onipotente e onisciente, tem de saber tudo e determinar tudo de antemão. Lutero não empregaria tais argumen¬tos, mas se contentaria em dizer que a predestinação é necessária devido a impotência do ser humano para libertar-se de seu próprio pecado. Os argumentos no estilo de Zwínglio pareceriam, a ele, com o produto da "porca razão" e não da revelação bíblica, nem da experiência do evangelho.<br />Também quanto ao alcance das reformas que deveriam ocorrer na igreja, os dois reformadores diferiam. Como já dissemos anteriormente, Lutero cria que bastava desfazer-se de tudo o que contradizia as Escrituras, enquanto Zwínglio insistia na necessidade de preservar somente o que se encontrasse explicitamente na Bíblia. Uma vez mais o que preocupava Lutero não eram as formas externas da religião, mas a proclamação do verdadeiro evangelho. Zwínglio cria que o retorno às fontes devia ser o princípio orientador da Reforma, e parte desse retorno consistia em desfazer-se de todas as inovações que tinham sido feitas no decorrer dos séculos, por mais insignificantes que fossem.<br />O racionalismo de Zwínglio mesclava-se com certos elementos procedentes do neoplatonismo, que se haviam introduzido no cristianismo séculos antes, com Justino, o Mártir; Orígenes, Agostinho e outros. O mais notável desses elementos é a tendência a menosprezar a criação material e estabele¬cer um profundo contraste entre ela e as realidades espirituais. Esta era uma das razões pelas quais Zwínglio insistia num culto simples, que não levasse o crente para o material mediante o uso exagerado dos sentidos. Lutero, por sua vez, afirmava a doutrina bíblica da criação como boa e, portanto, tratava de não exagerar no contraste entre o material e o espiritual. Para ele, o material não era um obstáculo, mas sim uma ajuda à vida espiritual.<br />As consequências disto se observa claramente na maneira pela qual os reformadores entendiam os sacramentos, particularmente a eucaristia. Enquanto Lutero cria que, ao realizar-se a ação externa pelo ser humano, tinha lugar uma ação interna e divina, Zwínglio não estava disposto a conceder-lhes tal eficácia, pois aquilo limitaria a liberdade do Espírito. Para Zwínglio, os elementos materiais, e a ação física que os acompanhava, não eram mais que símbolos ou sinais da realidade espiritual. Segundo ele, quando Jesus disse: "isto é o meu corpo", o que ele queria dizer era: "isto significa meu corpo".<br />Para os dois reformadores, suas doutrinas eucarísticas eram importantes, pois se relacionavam estreitamente com o restante de suas teologias. Por isso, quando as circunstâncias políticas fizeram que o magistrado Felipe de Hesse tratasse de unir os reformadores alemães com os suíços, a questão da presença de Cristo na ceia tornou-se o obstáculo intransponível. Isto teve lugar em 1529, quando por pedidos de Felipe se reuniram em Marburgo os principais chefes do movimento reformador, Lutero e Melanchthon, de Wittemberg; Bucero, de Estrasburgo; Ecolampádio, de Basileia e Zwínglio, de Zurich. Em todos os pontos principais pareciam estar de acordo, exceto no que se referia ao sentido e a eficácia da ceia. E ainda neste ponto talvez até se chegasse a um acordo, não fosse Melanchthon lembrar a Lutero que a doutrina de Zwínglio separaria ainda mais os luteranos dos católicos alemães, a quem Lutero e seus companheiros esperavam ganhar para sua causa. Algum tempo depois, quando o rompimento com os católicos se tornou irreversível, o próprio Melanchthon chegou a um acordo com os reformadores suíços e de Estrasburgo.<br />Em todo caso, não resta dúvidas de que a frase que se atribui a Lutero, no encontro de Marburgo, "não somos do mesmo espírito" refletia adequadamente a situação. A diferença entre os dois reformadores com respeito a ceia não era questão de detalhe sem importância, mas tinha a ver com o modo pelo qual os dois viam a relação entre a matéria e o espírito e, conseqúentemente, também com o modo pelo qual entendiam a revelação divina.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-25278888197646421152007-06-28T18:35:00.000-07:002009-05-06T04:27:49.286-07:00Hiatória da Igreja - 17<strong>A Era dos Reformadores</strong><br /><strong>Parte 4</strong><br /><strong>Uma Década de Incertezas</strong><br />Ao queimar a bula papal, Lutero estava se declarando em rebeldia contra as autoridades eclesiásticas. Em Worms, ao negar a se retratar, mostrou-se igualmente firme diante do poder do imperador. Este não estava disposto a permitir que um frade rebelde o desobedecesse e, portanto, se preparou para acrescentar a condenação civil à eclesiástica de que Lutero já fora objeto. Entretanto, isso não se tornou tão fácil, porque vários dos principais membros da dieta se opuseram ao imperador. Mas quando, finalmente, forçada pelo imperador, a dieta promulgou o edito que citamos no início, Lutero já se encontrava a salvo no castelo de Wartburgo.<br /><br /><br /><strong>O Exílio de Wartburgo</strong><br />O que havia sucedido era que Frederico, o Sábio, inteirado de que o imperador forçaria a dieta a condenar Lutero, tinha-o colocado a salvo. Um grupo de homens armados, debaixo de instruções de Frederico, sequestrou o frade e levou-o até Wartburgo. Devido às suas próprias instruções, nem o próprio Frederico sabia onde o tinham escondido. Muitos o deram por morto, e corriam rumores de que fora morto por ordem do papa e do imperador.<br />Escondido em Wartburgo, Lutero deixou crescer sua barba, escreveu a alguns de seus colaboradores mais íntimos, dizendo-lhes que não temessem por seu paradeiro e dedicou-se a escrever. De todas as suas obras nesse período, nenhuma é tão importante quanto a tradução da Bíblia. O Novo Testamento, começado em Wartburgo, foi terminado dois anos mais tarde, e o Antigo Testamento demorou mais de dez (10) anos. Pela importância da obra, bem valia o tempo empregado nela, pois a Bíblia de Lutero, além de dar um novo ímpeto ao Movimento Reformador, deu forma ao idioma e, portanto, à nacionalidade alemã.<br />Enquanto Lutero estava no exílio, vários de seus colaboradores se ocuparam em continuar o trabalho reformador em Wittenberg. Deles, os mais destacados foram Carlstadt e Felipe Melanchthon, um jovem professor de grego, de temperamento muito diferente de Lutero, porém convencido das opiniões de seu colega. Até então, a reforma que Lutero havia preconizado não tomara forma concreta na vida religiosa de Wittenberg. Lutero era um homem tão temente a Deus que tinha vacilado em dar os passos concretos que seguiam sua doutrina. Porém agora, na sua ausência, estes passos foram dados rapidamente, um após o outro. Muitos monges e freiras deixaram seus conventos e se casaram. O culto foi simplificado e começou-se a usar o alemão ao invés do latim. Aboliram as missas pelos mortos. Cancelaram os dias de jejum e abstinência. Melanchthon começou a oferecer a comunhão de ambos os modos, isto é, deu o cálice aos leigos.<br />No princípio Lutero viu tudo isso com agrado. Porém, logo começou a ter dúvidas sobre o que estava acontecendo em Wittenberg. Quando Carlstadt e vários de seus seguidores se dedicaram a derrubar imagens. Lutero lhes aconselhou moderação. Então apareceram em Wittenberg três leigos procedentes da vizinha Zwickau, que diziam ser profetas. Segundo eles, Deus lhes falava diretamente e não tinham necessidade das Escrituras. Melanchthon não sabia o que responder a tais pretensões e pediu conselho ao exilado em Wartburgo.<br />Por fim Lutero decidiu que o que estava em jogo era nada menos que o evangelho e regressou a Wittenberg. Antes de dar esse passo, levou-o ao conhecimento de Frederico, o Sábio, porém deixando claramente que não esperava sua proteção, mas que confiava unicamente em Deus, em cujo serviço estava envolvido.<br /><br /><strong>As Circunstâncias Políticas</strong><br />Mesmo que Lutero não tivesse feito cálculos nesse sentido, o fato é que a razão pela qual Frederico pôde mante-lo escondido no castelo de Wartburgo, e a razão pela qual ele mesmo pôde regressar a Wittenberg sem ser preso e morto, foi a condição política do momento.<br />Carlos V estava disposto a arrancar pela raiz a "heresia" luterana. Porém ele se via ameaçado por outros inimigos mais poderosos. No meio de tais circunstâncias, o Imperador não poderia permitir-se ao luxo de molestar seus súditos alemães com a causa de quem lhe parecia ser um frade cabeçudo.<br />O grande inimigo de Carlos V era Francisco l, da Franca. Este rei, que no princípio de seu reinado tinha sido, sem dúvida alguma, o monarca mais poderoso da Europa, via com desgosto o crescente poder do rei da Espanha e Imperador da Alemanha. Pouco antes da dieta de Worms, os dois rivais haviam-se esbarrado em Navarra. Foi nesse encontro que Inácio de Loyola recebeu o germe que posteriormente faria dele o grande reformador católico. Durante o mesmo ano de 1521, e até o de 1525, Carlos V se viu envolvido em guerras quase constantes com Francisco l. E ao final, na batalha de Pávia, o rei da França caiu prisioneiro das tropas imperiais, e o conflito pareceu chegar ao fim.<br />Nesse meio tempo, somente uns meses depois da dieta de Worms, Leão X havia morrido, e Carlos V tinha feito eleger como papa o seu tutor, Adriano de Utrecht, que tomou o nome de Adriano VI. Esse papa, ao mesmo tempo que desejava reformar a igreja, não estava disposto a que se discutissem suas doutrinas. Portanto, implantou em Roma uma vida austera e começou uma reforma que teria tido bom êxito, se não fosse eclipsada pela que havia começado na Alemanha. Mas Adriano morreu um ano e meio depois de ter sido feito papa, e suas reformas não deixaram raízes. Seu sucessor, Clemente VII, era um homem muito parecido com Leão X, mais interessado na arte e na política italiana que nos assuntos da igreja. E por isso logo houve desentendimentos entre o Imperador e o novo papa.<br />Carlos V firmou em Madrid um tratado de paz com seu prisioneiro Francisco e, com base nesse tratado, colocou-o em liberdade. Todavia, o que fora estipulado na paz de Madrid era demasiado oneroso e até vergonhoso para a França e, assim, rapidamente Francisco fez com Clemente VII um pacto contra Carlos V. Este último cria poder contar com a ajuda da França e do papado para extirpar a heresia luterana e para deter o avanço dos turcos, mas inesperadamente seus dois supostos aliados lhe declararam guerra.<br />Em 1527, as tropas imperiais, compostas na maioria de espanhóis e alemães, invadiram a Itália e se dirigiram para Roma. A cidade pontifícia estava indefesa, e o papa teve de refugiar-se no castelo de São Angelo enquanto os invasores saqueavam a cidade. Visto que muitos deles eram luteranos, para eles o saque tomou cores religiosas: era Deus que finalmente tomava vingança contra o anti-cristo. A situação do papa era desesperadora quando, no princípio de 1528, um exército francês, com o apoio econômico da Inglaterra, foi socorrê-lo. As tropas imperiais viram-se obrigadas a recuar, e teriam sido aniquiladas, mas uma epidemia forçou os franceses abandonarem a luta. Em 1529, Carlos V conseguiu firmar a paz, primeiro com o papa e depois com o rei da França.<br />Depois de tudo, Carlos V parecia estar livre para enfrentar-se com o luteranismo, quando uma nova ameaça obrigou-o a retardar essa ação mais uma vez. Os turcos, sob o comando de Soleimán lançaram-se sobre Viena, a capital das possessões austríacas do Imperador. Diante dessa ameaça, todos os alemães se uniram, e a questão religiosa foi deixada de lado. Viena defendeu-se valentemente, e Soleimán foi obrigado a levantar o sítio quando soube que o exército alemão se aproximava.<br />Foi então que, depois de longa ausência, Carlos V regressou à Alemanha. Um dos seus principais projetos era acabar com o luteranismo. Porém durante esse tempo todo, haviam ocorrido na Alemanha acontecimentos de grande importância.<br /><br /><strong>As Rebeliões dos Nobres e dos Camponeses</strong><br />Em 1522 e 1523, a baixa nobreza tinha-se sublevado, sob a direção de Franz von Sickingen. Durante muito tempo essa classe tinha visto desaparecer sua fortuna, e muitos de seus membros culpavam Roma por isso. Entre esses cavaleiros, sem terras e sem dinheiro, o nacionalismo era fortíssimo. Muitos se somaram aos seguidores de Lutero, em quem viam o campeão nacional. Alguns, como Ulrico von Hutten, estavam convencidos da verdade da pregação de Lutero, ainda que quisessem levá-la mais longe. Quando por fim os cavaleiros se rebelaram e atacaram Tréveris, foram derrotados decisivamente pelos príncipes que aproveitaram essa conduta para apoderar-se das poucas terras que os pequenos nobres ainda possuíam. Sickingen morreu em combate, e Hutten se exilou na Suíça, onde morreu pouco depois. Tudo isso foi visto por Lutero e seus colegas mais próximos como uma grande tragédia, e uma prova mais do que necessária de se submeter às autoridades civis.<br />Pouco depois, em 1525, estourou a rebelião dos campo¬neses. Estes tinham sofrido por várias décadas uma opressão sempre crescente, e já haviam ocorrido rebeliões em 1476,1491, 1498, 1503 e 1514. Porém nenhuma delas teve a magnitude da de 1525.<br />Nesta nova rebelião, um fator veio somar-se às demandas econômicas dos camponeses. Esse novo fator foi a pregação dos reformadores. Mesmo que Lutero não cria que sua pregação devesse ser aplicada em termos políticos, houve muitos que não estiveram de acordo com ele nesse ponto. Um deles foi Tomás Muntzer, natural de Zwickau, cujas primeiras doutrinas se pareciam muito com a dos profetas de Zwickau. Segundo ele, o que importava não era o texto das Escrituras, mas sim a revelação presente do Espírito Santo. Porém esta doutrina espiritualista tinha um aspecto altamente político, pois Munt¬zer cria que quem fosse nascido de novo por obra do Espírito devia unir-se em uma comunidade teocrática, para trazer o reino de Deus. Lutero havia obrigado Muntzer a abandonar a região, porém o fogoso pregador regressou e uniu-se à rebelião dos camponeses.<br />Mesmo à parte de Muntzer, esta nova rebelião tinha um tom religioso. Em seus "doze artigos", os camponeses apresentavam várias demandas econômicas, mas outras eram religiosas. Porém tratavam de baseá-las todas nas Escrituras, e seu último artigo declarava que, caso fosse provado que algum de seus pedidos era contrário às Escrituras, ele seria retirado. Assim, mesmo que Lutero não tenha visto essa relação, têm razão os historiadores que dizem que a rebelião dos camponeses se deve em boa parte à pregação de Lutero e seus seguidores.<br />Em todo caso, Lutero não sabia como responder a essa nova situação. Possivelmente sua doutrina dos dois reinos era mais difícil de entender do que praticar. Quando primeiramen¬te leu os "Doze Artigos", se dirigiu aos príncipes, dizendo-lhes que o que se pedia era justo. Mas quando a rebelião tomou forma, e os camponeses se armaram, Lutero tratou de dissuadi-los e posteriormente instou aos príncipes que tomas¬sem medidas repressivas. Ainda, depois, quando a rebelião foi sufocada no sangue, o Reformador exigiu dos príncipes misericórdia para com os vencidos. Mas suas palavras não foram ouvidas, e calcula-se que mais de 100.000 camponeses foram mortos.<br />As consequências de tudo isso foram também funestas para a causa da Reforma. Os príncipes católicos culparam o luteranismo pela rebeldia e, a partir de então, proibiram todo intento de se pregar a reforma em seus territórios. E quanto aos camponeses, muitos deles abandonaram o luteranismo e regressaram a velha fé, ou se tornaram anabatistas.<br /><br /><strong>O Rompimento com Erasmo</strong><br />Enquanto a Alemanha se via sacudida por todos estes acontecimentos, os católicos moderados se viram obrigados a tomar partido entre Lutero e seus opositores. O mais famoso dos humanistas, Erasmo tinha visto com simpatia o começo da reforma luterana, porém a discórdia que tinha surgido dela lhe repugnava. Por muito tempo Erasmo evitou declarar-se contra Lutero, pois seu espírito pacífico odiava as controvérsias. Po¬rém, no fim a pressão foi tal que não era possível evitar o rompimento com um ou outro lado. Erasmo tinha sido sempre bom católico, mesmo que lhe doesse ver a ignorância e a corrupção do clero. Portanto, quando se viu obrigado a decidir, não havia outra alternativa senão optar pela religião tradicional.<br />Em vez de atacar Lutero no que se referia às indulgências, o sacrifício da missa, ou a autoridade do papa, Erasmo escolheu como campo de batalha a questão do livre arbítrio. Sua doutrina da justificação pela fé, que é dom de Deus, e seus estudos de Agostinho e São Paulo, tinham levado Lutero a afirmar a doutrina da predestinação. Neste ponto, Erasmo atacou-o com um tratado sobre o livre arbítrio.<br />Lutero respondeu com sua veemência característica, embora agradecesse a Erasmo o haver centralizado a polémica num assunto tão fundamental, e não sobre questões periféricas tais como a venda das indulgências, ou as relíquias dos santos. Para Lutero, a idéia do livre arbítrio humano que tinham os filósofos, e que era comum entre os moralistas da sua época, não se precavia do poder do pecado. O pecado humano é tal que não temos poder algum para nos livrar dele. Só mediante a ação de Deus podemos ser justificados e libertos do poder do maligno. E, mesmo assim continuamos sendo pecadores. Portanto, nossa vontade nada pode por si mesma quando se trata de servir a Deus.<br />Essa controvérsia entre Lutero e Erasmo com respeito ao livre arbítrio fez com que muitos humanistas abandonassem a causa luterana. Outros, como Felipe Melanchthon, continuaram apoiando Lutero mesmo sem romper suas relações cor¬diais com Erasmo. Porém esses eram poucos e, pode-se dizer, portanto, que a polémica sobre o livre arbítrio marcou o rompimento definitivo entre a reforma luterana e a humanista.<br /><br /><strong>As Dietas do Império</strong><br />Enquanto tudo isso acontecia e, na ausência do Imperador, era necessário seguir governando o Império. Visto que Carlos V teve de ausentar-se imediatamente depois da dieta de Worms, e que o edito dessa dieta havia sido obra sua, a Câmara Imperial que governava em seu lugar não tratou de aplicá-lo. Quando se reuniu de novo a dieta em Nuremberg, em 1523, foi adotada uma política de tolerância para com o luteranismo, apesar dos protestos dos legados do papa e do Imperador.<br />Em 1526, quando Carlos V viu-se obrigado a enfrentar de uma só vez o papa e o rei da França, a dieta de Spira declarou que, devido às novas circunstâncias, o edito de Worms não era válido, e que, portanto, cada estado tinha liberdade de seguir o curso religioso que sua consciência ditasse. Vários dos territórios do Sul da Alemanha e mais a Áustria, optaram pela fé católica, todavia, muitos outros preferiram a luterana. A partir daí, a Alemanha foi transformada num mosaico religioso.<br />Em 1529, a segunda dieta de Spira tomou um curso muito distinto. Naquele momento o Imperador era mais poderoso e vários príncipes que antes tinham sido moderados passaram para o lado católico. Ali se reafirmou o edito de Worms. Foi então que os príncipes luteranos protestaram formalmente e, por isso, a partir desse momento, começaram a chamá-los "protestantes".<br />Finalmente, Carlos V regressou à Alemanha em 1530, para a celebração da dieta de Augsburgo. Na dieta de Worms, o Imperador não tinha desejado ouvir sobre o que tratava o debate. Porém agora, tendo em vista o curso dos acontecimentos, pediu que lhe apresentassem uma exposição ordenada dos pontos em discussão. Esse documento, preparado primeiramente por Melanchthon, é o que se conhece como a "Confissão de Augsburgo". No princípio representava somente os protestantes da Saxônia. Mas, pouco a pouco, outros foram firmando-o e logo chegou a servir para apresentar ao Imperador uma frente quase que totalmente unida (havia outras duas confissões minoritárias que não concordavam com esta da maioria dos protestantes).<br />Novamente, o Imperador encolerizou-se e deu aos protestantes um prazo até abril do ano seguinte para se retratarem.<br /><br /><strong>A União de Esmalcalda</strong><br />Uma vez mais, o protestantismo estava ameaçado de morte. Se o Imperador reunisse seus recursos espanhóis aos dos príncipes alemães católicos, não seria difícil arrasar com qualquer dos príncipes protestantes e impor o catolicismo em seus territórios. Diante dessa ameaça, os governantes dos territórios protestantes se reuniram para tomar uma ação conjunta. Depois de muito vacilar, Lutero chegou à conclusão de que era lícito pegar as armas em defesa própria contra o Imperador. Os territórios protestantes formaram então a União de Esmalcalda, cujo propósito era fornecer resistência ao edito imperial, se Carlos V decidisse impô-lo pelas armas.<br />A luta prometia ser longa e custosa, quando uma vez mais a política internacional obrigou Carlos V a adiar toda a ação contra os protestantes. Francisco l se preparava de novo para a guerra, e os turcos davam mostras de querer vingar o fracas¬so da campanha anterior. Sob tais circunstâncias, Carlos V tinha que contar com o apoio de todos os seus súditos alemães. Assim, começaram as negociações entre protestantes e católicos e se chegou, finalmente, à paz de Nuremberg, firmada em 1532.<br />Segundo esse acordo, era permitido aos protestantes continuar com sua fé, porém estaria proibido a eles estendê-la a outros territórios. O edito Imperial de Augsburgo seria suspenso, e os protestantes ofereciam ao Imperador seu apoio contra os turcos, ao mesmo tempo que se comprometiam a não ir além da Confissão de Augsburgo.<br />Como antes, as condições políticas tinham operado em prol do protestantismo, que continuava estendendo-se para novos territórios, apesar do que fora firmado em Nuremberg.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-88293508697823297922007-06-28T13:51:00.000-07:002009-05-06T04:27:06.214-07:00História da Igreja 16<strong>A Era dos Reformadores</strong><br /><br /><strong>Parte 3</strong><br /><strong>A Teologia de Lutero</strong><br />Antes de continuar narrando a vida de Lutero e seu trabalho reformador, devemos nos deter para considerar a sua teologia que foi a base de sua vida e de sua obra. Ao chegar o momento da dieta de Worms, a teologia do Reformador havia alcançado sua maturidade. Então a partir daí, o que Lutero fez foi simplesmente elaborar as consequências dessa teologia. Portanto, esse parece ser o momento adequado para interrom¬per a narrativa e dar ao leitor uma idéia mais adequada da visão que Lutero tinha da mensagem cristã. Ao contarmos sua perigrinação espiritual, dissemos algo sobre a doutrina da justificação pela fé. Porém essa doutrina, apesar de ser fundamental, não é a totalidade da teologia de Lutero.<br /><br />A Palavra de Deus<br />É de todos sabido que Lutero tratou de fazer da Palavra de Deus o ponto de partida e a autoridade final de sua teologia. Como professor das Sagradas Escrituras, a Bíblia tinha para ele qrande importância, e nela descobriu a resposta para suas angústias espirituais. Mas isso não quer dizer que Lutero fosse um biblicista rígido, pois para ele a Palavra de Deus é muito mais que a Bíblia. A Palavra de Deus é nada menos que Deus mesmo.<br />Essa última afirmação se baseia nos primeiros versículos do Evangelho de João, onde se diz que: "no princípio era o Verbo (ou Palavra), e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus". As Escrituras nos dizem que, num sentido estrito, a Palavra de Deus é Deus mesmo, a segunda pessoa da Trindade, o Verbo que se fez carne e habitou entre nós. Assim, quando Deus"fala, o que sucede não é simplesmente que nos comunica certa informação, mas que também e, sobretudo, que Deus atua. Isto pode ser visto também no livro de Génesis, onde a Palavra de Deus é a força criadora: "Disse Deus...". Assim quando Deus fala, Deus cria o que pronuncia. Sua Palavra além de dizer-nos algo, faz algo em nós e em toda a criação. Essa Palavra se encarnou em Jesus Cristo que, por sua vez, é a revelação máxima de Deus e sua máxima ação. Em Jesus, Deus se nos deu a conhecer. Porém, também nele venceu os poderes do maligno que nos sujeitavam. A revelação de Deus é também a vitória de Deus.<br />A Bíblia é, então, a Palavra de Deus, não porque seja infalível, ou porque seja um manual de verdades que os teólo¬gos podem utilizar em seus debates entre si. A Bíblia é a Palavra de Deus porque nela chega Jesus Cristo até nós. Quem lê a Bíblia e não encontra nela Jesus Cristo não leu a Palavra de Deus. Por isso, Lutero, ao mesmo tempo que insistia na autoridade das Escrituras, podia fazer comentários pejorativos sobre certas partes dela. A epístola de Tiago, por exemplo, parecia-lhe "pura palha", pois nela não se trata do evangelho, mas sim de uma série de regras de conduta. Mesmo que não estivesse disposto a tirar tais livros do Cânon, Lutero confessava abertamente que lhe era difícil ver Jesus Cristo neles e que, portanto, tinham escasso valor para ele.<br />Essa idéia da Palavra de Deus como Jesus Cristo era a base da resposta de Lutero a um dos principais argumentos dos católicos. Estes afirmavam que, como era a igreja quem tinha determinado quais os livros que deviam formar o cânon, a igreja tinha autoridade sobre as Escrituras. A resposta de Lutero era que, nem a igreja havia criado a Bíblia, nem a Bíblia havia criado a igreja, mas que o evangelho é que havia criado. A autoridade final não está na Bíblia, nem na igreja, mas no evangelho, na mensagem de Jesus Cristo, que é a Palavra de Deus encarnada. Posto que a Bíblia dá um testemunho mais fidedigno desse evangelho do que a igreja corrompida do papa, e do que as tradições medievais, a Bíblia tem autoridade sobre a igreja e sobre essas tradições, mesmo que seja certo que nos primeiros séculos foi a igreja que reconheceu o evangelho em certos livros, e não em outros, e determinou assim o conteúdo do cânon bíblico.<br /><br /><strong>O Conhecimento de Deus</strong><br />Lutero concorda com boa parte da teologia tradicional ao afirmar que é possível ter certo conhecimento de Deus por meios puramente racionais ou naturais. Esse conhecimento permite ao ser humano saber que Deus existe e distinguir entre o bem e o mal. Os filósofos da antiguidade o tiveram, e as leis romanas mostram que de modo geral os pagãos sabiam distinguir entre o bem e o mal. Além disso, os filósofos chegaram à conclusão de que há um Ser Supremo, do qual todas as coisas derivam sua existência.<br />Porém esse não é o verdadeiro conhecimento de Deus. A Deus não se conhece como quem usa uma escada para subir um telhado. Todos os esforços da mente humana para elevar-se ao céu e conhecer a Deus são totalmente inúteis.<br />É isso que Lutero chama de "teologia da glória". Tal teologia pretende ver Deus tal como é, em sua própria glória, sem ter em conta a distância enorme que separa o ser humano de Deus. O que a teologia da glória faz no final das contas é pretender ver Deus naquelas coisas que nós humanos consi¬deramos mais valiosas e, portanto, fala do poder de Deus, da glória de Deus, da bondade de Deus. Porém tudo isso não é mais do que fazer Deus à nossa própria imagem e pretender que Deus seja como nós mesmos desejamos que Ele seja.<br />O fato é que Deus em sua revelação se nos dá a conhecer de um modo muito distinto. A suprema revelação de Deus tem lugar na cruz de Cristo e, portanto, Lutero propõe que em lugar da teologia da glória, se siga o caminho da "teologia da cruz”. O que essa teologia busca é ver a Deus, não onde nós querermos vê-Lo, nem como nós desejamos que Ele se]a, mas sim onde Deus se revela, e como Ele mesmo se revela, isto é, na cruz. Ali Deus se manifestou na debilidade, no sofrimento, no escândalo. Isso quer dizer que Deus atua de um modo radicalmente distinto do que poderia se esperar. Deus, na cruz, destroi todas as nossas idéias preconcebidas da glória divina.<br />Quando conhecemos a Deus na cruz, o conhecimento anterior, isto é, tudo o que sabíamos acerca de Deus mediante a razão, ou pela lei da consciência, cai por terra. O que agora conhecemos de Deus é muito distinto do outro suposto conhecimento de Deus em sua glória.<br /><br /><strong>A Lei e o Evangelho</strong><br />A Deus conhece-se verdadeiramente em sua revelação. Porém, em sua própria revelação, Deus se nos dá a conhecer de dois modos, a saber: a lei e o evangelho. Isso não quer dizer simplesmente que primeiro vem a lei e depois o evangelho. Nem quer dizer tampouco que o Antigo Testamento se refira à Lei, e o Novo Testamento ao evangelho. O que quer dizer é muito mais profundo. O contraste entre a Lei e o evangelho dá a entender que, quando Deus se revela, essa revelação é de uma só vez, palavra de condenação e de graça.<br />A justificação pela fé, a mensagem do perdão gratuito de Deus, não quer dizer que Deus seja indiferente diante do pecado. Não se trata simplesmente de que Deus nos perdoa porque, no final das contas, nosso pecado não lhe faça mal. Pelo contrário, Deus é santo, e o pecado Lhe causa repugnância. Quando Deus fala, o contraste entre sua santidade e o nosso pecado nos esmaga, e essa é a lei.<br />Porém, ao mesmo tempo, e até às vezes na mesma Palavra, Deus pronuncia seu perdão para conosco. Esse perdão é o evangelho, e é tão maior, exatamente porque a lei é esmaga¬dora. Não se trata, então, de um evangelho que nos dê a entender que o nosso pecado não tem importância, mas de um evangelho que, precisamente diante da gravidade do pecado, se torna mais surpreendente.<br />Quando escutamos essa palavra de perdão, a lei, que antes nos era onerosa e até odiosa, se nos torna doce e aceitável. Comentando sobre o evangelho de João, Lutero nos diz:<br />"Antes não havia na lei nenhuma delícia para mim. Porém, agora, descobri que a Lei é boa e saborosa, e que me tem sido dada para que eu viva, e agora encontro nela meu prazer. Antes me dizia o que devia ser feito. Agora começo a ajustar-me nela. E por isso agora adoro, louvo e sirvo a Deus".<br />Esta dialética constante entre a lei e o evangelho quer dizer que o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador. Não se trata de que o pecador deixe de ser pecador quando é justificado. Pelo contrário, quem recebe a justificação pela fé descobre nela mesma o quanto é pecador, e não por ser justificado é que deixa de pecar. A justificação não é a ausência do pecado, mas o fato de que Deus nos declara justos, ainda que em meio ao nosso pecado, de igual modo ao evangelho que acontece sempre em meio à lei.<br /><br /><strong>A Igreja e os Sacramentos</strong><br />Lutero não foi nem o individualista nem o racionalista que muitos desejam. Durante o século XIX, quando o individualismo e o racionalismo se fizeram populares, muitos historiadores deram a impressão de que Lutero havia sido um dos precurso¬res de tais correntes. Isso ia frequentemente unido com o intento de mostrar a Alemanha como a grande nação, mãe da civilização moderna e de tudo quanto há nela de valioso. Lutero se converteu, então, no grande herói alemão fundador do modernismo.<br />Porém tudo isso não se ajusta à verdade histórica. O fato é que Lutero distanciou-se muito de ser racionalista. Para pro¬varmos basta observarmos suas frequentes referências à "porca razão" e "essa rameira, a razão". E quanto ao seu suposto individualismo, a verdade é que este era mais poderoso entre os renascentistas italianos do que no Reformador alemão, e que, em todo caso, Lutero dava demasiada importância à igreja para ser um verdadeiro individualista.<br />Apesar de seu protesto contra as doutrinas comumente aceitas e de sua rebeldia contra as autoridades da igreja romana, Lutero sempre pensou que a igreja era parte essencial da mensagem cristã. Sua teologia não era a de uma comunhão direta do indivíduo com Deus, mas sim de uma vida cristã no meio de uma comunidade de fiéis, a qual repetidamente cha¬mou de "igreja mãe".<br />Se bem que seja certo que todos os cristãos, pelo simples fato de serem batizados, se tornam sacerdotes, isso não quer dizer que cada um de nós deva isolar-se em si mesmo para chegar a Deus. Certamente, há uma comunicação direta com o Criador, mas há também uma responsabilidade orgânica. O ser sacerdotes não quer dizer que o sejamos somente para nós mesmos, mas que o somos também para os demais, e os outros o são para nós. Em lugar de abolir a necessidade da igreja, a doutrina do sacerdócio universal dos crentes a aumentava. Claro está que não necessitamos já de um sacerdócio hierárquico que seja nosso único meio de chegarmos a Deus. Porém necessitamos desta comunidade de crentes, o corpo de Cristo, dentro da qual cada membro é sacerdote dos demais e nutre a cada um deles. Sem essa relação com o corpo, o membro não pode continuar vivendo.<br />Dentro dessa igreja, a Palavra de Deus chega até nós pelos sacramentos. Para que um rito seja um verdadeiro sacramento tem de ter sido instituído por Jesus Cristo, e há de ser um sinal físico das promessas evangélicas. Portanto, há somente dois sacramentos: o batismo e a ceia. Os demais ritos que recebem esse nome, mesmo que possam ser benéficos, não são sacramentos do evangelho.<br />O batismo é o sinal da morte e ressurreição do cristão com Jesus Cristo. Porém é muito mais que um sinal, pois por ele e nele fomos feitos membros do corpo de Cristo. O batismo e a fé andam estreitamente unidos, pois o rito sem a fé não é válido. Mas isso não deve ser entendido no sentido de que devemos ter fé antes de sermos batizados e que, assim, não se possa batizar as crianças. Se dissermos tal coisa, cairíamos no erro daqueles que crêem que a fé é uma obra humana, e não um dom de Deus. Na salvação, a iniciativa é sempre de Deus, e isto é o que anunciamos ao batizar crianças tão pequeninas que são incapazes de entender do que se trata. Além disso, o batismo não é somente o começo da vida cristã, mas é o fundamento, ou o contexto, dentro do qual toda essa vida tem lugar. O batismo é válido, não só no momento de ser administrado, mas para toda a vida. Por ele se conta que o próprio Lutero quando se sentia fortemente tentado, exclamava: "sou batizado". Em seu batismo estava a força para resistir a todas as investidas do maligno.<br />A ceia é o outro sacramento da fé cristã. Lutero rechaçou boa parte da teologia católica sobre a ceia. Particularmente, se opôs às missas privadas, à ceia como repetição do sacrifício de Cristo, à ideia de que a missa confere méritos, e à doutrina da transubstanciação. Mas tudo isso não o levou a pensar que a ceia era de pouca importância. Pelo contrário, para ele a eucaristia sempre continuou junto com a pregação, como o centro do culto cristão.<br />A questão de como Cristo está presente no sacramento foi motivo de controvérsias, não só com os católicos, mas também com os protestantes. Lutero rechaçava categoricamente a doutrina da transubstanciação, que lhe parecia demasiadamente presa a categorias aristotélicas e, portanto, pagãs, e que, além do mais, era a base da idéia da missa como sacrifício meritório, que se opunha radicalmente à doutrina da justificação pela fé.<br />Porém, por outro lado, Lutero também não estava dispos¬to a dizer que a ceia era um mero símbolo de realidades espirituais. As palavras de Jesus ao instituir o sacramento: "isto é meu corpo", lhe pareciam completamente claras. Portanto, segundo Lutero, na ceia os fiéis participam verdadeira e literalmente do corpo de Cristo. Isto não indica, como na transubstanciação, que o pão se converta em corpo, e o vinho em sangue. O pão continua sendo pão, e o vinho, vinho. Todavia, agora estão também neles o corpo e o sangue do Senhor, e o crente se alimenta deles ao tomar o pão e o vinho. Se bem que mais tarde se deu a essa doutrina o nome de "consubstanciacão", Lutero nunca a chamou assim e preferia chamá-la de a presença de Cristo em, com, debaixo, ao redor e por trás do pão e do vinho.<br />Nem todos os que se opunham às doutrinas tradicionais concordavam com Lutero, nesse ponto, que logo se tornou um dos fatores mais divisionistas entre eles. Caristadt, o colega de Lutero, na universidade de Wittenberg, que participou com ele no debate de Leipzig, dizia que a presença de Cristo no sacramento era simbólica e que, quando Jesus disse "isto é o meu corpo", estava apontando para si mesmo, e não para o pão. Zwínglio, de quem trataremos mais adiante, sustentava opiniões parecidas, se bem que com melhores argumentos bíblicos. Posteriormente, essa questão foi um dos principais motivos de divisão entre os luteranos e reformados ou calvinistas.<br /><br /><strong>Os Dois Reinos</strong><br />Antes de terminar esta brevíssima exposição dos principais pontos da teologia de Lutero, devemos nos referir ao modo pelo qual o Reformador entendeu a relação entre a igreja e o estado. Segundo ele, Deus tinha estabelecido dois reinos, um sob a lei e outro sob o evangelho. O estado opera debaixo da lei e seu principal propósito é pôr limites ao pecado humano. Sem o estado, os maus não teriam freios. Os crentes por outra parte, pertencem ao segundo reino e estão debaixo do evangelho. Isso quer dizer que os crentes não vão esperar que o estado apoie a sua fé e persiga aos hereges. Além disso, não há razão nenhuma para que esperemos que os governan¬tes sejam cristãos. Como governantes, sua obediência se deve à lei e não ao evangelho. No reino do evangelho, as autoridades civis não têm poder algum. E no que se refere a esse reino, os cristãos não estão sujeitos ao estado. Porém, não esqueçamos que os crentes, ao mesmo tempo que são justificados pela fé, continuam sendo pecadores. Portanto, enquanto somos pecadores, todos estamos sujeitos ao estado.<br />O que isso quer dizer em termos concretos é que a verda¬deira fé não tem de impôr-se mediante autoridade civil, mas mediante a proclamação da Palavra. Lutero se opôs repetidamente a que os príncipes que o apoiavam empregassem sua autoridade para defender sua causa e somente depois de muito vacilar, por fim lhes disse que podiam apelar para as armas em defesa própria contra aqueles que pretendiam esma¬gar a Reforma.<br />Isso não quer dizer que Lutero foi pacifista. Quando, como veremos mais a frente, os turcos ameaçaram a cristandade, Lutero chamou seus seguidores às armas. E quando diversos grupos e movimentos, tais como os campo¬neses rebeldes e os anabatistas, lhe pareciam subversivos, não vacilou em afirmar que as autoridades civis tinham o dever de esmagá-los. O que se quer dizer é que Lutero sempre teve dúvidas sobre como a fé devia relacionar-se com a vida civil e política. E essas vacilações têm continuado a aparecer em boa parte da tradição luterana até o século XXI.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-13289241327833706222007-06-27T18:22:00.000-07:002009-05-06T04:26:23.595-07:00História da Igreja 15<strong>A Era dos Reformadores</strong><br /><strong>Parte 2</strong><br /><strong>Martinho Lutero: O Caminho para a Reforma</strong><br />Poucos personagens na história do cristianismo têm sido discutidos tanto. ou tão calorosamente, como Martinho Lutero. Para uns, Lutero é o "bicho-papão" que destruiu a unidade da igreja, a besta selvagem que pisou na vinha do Senhor, um monge renegado que se dedicou a destruir as bases da vida monástica. Para outros, ele é o grande herói que fez voltar, uma vez mais, a pregação do evangelho puro, o campeão da fé bíblica, o reformardor de uma igreja corrompida. Nos últimos anos, devido em parte ao novo espírito de compreensão entre os cristãos, os estudos sobre Lutero têm sido muito mais equilibrados e, tanto católicos como protestantes, se têm achado na obrigação de corrigir certas opiniões formadas, não pela investigação histórica, mas pelo fragor da polémica. Hoje, são poucos os que duvidam da sinceridade de Lutero, e há muitos católicos que afirmam que o protesto do monge agostiniano foi mais do que justificável e que, em muitos pontos, ele tinha razão. Paralelamente a isso, são poucos os historiadores protestantes que seguem vendo em Lutero um herói sobrehumano que reformou o cristianismo por si só, e cujos pecados e erros foram de menor importância.<br />Ao estudarmos sua vida e o ambiente em que ela se desenvolveu, Lutero aparece como um homem por vezes rude, mas também erudito, cujo impacto se deveu a dar à sua erudição uma conotação e aplicação populares. Era indubitavelmente sincero até a paixão e, frequentemente, vulgar nas suas expressões. Sua fé era profunda e nada lhe importava mais do que ela. Quando se convencia de que Deus queria que tomasse certo caminho, o seguia até as últimas consequências e não como alguém que, pondo a mão no arado, olha para trás. Seu uso da linguagem, tanto o latim como o alemão, era magistral, ainda que, quando um ponto lhe parecia ser de grande importância, ele o reprisava até o exagero. Uma vez convencido da verdade da sua causa estava disposto a enfrentar os mais poderosos senhores do seu tempo. Porém, essa mesma profundidade de convicção, essa paixão, essa tendência ao exagero, o levaram a tomar atitudes que depois ele e seus seguidores tiveram de deplorar.<br />Por outro lado, o impacto que Lutero causou se deve em boa parte às circunstâncias que estavam fora do alcance de sua mão e das quais ele mesmo, frequentemente, não se aper¬cebia. A invenção da imprensa fez com que suas obras fossem difundidas de uma maneira que tinha sido impossível fazê-lo poucas décadas antes. O crescente nacionalismo alemão, do qual<br />ele mesmo era até certo ponto participante, se prestou a ser um apoio inesperado e muito valioso. Os humanistas, que sonhavam com uma reforma segundo a concebia Erasmo, ainda que frequentemente não pudessem aceitar o que lhes parecia ser os exageros e a rudeza do monge alemão, tão pouco estavam dispostos a que o esmagassem sem antes ser escutado, como havia ocorrido no século anterior com João Huss. As circunstâncias políticas no começo da Reforma foram um dos fatores que impediram que Lutero fosse condenado imediatamente e, quando por fim, as autoridades eclesiásticas e políticas se viram livres para agir, já era demasiado tarde para calar o seu protesto.<br />Ao estudar a vida de Lutero e também sua obra, uma coisa fica bem clara: a tão esperada reforma se produziu, não porque Lutero ou outra pessoa se havia proposto a isso, mas porque ele chegou no momento oportuno e porque nesse momento o Reformador, e muitos outros junto dele, estiveram dispostos a cumprir sua responsabilidade histórica.<br /><br /><strong>A Peregrinação Espiritual</strong><br />Lutero nasceu em 1483, em Eisleben, Alemanha, onde seu pai, de origem camponesa, trabalhava nas minas. Sete anos antes, Isabel havia herdado o trono de Castela. Se bem que isso não se relaciona diretamente com a juventude de Lutero, pois Castela era então somente um pequeno reino a centenas de quilómetros de distância, nós o mencionamos para que o estudnte veja que, antes do nascimento de Lutero, já se havia começado a tomar, na Espanha, as medidas reformado¬ras que mencionamos anteriormente.<br />A infância do pequeno Martinho não foi feliz. Seus pais eram extremamente severos com ele e, muitos anos mais tarde, ele mesmo contava com amargura alguns dos castigos que lhe tinham sido impostos. Durante toda a sua vida foi presa de períodos de depressão e angústia profunda, e há quem pense que isso se deve em boa parte à austeridade excessiva exigida na sua infância. Na escola, suas primeiras experiências não foram melhores, pois também posteriormente se queixava de como o tinham golpeado por não saber suas lições. Se bem que não se deva exagerar em tudo isso, não resta dúvida que essas situações deixaram marcas permanentes no caráter do jovem Martinho.<br />Em julho de 1505, pouco antes de completar os 22 anos de idade, Lutero ingressou no mosteiro agostiniano de Erfurt. As causas que o levaram a dar esse passo foram muitas. Duas semanas antes, quando se achava no meio de uma tormenta elétrica, sentiu sobremaneira o temor da morte e do inferno e prometeu a Santa Ana que se tornaria um monge. Algum tempo depois, ele mesmo diria que os rigores do seu lar o levaram ao mosteiro. Por outro lado, seu pai havia decidido que seu filho se tornasse um advogado e fazia grandes esforços para lhe dar uma educação adequada a essa carreira. Lutero não queria ser advogado e, portanto, é muito possível que, ainda sem saber, havia interposto a vocação monástica entre seus próprios desejos e os projetos de seu pai. Este último se mostrou profundamente irado ao receber notícias do ingresso de Martinho no mosteiro e demorou muito tempo para perdoar-lhe. Porém, a razão principal que levou Lutero a tomar o hábito, como em tantos outros casos, foi o seu interes¬se pela própria salvação. O tema da salvação e da condenação permeava todo o ambiente da época. A vida presente não parecia ser mais que uma preparação e prova para a vida vindoura. Logo seria tolice dedicar-se a ganhar prestígio e riquezas no presente, mediante a advocacia, e descuidar do futuro. Lutero entrou no mosteiro como fiel filho da igreja, com o propósito de utilizar os meios de salvação que a igreja lhe oferecia e dos quais o mais seguro lhe parecia ser a vida monástica.<br />O ano de noviciado parece ter transcorrido tranquilamente, pois Lutero fez seus votos e seus superiores o escolheram para se tornar um sacerdote. Segundo ele mesmo conta, a ocasião da celebração de sua primejra missa foi uma experiência surpreendente, pois o temor de Deus se apoderou dele ao pensar que estava oferecendo nada menos que Jesus Cristo. Repetidamente, esse temor esmagador de Deus pressionou-o, pois não estava seguro de que tudo o que estava fazendo em benefício de sua salvação era suficiente. Deus lhe parecia um juiz severo, como antes tinham sido seus pais e seus professo-res, que no julgamento lhe pediria contas de todas as suas ações e o acharia faltoso. Era necessário, portanto, valer-se de todos os recursos da igreja para estar salvo.<br />Entretanto, esses recursos eram insuficientes para um espírito profundamente religioso, sincero e apaixonado como o de Lutero. Supunha-se que as boas obras e a confissão fossem a resposta para a necessidade que aquele jovem monge tinha de se justificar diante de Deus. Porém não bastavam nem uma coisa nem outra. Lutero tinha um sentimento muito profundo de sua própria pecaminosidade e cada vez mais tratava de sobrepor-se a ela, mas cada vez mais se apercebia que o pecado era muito mais poderoso do que ele. Isto não quer dizer que não fosse um bom monge, ou que levasse uma vida licenciosa ou imoral. Pelo contrário, Lutero se esforçou em ser um monge perfeito. Repetidamente castigava seu corpo, segundo lhe ensinaram os grandes mestres do monaquismo. E sempre socorria-se do confessionário com tanta frequência quanto fosse possível. Porém tudo isso não bastava. Se, para que os pecados fossem perdoados, era necessário confessa los, o grande medo de Lutero era esquecer alguns de seus pecados. Portanto, uma e outra vez repassava cada uma de suas ações e pensamentos e, quanto mais os repassava, mais pecado encontrava neles. Houve ocasiões em que no mesmo momento que saía do confessionário percebia que tinha havido um pecado que não fora confessado. A situação ficava então desesperadora. O pecado era algo muito mais profundo que as meras ações ou pensamentos conscientes. Era todo um estado de vida, e Lutero não encontrava maneira alguma de confessá-lo e ser perdoado mediante o sacramento da penitência.<br />Seu conselheiro espiritual lhe recomendou que lesse as obras dos místicos. Pelos fins da Idade Média, houve uma forte onda de misticismo, impulsionada precisamente pelo sentimento que muitos ti¬nham de que a igreja, devido a sua corrupção, não era o melhor meio de aproximar-se de Deus. Lutero seguiu então esse caminho, não porque duvidava da autoridade da igreja, mas porque essa autoridade, através de seu confessor, lhe ordenara isso.<br />O misticismo lhe cativou por algum tempo, como antes lhe acontecera com a vida monástica. Talvez ali encontrasse o caminho da salvação. Mas logo esse caminho se tornou outro beco sem saída. Os místicos diziam que bastava amar a Deus, visto que tudo mais era uma consequência do amor. Isto pareceu a Lutero como uma palavra de libertação, pois não era necessário levar em conta todos os seus pecados, como até então fizera. Porém, não tardou muito para aperceber-se de que amar a Deus não era assim tão fácil. Se Deus era como seus pais e mestres que o haviam surrado até tirar-lhe sangue, como poderia ele amá-Lo? Por último, Lutero chegou até a confessar que não amava a Deus, mas sim que o odiava.<br />Não havia saída possível. Para ser salvo era necessário confessar os pecados e Lutero havia descoberto que, por mais que se esforçasse, seu pecado ia muito mais adiante que sua confissão. Se, como diziam os místicos, bastava amar a Deus, isso não era de grande ajuda pois Lutero tinha que reconhecer que era impossível amar a um Deus justo que lhe pediria contas de todas as suas ações.<br />Nessa encruzilhada, seu confessor, que era também seu superior, tomou uma medida surpreendente. O normal seria pensar que um sacerdote que estava passando por uma crise existencial pela qual atravessava Lutero, não estava pronto para servir como pastor, ou como mestre de outros. Porém, foi exatamente isso que propôs seu confessor. Séculos antes, Jerônimo havia encontrado um modo de escapar de suas tentações no estudo do hebraico. Mesmo que os problemas de Lutero fossem distintos dos de Jerônimo, talvez o estudo, o ensino e o trabalho pastoral pudessem ter para ele um resultado semelhante. Para isso ele ordenou a Lutero, que não esperava tal coisa, que se preparasse para ir dirigir cursos sobre as Escrituras na universidade de Wittenberg.<br />Muitas vezes se tem dito entre os protestantes que Lutero não conhecia a Bíblia e que foi, no momento de sua conversão, ou pouco antes, que começou a estudá-la, mas isso não é certo. Como monge que tinha de recitar as horas canónicas de oração, Lutero sabia o Saltério de memória. E além disso, em 1512 ele obteve seu doutorado em teologia e, para tanto, teria que ter estudado as Escrituras.<br />O que é certo é que quando se viu obrigado a preparar conferências sobre a Bíblia, Lutero começou a ver nela uma possível resposta para suas angústias espirituais. Em meados de 1513, começou a dar aulas sobre os Salmos. Devido aos anos que passara recitando o Saltério, sempre dentro do contexto do ano litúrgico que se centraliza nos principais acontecimentos da vida de Cristo, Lutero interpretava os Salmos cristologicamente. Neles, era Cristo quem falava. E assim, viu Cristo passando pelas angústias semelhantes às que passava. Este foi o princípio de sua grande descoberta. Porém se tudo se resumia nisto, Lutero teria chegado simplesmente à piedade popular tão comum, que pensa que Deus o Pai exige justiça, e é o Filho quem nos perdoa. Precisamente por seus estudos teológicos, Lutero sabia que tal idéia era falsa e não estava disposto a aceitá-la. Porém em todo caso, nas angústias de Jesus Cristo, começou a achar consolo para as suas.<br />A grande descoberta veio provavelmente em 1515, quando Lutero começou a dar conferências sobre a epístola de Romanos, pois ele mesmo disse, depois, que foi no primeiro capítulo dessa epístola onde encontrou a resposta para as suas dificuldades. Essa resposta não veio facilmente. Não ocorreu simplesmente que, num bom dia, Lutero abriu sua Bíblia no primeiro capítulo de Romanos e descobriu ali que "o justo viverá pela fé". Segundo ele mesmo conta, a grande descoberta foi precedida por uma grande luta e uma amarga angústia, pois Romanos 1.17 começa dizendo que: "no evangelho a justiça de Deus se revela". Segundo este texto, o evangelho é a revelação da justiça de Deus. E era precisamente a justiça de Deus que Lutero não podia tolerar. Se o evangelho fosse a mensagem de que Deus não é justo, Lutero não teria tido problemas. Porém este texto relaciona indissoluvelmente a justiça de Deus com o evangelho. Segundo Lutero conta, ele odiava a frase "a justiça de Deus” e esteve meditando nela dia e noite para compreender a relação entre as duas partes do versículo que começa afirmando que "no evangelho a justiça de Deus se revela" e conclui dizendo que "o justo viverá pela fé".<br />A resposta foi surpreendente. A "justiça de Deus" não se refere aqui, como pensa a teologia tradicional, ao fato de que Deus castigue aos pecadores. Refere-se, sim, a que a "justiça" do justo não é obra sua, mas dom de Deus. A "justiça de Deus" é a que tem quem vive pela fé, não porque seja em si mesmo justo, ou porque cumpra as exigências da justiça divina, mas porque Deus lhe dá esse dom. A "justificação pela fé" não quer dizer que a fé seja uma obra mais sutil que as boas obras, e que Deus nos paga por essa obra. Quer dizer sim que, tanto a fé como a justificação do pecador, são obras de Deus, dom gratuito. Em consequência, continua comentando Lutero sobre sua descoberta, "senti que havia nascido de novo e que as portas do paraíso me haviam sido abertas. As Escrituras todas tiveram um novo sentido. E a partir de então a frase "a justiça de Deus" não me encheu mais de ódio, mas se tornou indizivelmente doce em virtude de um grande amor".<br /><br /><strong>Acontece a Tormenta</strong><br />Se bem que os acontecimentos posteriores revelaram outra faceta de Lutero, durante todo esse tempo ele se revelou um homem relativamente reservado, dedicado a seus estudos e sua luta espiritual. Sua grande descoberta embora tivesse lhe trazido uma nova compreensão do evangelho, não o levou a protestar de imediato contra o modo pelo qual a igreja entendia a fé cristã. Pelo contrário, ele continuou dedicado a seus labores docentes e pastorais e, embora haja indícios de que ensinou sua nova teologia, não pretendeu contrapô-la à que se ensinava na igreja. O que é mais notável é que ele mesmo não tinha percebido que sua grande descoberta se opunha a todo o sistema de penitências e, conseqüentemente, à teologia e às doutrinas comuns na sua época.<br />Pouco a pouco, e sem pretender ocasionar controvérsia alguma, Lutero foi convencendo seus colegas na universidade de Wittenberg. Quando por fim decidiu que havia chegado o momento de lançar seu grande repto, compôs noventa e cinco teses, que deviam servir de base para um debate académico. Nelas Lutero atacava vários dos princípios fundamentais da teologia escolástica e esperava que a publicação dessas teses, e o seu posterior debate, seriam uma oportunidade de dar a conhecer ao resto da igreja sua descoberta. Porém, para sua surpresa, chegou a data do debate e somente lhe deram atenção os círculos académicos da universidade. Ao que parece, a descoberta de que o evangelho devia ser entendido de maneira diferente da que comumente se pregava, algo tão importante para Lutero, não teve a mesma repercussão para o resto do mundo.<br />Mas então, sucedeu o inesperado. Quando Lutero produziu outras teses, sem crer de modo algum que teriam mais impacto que as anteriores, se criou uma revolução tal que toda a Europa se viu envolvida nas suas consequências. O que tinha acontecido era que, ao atacar a venda das indulgências, crendo que não se tratava mais do que uma consequência natural do que se havia discutido anteriormente, Lutero se havia atrevido, ainda que sem sabê-lo, a opor-se ao lucro e aos desígnios de vários personagens muito mais poderosos do que ele.<br />A venda de indulgências que Lutero atacou tinha sido autorizada pelo papa Leão X, e nela estavam envolvidos os interesses económicos e políticos da poderosíssima casa dos Hohenzollern, que aspirava à hegemonia da Alemanha. Um dos membros dessa casa, Alberto de Brandeburgo, tinha já duas sedes episcopais e desejava ocupar também o arcebispado de Mainz, que era o mais importante da Alemanha. Para isso se pôs em contato com Leão X, um dos piores papas daquela época de papas indolentes, avarentos e corrompidos. Leão X fez saber que estava disposto a conceder a Alberto o que ele lhe pedia, em troca de dez mil ducados. Posto que esta era uma soma considerável, o Papa autorizou Alberto a proclamar uma grande venda de indulgências em seus territórios, em troca de que a metade do produto fosse enviada ao erário papal. Parte do que sucedia era que Leão X sonhava com o término da Basílica de São Pedro, iniciada por seu predeces¬sor Júlio II, cujas obras marchavam lentamente por falta de fundos. Logo, a grande basílica que hoje é o orgulho da igreja romana foi uma das causas indiretas da reforma protestante. Quem se encarregou da venda das indulgências na Alemanha Central foi o dominicano João Tetzel, homem sem escrúpulos que com o fim de promover sua mercadoria, fazia afirmações escandalosas. Por exemplo: Tetzel e seus subalter¬nos proclamavam que a indulgência que vendiam deixava o pecador "mais limpo do que saíra do batismo", ou "mais limpo do que Adão antes de cair", que "a cruz do vendedor de indulgências tinha tanto poder como a cruz de Cristo" e que, no caso de alguém comprar uma indulgência para um parente já morto, "tão pronto a moeda caísse no cofre, a alma saía do purgatório".<br />Tais afirmações causavam repugnância entre os mais informados que sabiam que a doutrina da igreja não era assim como a apresentavam Tetzel e os seus seguidores. Entre os humanistas que se doíam pela ignorância e superstição que parecia reinar por todos os lugares, a pregação de Tetzel era vista como o exemplo mais triste do estado a que tinha chegado a igreja. O espírito nacionalista alemão também se ressentia dessa situação, porque via na venda das indulgências uma maneira pela qual Roma explorava mais uma vez o povo alemão, aproveitando de sua credulidade, para logo esbanjar em luxos e festins os escassos recursos que os pobres alemães tinham conseguido produzir com o suor de seus rostos. Porém, ainda que muitos abrigassem esses sentimentos, ninguém protestava, e as vendas continuavam.<br />Foi então que Lutero fixou suas famosas noventa e cinco teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg. Essas teses, escritas em latim, não tinham o propósito de criar uma como¬ção religiosa, como tinha sido o caso das anteriores. Depois daquela experiência, Lutero parece ter pensado que a questão que tinha sido debatida era principalmente do interesse dos teólogos, e que portanto suas novas teses não teriam mais impacto que aquele produzido nos círculos académicos. Porém, ao mesmo tempo, essas noventa e cinco teses, escritas acaloradamente com um sentimento de indignação profunda, eram muito mais devastadoras que as anteriores, não porque se referissem a tantos pontos importantes de teologia, mas porque punham o dedo sobre a chaga do ressentimento alemão contra os exploradores estrangeiros. E além do mais, ao atacar concretamente a venda das indulgências, punha em perigo os projetos dos poderosos. Se bem que seu ataque fosse relativamente moderado, algumas das teses iam mais além da mera questão da eficácia e dos limites das indulgências e apontavam para a exploração da qual o povo era objeto. Segundo Lutero, se era verdade que o papa tinha poderes para tirar uma alma do purgatório, tinha que utilizar esse poder, não por razões tão triviais como a necessidade de fundos para construir uma igreja, mas simplesmente por amor, e assim fazê-lo gratuitamente (tese 82). E ainda mais, o certo é que o papa deveria dar do seu próprio dinheiro aos pobres de quem os vendedores de indulgências tiravam, mesmo que para isso tivesse que vender a Basílica de São Pedro (tese 51).<br />Lutero deu a conhecer suas teses na véspera da festa de Todos os Santos, e seu impacto foi tal que frequentemente se marca essa data, 31 de outubro de 1517, como o começo da reforma protestante. Os impressores produziram um grande número de cópias das teses e as distribuíram por toda a Alema¬nha, tanto no original latino, como em tradução alemã. O próprio Lutero havia mandado uma cópia a Alberto de Brandeburgo, acompanhada com uma carta muito respeitosa. Alber¬to enviou as teses e a carta para Roma, pedindo a Leão X que interviesse. O imperador Maximiliano se encolerizou diante das atitudes e dos ensinos daquele monge impertinente, e também pediu a Leão X que interviesse. Nesse meio tempo, Lutero publicou uma explicação de suas noventa e cinco teses, na qual, além de esclarecer o que tinha sido escrito em<br />breves proposições, aguçava seu ataque contra a venda das indulgências e contra a teologia que servia para apoiá-la.<br />A resposta do papa foi pôr a questão debaixo da jurisdição dos agostinhos, cuja próxima reunião capitular, teria lugar em Heidelberg, e Lutero foi convocado. Para lá foi nosso monge, temendo por sua vida, pois se dizia que seria condenado e queimado. Porém para grande surpresa sua, muitos dos monges se mostraram favoráveis a sua doutrina. Alguns dos mais jovens a acolheram entusiasticamente. Para outros a disputa entre Lutero e Tetzel era um caso a mais na velha rivalidade entre os agostinhos e os dominicanos, e portanto, não estavam dispostos a abandonar seu campeão. Em consequência, Lutero regressou a Wittenberg fortalecido pelo apoio de sua ordem e feliz por haver ganhado vários conversos para sua causa.<br />O papa então tomou outro caminho. Em breve deveria se reunir em Augsburgo a dieta do Império, isso é, a assembleia de todos os potentados alemães, sob a presidência do imperador Maximiliano. O legado papal a essa dieta era o cardeal Cajetano, homem de grande erudição, cuja missão principal era convencer os príncipes alemães da necessidade de em¬preender uma cruzada contra os turcos, que ameaçavam a Europa, e de promulgar um novo imposto para esse fim. A ameaça dos turcos era tal que Roma estava tomando medidas para reconciliar-se com os husitas da Boémia, mesmo que isso implicasse em acatar várias de suas demandas. Portanto, a cruzada e o imposto eram a principal missão de Cajetano, a quem o papa comissionou para se entrevistar com Lutero e o obrigar a retratar-se. Se o monge se negasse, deveria ser levado prisioneiro a Roma.<br />O leitor Frederico, o Sábio da Saxônia, dentro de cuja jurisdição vivia Lutero, obteve do imperador Maximiliano um salvo-conduto para o frade, a quem se dispôs a ajudar em Augsburgo, mesmo sabendo que pouco mais de cem anos atrás e, em circunstâncias muito parecidas, João Huss tinha sido queimado em violação a um salvo-conduto imperial.<br />A entrevista com Cajetano não produziu o resultado dese¬jado. O cardeal se negava a discutir com o monge e exigia sua renúncia. O frade, por sua vez, não estava disposto a retratar-se, se não fosse convencido de que estava errado. Quando por fim se inteirou de que Cajetano tinha autoridade para arrastá-lo, ainda que em violação do salvo-conduto imperial, abandonou a cidade às escondidas no meio da noite, regressou a Wittenberg e apelou a um concílio geral.<br />Durante todo este período, Lutero havia contado com a proteção de Frederico, o Sábio, eleitor da Saxônia e portanto de Wittenberg. Frederico, não protegia Lutero porque estava convencido de suas doutrinas, mas sim porque lhe pareceu que a justiça exigia um julgamento correto. A princi¬al preocupação de Frederico era ser um governante justo e sábio. Com esse propósito fundou a Universidade de Wittenberg, onde muitos dos professores lhe diziam que Lutero tinha razão, e que se enganavam aqueles que o acusavam de heresia. Pelo menos, enquanto Lutero não fosse condenado oficial¬mente, Frederico estava disposto a evitar que se cometesse com ele uma injustiça semelhante a que havia acontecido no caso de João Huss. Entretanto, a situação se tornava cada vez mais difícil, pois cada vez mais eram mais numerosos os que diziam que Lutero era herege, tornando a posição de Frederico bastante precária.<br />Assim estavam as coisas, quando a morte de Maximiliano deixou vago o trono alemão, e era necessário eleger um novo imperador. Visto que se tratava de uma dignidade eletiva, e não hereditária, imediatamente se começou a discutir sobre quem seria o novo imperador. Os dois candidatos mais poderosos eram Carlos l, da Espanha (o filho de Joana, a Louca e Felipe, o Formoso, neto de Isabel) e Francisco l, da França. Mas nenhum desses candidatos era do agrado do Papa Leão X, pois ambos eram demasiadamente poderosos, e sua eleição à dignidade imperial quebraria o equilíbrio dos poderes europeus que era a base da política papal. Carlos tinha, além dos recur¬sos da Espanha, que começava a receber as riquezas do Novo Mundo, suas possessões hereditárias nos Países Baixos, Áustria e o sul da Itália. Se a tudo isso se lhe acrescentasse o trono alemão, seu poder não teria rival em toda Europa. Francisco, como rei da França, tampouco lhe parecia aceitável, pois uma união entre as coroas francesa e alemã podia ter consequências funestas para o papado. Portanto, era necessário buscar outro candidato cuja possibilidade de ser eleito estivesse, não em seu poder, mas em seu prestígio de homem sábio e justo. Dentro de tais critérios, o candidato ideal era Frederico, o Sábio, respeitado por todos os demais senhores alemães. Se Frederico fosse eleito, as potências europeias ficariam suficientemente divididas para permitir ao papa gozar de certo poder. Portanto, desde antes da morte de Maximiliano, Leão X tinha decidido aproximar-se de Frederico e apoiar a sua candidatura.<br />Porém, Frederico protegia a Lutero, pelo menos até que o frade revolucionário fosse devidamente julgado. Portanto, Leão decidiu que o melhor era prorrogar a condenação de Lutero e tratar de aproximar-se do monge e do eleitor que o defendia. Com essas instruções, enviou Karl von Miltitz, parente de Frederico, à Alemanha, com uma rosa de ouro para o eleitor em sinal de favor papal e, por assim dizer, com um ramo de oliva para o monge.<br />Miltitz se entrevistou com Lutero e conseguiu deste a promessa de não continuar a controvérsia, desde que seus inimigos fizessem o mesmo. Isso trouxe uma breve trégua, até que o teólogo conservador João Eck, professor da universidade de Ingolstadt, interveio no assunto. Em lugar de atacar Lutero, o qual se fizera aparecer como aquele que quebrara a paz, Eck atacou a Carlstadt, outro professor da universidade de Wittenberg que tinha se convencido das doutrinas de Lutero, e que era muito mais impetuoso e exagerado do que o Reformador. Eck propôs a Carlstadt um debate que teria lugar na universidade de Leipzig. Dadas e estabelecidas as ques¬tões, ficava claro que o propósito de Eck era atacar Lutero através de Carlstadt e, portanto, o Reformador declarou que devido a serem discutidas as suas doutrinas em Leipzig, ele também participaria do debate.<br />A discussão se conduziu com todas as formalidades dos exercícios académicos e durou vários dias. Quando chegou o momento de Lutero e Eck se enfrentarem, ficou claro que o primeiro era melhor conhecedor das Escrituras, porém que o segundo se achava mais à vontade no direito canônico e na teologia medieval. E com toda a esperteza, Eck levou o combate para seu próprio campo, e por fim obrigou a Lutero declarar que o Concílio de Constanza se enganara ao condenar Huss, e que um cristão com a Bíblia, no seu entender, tem mais autoridade que todos os papas e os concílios contra ela. Isso bastou. Lutero tinha se declarado defensor de um herege condenado<br />por um concílio ecumênico. Mesmo que os argumentos do Reformador se mostrassem melhores do que os do seu oponente em vários pontos, foi Eck quem ganhou o debate, pois nele conseguiu demonstrar aquilo a que se propusera: que Lutero era um herege, pois defendia as doutrinas dos hussitas.<br />Começou então um novo período de confrontações e perigos. Porém Lutero e os seus haviam empregado bem o tempo que as circunstâncias políticas lhes haviam dado, de maneira que por toda a Alemanha, e até fora dela, eram cada vez mais os que viam o monge agostiniano como o campeão da fé bíblica. Além do número sempre crescente de seus seguidores, particularmente entre os professores de Wittenberg e de outras universidades, e entre os sacerdotes mais zelosos de suas responsabilidades, Lutero tinha as simpatias dos humanistas, que viam nele um defensor da reforma que eles mesmos propunham, e dos nacionalistas, para quem o monge era o porta-voz do protesto alemão diante dos abusos de Roma.<br />Logo, ainda que umas semanas antes do debate de Leipzig, Carlos l da Espanha tinha sido eleito imperador (com o voto de Frederico, o Sábio) e, portanto, o papa não tinha que andar com mesuras como antes, a posição de Lutero tinha se fortalecido. Muitos cavaleiros alemães chegaram a enviar-lhe mensagens prometendo-lhe apoio armado, se o conflito chegasse a estourar. Quando por fim o papa resolveu atuar, sua ação resultou demasiadamente tardia e ineficiente. Na bula Exsurge domine, Leão X declarou que um javali selvagem havia penetrado na vinha do Senhor e ordenava que os livros de Martinho Lutero fossem queimados, e dava ao monge rebelde sessenta dias para submeter-se à autoridade romana, sob pena de excomunhão e anátema.<br />A bula demorou muito tempo para chegar às mãos de Lutero, pois as circunstâncias políticas eram sobremodo complexas. Em vários lugares, ao receber cópias da bula, as obras do Reformador foram queimadas. Porém em outros, alguns estudantes e outros partidários de Lutero, preferiram queimar algumas das obras que se opunham ao movimento reformador. Quando enfim a bula chegou às mãos de Lutero, este a queimou, junto com outros livros que continham as doutrinas papistas. O rompimento era definitivo e não havia modo de se voltar atrás.<br />Faltava ver, entretanto, que atitudes tomariam os senho¬res alemães e particularmente o Imperador, pois sem eles era pouco o que o papa poderia fazer contra Lutero. As gestões de cada parte foram demasiadamente numerosas para se narrar aqui. Basta dizer que, ainda que Carlos V fosse católico convicto, não deixou de utilizar a questão de Lutero como uma arma contra o papa quando este pareceu inclinar-se para o seu rival, Francisco l, da França. Posteriormente, depois de muitas idas e vindas, se resolveu que Lutero compareceria diante da dieta do Império, reunida em Worms no ano de 1521.<br />Quando Lutero chegou a Worms, foi levado diante do Imperador e vários dos principais personagens do Império. Quem estava encarregado de interrogá-lo lhe apresentou um montão de livros e lhe perguntou se os havia escrito. Depois de examiná-los, Lutero confirmou que os havia escrito todos e vários outros que não estavam ali. Então seu interlocutor lhe serguntou se continuava sustentando tudo o que havia dito neles ou se estava disposto a retratar-se de algo. Este era um momento difícil para Lutero, não tanto porque temia o poder Imperial, mas porque temia sobremaneira a Deus. Atrever-se a se opor a toda a igreja e ao Imperador, que tinha sido ordenado por Deus, era um passo temerário. Uma vez mais o monge temeu diante da majestade divina e pediu um dia para considerar sua resposta.<br />No dia seguinte, correu a notícia de que Lutero compareceria diante da dieta e a assistência foi grande. A presença do Imperador em Worms, rodeado de soldados espanhóis que abusavam do povo, havia exacerbado ainda mais o sentimento nacional. Uma vez mais, em meio ao maior silêncio, se pergun¬tou a Lutero se se retratava. O monge respondeu dizendo que o que havia escrito não era mais que a doutrina cristã que tanto ele como seus inimigos sustentavam, e portanto ninguém deveria pedir-lhe que se retratasse daquilo. Outra parte tratava sobre a tirania e as injustiças a que estavam submetidos os alemães, e também disto não se retrataria, pois tal não era o propósito da dieta, e tal negação somente contribuiria para aumentar a injustiça que se cometia. A terceira parte, que consistia em ataques a certos indivíduos e em pontos de doutrina que seus oponentes refutavam, certamente não havia sido escrita com demasiada aspereza. E assim tão pouco dela se retrataria, a não ser que lhe convencessem de que estava enganado.<br />Seu interlocutor insistiu: "Retratas-te, ou não?” E Lutero lhe respondeu, em alemão, desdenhando, portanto, o latim dos teólogos: "Não posso nem quero retratar-me de coisa alguma, pois ir contra a consciência não é justo nem seguro. Deus me ajude. Amém".<br />Ao queimar a bula papal, Lutero havia rompido definitivamente com Roma. E agora em Worms, rompia com o Império. Não lhe faltavam razões suficientes para clamar: "Deus me ajude".Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-35553183227184793972007-06-13T06:13:00.000-07:002009-05-06T04:25:09.133-07:00História da Igreja - Parte 14A Era das Trevas - continuação<br /><br /><strong>O papado</strong><br />Foi durante a "era das trevas" que o papado começou a surgir com a pujança que o caracterizou em séculos posteriores. Porém, antes de narrar estes acontecimentos convém que nos detenhamos para discutir a origem do papado.<br />A origem do papado<br />O termo "papa", que atualmente é empregado no Ocidente exclusivamente para o bispo de Roma, nem sempre teve este sentido. A palavra em si significa simplesmente "papai", sendo, portanto, um termo de carinho e respeito. Na época antiga, ele era usado para qualquer bispo distinto, sem importar se ele era ou não o bispo de Roma. Assim, há, por exemplo, documentos antigos que se referem ao "papa Cipriano", de Cartago, ou ao "papa Atanásio", de Alexandria. <br />Além disto, enquanto no Ocidente o termo acabou ficando exclusivamente para o bispo de Roma, em várias partes da igreja oriental ele continuou sendo usado com mais liberalidade. Todavia, não se pode esquecer que o descaminho da igreja romana começa efetivamente aqui, uma vez que descumpre um mandamento do próprio Cristo > "E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só é o vosso Pai, o qual está nos céus." (Mateus 23.9) <br />Em todo caso, a questão mais importante não é a origem do termo "papa", mas de que maneira o bispo de Roma chegou a gozar da autoridade que teve durante a Idade Média, e que ainda tem na igreja católica romana.<br />As origens do bispado romano se perderam na penumbra da história. A maior parte dos historiadores, tanto católicos como protestantes, concorda que Pedro esteve em Roma e que, provavelmente, morreu naquela cidade durante a perseguição de Nero. Porém NÃO existe nenhum documento antigo que diga que Pedro transferiu sua autoridade apostólica aos seus sucessores.<br />Além disso, as listas antigas que enumeram os primeiros bispos de Roma não coincidem. Enquanto algumas dizem que Clemente sucedeu diretamente a Pedro, outras dizem que ele foi o terceiro bispo depois da morte do apóstolo. Isso é tanto mais digno de nota por termos listas relativamente fidedignas de outras igrejas. Isso, por sua vez, levou alguns historiadores a conjeturar que talvez o bispado de Roma, em seu princípio, não tenha sido "monárquico" (isto é, com um só bispo), porém um bispado colegiado onde vários bispos, ou presbíteros, dirigiam a vida da igreja em conjunto. <br />Seja qual for o caso, o fato é que de todo o período que vai desde a perseguição de Nero, em 64, até a Primeira Epístola de Clemente, em 96, o que sabemos do bispado romano é pouco ou nada. Se o papado ti¬vesse sido tão importante desde as origens da igreja, como dizem alguns, teria deixado mais vestígios durante toda esta segunda metade do primeiro século.<br />Durante os primeiros séculos da história da igreja, o centro numérico do cristianismo esteve no Oriente, e por isso bispos de cidades como Antioquia e Alexandria tinham muito mais importância que o bispo de Roma. E também no Ocidente de fala latina, a direção teológica e espiritual não esteve em Roma, mas na África latina, que contribuiu com Tertuliano, Cipriano e Santo Agostinho.<br />Essa situação começou a mudar quando o Império aceitou a fé cristã. Como Roma era, pelo menos de nome, a capital do lmpério, a igreja e o bispo dessa cidade logo se viram ern posigão de deslaque. Em todo o Império, a igreja começou a se organizar de acordo com os padrões estabelecidos pelo estado, e as cidades que tinham jurisdição política sobre uma região logo tinham também jurisdição eclesiástica. <br />Depois de algum tempo a igreja estava dividida em cinco patriarcados, que tinham suas sedes em Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Constantinopla e Roma. A própria existência do patriarcado de Constantinopla, uma cidade que nem sequer existia como tal em tempos apostólicos, mostra que esta estrutura correspondia mais a realidades políticas que a origens apostólicas. E o caráter quase somente simbólico do patriarcado de Jerusalém, que poderia reclamar para si ainda mais autoridade apostólica que a própria Roma, mostra a mesma coisa.<br />Quando os bárbaros invadiram o Império, a igreja do Ocidente começou a seguir um rumo bem diferente da do Oriente. No Oriente, o Império continuou existindo, e os patriarcas continuaram subordinados a ele. O caso de João Crisóstomo, que vimos anteriormente, se repetiu com frequência na igreja oriental. No Ocidente, entretanto, o Império desapareceu, e a igreja veio a ser a guardiã do que restava da velha civilização. Por isso, o patriarca de Roma, o papa, chegou a ter grande prestígio e autoridade.<br /><br />Leão, o Grande<br />Podemos ver isso no caso de Leão I, "o Grande", de quem já se disse que foi o primeiro "papa", no sentido corrente do termo. Mais à fente, veremos sua intervenção nas controvérsias cristológicas que dividiram o Oriente durante seu tempo. Ao estudarmos estas controvérsias, e a participação de Leão, duas coisas ficam claras. A primeira é que sua autoridade não era aceita pelas partes em conflito, somente pelo fato de ele ser o bispo de Roma. <br />Enquanto os ventos políticos sopraram na direção contrária, Leão pouco pôde fazer para impor sua doutrina ao resto da igreja (particularmente no Oriente). E quando, por fim, sua doutrina foi aceita, isto não aconteceu porque ela provinha do papa, mas porque coincidiu com a do partido que no fim conseguiu sair vitorioso. <br />A segunda coisa que se nota é que, apesar de Leão não poder fazer valer sua autoridade de maneira automática, essa autoridade aumentou por ter sido usada em prol da ortodoxia e da moderação. Portanto, as controvérsias cristológicas, ao mesmo tempo que nos mostram que o papa não tinha jurísdição universal, nos mostram também como sua autoridade foi aumentando. Porém, enquanto que no Oriente duvidava-se de sua autoridade, em Roma e vizinhanças, esta autoridade se estendia até além dos assuntos tradicionalmente religiosos. <br />Em 452, os hunos, sob o comando da Átila, invadiram a Itália, tomaram e saquearam a cidade de Aquilea. Depois desta vitória, o caminho para Roma estava aberto, pois em toda a Itália não existia ne¬nhum exército capaz de barrar-lhes o caminho até a velha capital. <br />O imperador do Ocidente era um personagem débil e sem recursos, e o Oriente tinha dado a entender que não prestaria nenhum socorro. Nessas circunstâncias, Leão partiu de Roma e foi até o acampamento de Átila, para falar com o chefe bárbaro que todos temiam como "o chicote de Deus". Não sabemos o que Leão disse a Átila. Conta a lenda que, quando o papa se aproximou, junto dele apareceram São Pedro e São Paulo, ameaçando Átila com uma espada. Em todo caso, o fato é que Átila, depois desse encontro com Leão, abandonou sua intenção de atacar Roma e rumou com seus exércitos para o norte, onde morreu pouco depois.<br />Leão ainda ocupava o trono episcopal de Roma quando os vândalos tomaram a cidade, em 455. Naquela ocasião, o papa não conseguiu salvar a cidade das mãos dos seus inimigos. Porém, pelo menos, foi ele quem negociou com Genserico, o chefe vândalo, e conseguiu que ele proibisse incêndios e assassinatos. Ape¬sar da destruição causada pelos vândalos ter sido grande, ela poderia ter sido muito maior se Leão não tivesse intervindo. <br />Tudo isto nos mostra que em uma época em que a Itália e boa parte da Europa Ocidental estavam atoladas no caos, o papado preencheu o vazio, proporcionando certa estabilidade. Essa foi a principal razão por que os papas da Idade Média alcançaram um poder que os patriarcas de Constantinopla, Antioquia ou Alexandria nunca tiveram.<br />Leão, porém, não baseava sua autoridade somente em considerações políticas. Para ele a autoridade do bispo de Roma sobre todo o restante da igreja era parte do plano de Deus. Jesus Cristo tinha dado a São Pedro as chaves do Reino, e a Providência divina tinha levado o velho pescador à capital do Império. Pedro era a pedra sobre a qual Jesus Cristo tinha prometido edificar a sua igreja, e por isso quem quisesse construir sobre outro fundamento estaria edificando sobre a areia. Que grande mentira! <br />Foi a Pedro que o Senhor disse diversas vezes: "Apascenta as minhas ovelhas". E tudo isso que as Escrituras dizem sobre o líder dos apóstolos também vale para seus sucessores, os bispos de Roma. <br />Por isso a autoridade do papa não advém simplesmente do fato de Roma ser a antiga capital do Império, nem porque na época não havia em todo o Ocidente quem pudesse dirigir os destinos da sociedade, mas era parte do plano de Deus, e existiria para sempre, pois as portas do inferno não prevaleceriam contra ela. Mais e mais mentiras, pois uma exige sempre outra e mais outra.<br />Como vemos, em Leão encontramos os principais argumentos que através dos séculos seriam reunidos a favor da autoridade papal.<br /><br />Os sucessores de Leão<br />Leão deve parte do seu prestígio à sua própria pessoa, e parte às circunstâncias do momento. Sem dúvida ele era um personagem excepcional, e diz-se com razão que em sua épo¬ca não existia quem pudesse se comparar a ele em firmeza de caráter, profundeza de percepção teológica e habilidade política. Porém tudo isto pôde se manifestar graças à situa¬ção política em que lhe coube viver. Com efeito, Leão foi papa durante um período de relativa anarquia na Itália, e boa parte da sua grandeza residiu em saber preencher o vazio criado por essa anarquia.<br />Quando Leão morreu, sucedeu-lhe Hilário que havia sido um dos seus principais colaboradores. Este fez tudo que pôde para continuar a política de Leão, se bem que com menor êxito. ----------<br />Durante o pontificado de Simplício, que sucedeu a Hilário, as condições políticas começaram a mudar. Em 476, Odoacro depôs o último imperador do Ocidente. Na teoria, isso queria dizer que agora todo o Império estava de novo reunido debaixo do imperador que residia em Constantinopla. Na verdade quem governava era Odoacro e os demais chefes bárbaros, como monarcas independentes, apesar de dizerem que governavam em nome do imperador. Portanto, sempre que estes monarcas eram fortes, faziam sombra ao papa, esforçando-se por manejá-lo de acordo com suas próprias intenções.<br />Em outras ocasiões, porém, não havia poder político algum capaz de se sobrepor ao caos, e então os papas se viam na obrigação de preencher este vazio. <br />Na época de Simplício e dos seus sucessores, Felix III, Gelásio e Anastácio l, as relações entre os papas e os impe¬radores de Constantinopla foram bastante tensas, pois os imperadores tratavam de conquistar a simpatia dos monofisistas (relativo à doutrina daqueles que admitiam em Jesus Cristo uma só natureza) da Síria e do Egito. Mas os papas e todo o Ocidente cristão se opunham a esta política. <br />Como veremos mais adiante, o monofisismo era uma das doutrinas resultantes das controvérsias cristológicas que abalaram o cristianismo de fala grega durante o século V. Se bem que esta doutrina tenha sido condenada oficialmente pelo concílio de Calcedônia em 451, ela ainda contava com numerosos adeptos no Egito e na Síria. Como estas províncias faziam parte das mais ricas regiões do Império, os governantes de Constantinopla fizeram tudo o que podiam para granjear para si a boa vontade dos monofisistas, o que, por sua vez, criou tensões entre os papas e os imperadores.<br />Por outro lado, na época de Félix, os godos invadiram a Itália, sob o comando de Teodorico. Em 493, Teodorico era dono de quase toda a península. Como os godos eram arianos, sempre temiam que seus súditos italianos conspirassem a favor de Constantinopla, e por isso Teodorico e seus sucessores vi¬ram com bons olhos as desavenças entre os papas e os imperadores e trataram de fomentá-las. Lembremo-nos também que foi Teodorico quem mandou prender e matar Boécio, suspeitando que seu ministro conspirava para trazer de volta o poder imperial.<br />Antes da vitória definitiva de Teodorico, o papa Félix III havia rompido relações com o patriarca de Constantinopla, Acácio. Isto é o que os historiadores ocidentais conhecem pelo “cisma de Acácio", enquanto os orientais culpam o papa pelo cisma. Agora, com os interesses de Teodorico e dos seus sucessores, o cisma se perpetuou. <br />Em 498, quando morreu o papa Atanásio II, a tensão entre godos e bizantinos resultou na existência de dois papas rivais. Enquanto os godos e boa parte da população romana apoiava Símaco, que os católicos até hoje consideram como<br />verdadeiro papa, o governo de Constantinopla sustentava Lourenço. Nas ruas de Roma houve conflitos armados em que morreram várias pessoas. Uma série de concílios se reuniu para resolver a questão, até que por fim Símaco saiu vencedor.<br />Sob o sucessor de Símaco, Hormisdas, a situação começou a mudar. O novo imperador, Justino, começou a se interessar cada vez mais pelo Mediterrâneo ocidental, e nesse intento, se aproximou do papa. <br />O sucessor de Justino, seu sobrinho Justiniano, seguiu essa política muito mais ativamente e sob seu governo o antigo Império Romano gozou de uma breve reascensão. Depois de uma série de negociações, e ainda enquan¬to Hormisdas era papa, o cisma entre Roma e Constantinopla foi eliminado.<br />No começo, o rei godo Teodorico se opôs a esta aproximação entre seus súditos e as autoridades imperiais. Porém mais perto do fim de seus dias, ele começou a suspeitar que os católicos conspiravam para derrubar o governo dos godos e devolver a Itália ao Império. Foi então que ele mandou prender e matar a Boécio. <br />Pouco depois Teodorico enviou o papa João l como embaixador para Constantinopla e, quando este voltou sem conseguir tudo o que o rei queria, o rei o conde¬nou à prisão, onde morreu. Conta-se que Teodorico estava empenhado a entregar todas as igrejas de Ravena aos arianos quando a morte o surpreendeu.<br />A morte de Teodorico iniciou o ocaso do reino godo na Itália. Teodorico morreu em 526, e em 535, o general constantinopolitano Belisário já tinha conquistado a maior parte da península. <br />A despeito de se esperar que a nova situação política resultaria proveitosa para o papado, isso não ocorreu. Somente em seus últimos anos de vida, o ariano Teodorico permitiu aos seus súditos ortodoxos que seguissem a sua própria consciência em questões de fé. Agora o imperador ortodoxo Justiniano, supostamente aliado do papa, impôs ao Ocidente o costume oriental de colocar os rendimentos da igreja nas mãos do estado. <br />O resultado foi toda uma sequência de papas que não passaram de títeres do imperador e da sua esposa Teodora. Os poucos que ousaram tentar interromper essa sequência sofreram todo o peso do desagrado imperial. Em meio às controvérsias teológicas da época, alguns destes papas escreveram páginas tristes da história do papado, como veremos mais à frente.<br />O domínio bizantino sobre a Itália, entretanto, não durou muito. Como já dissemos antes, o último baluarte godo foi conquistado pelas tropas imperiais em 562, e já seis anos depois, os lombardos invadiram o país. Seu poderio era tal que, se tivessem continuado unidos, não teriam demorado em conquistar toda a península. Eles, porém, se dividiram depois das suas primeiras vitórias, e a partir de então, as suas conquistas foram esporádicas. <br />Em todo caso a presença dos lombardos e as guerras constantes que essa presença acarretou obrigaram os papas a se ocuparem não só das questões religiosas, mas também da defesa de Roma e circunvizinhanças. Quando Justiniano morreu, o Império Oriental começou de novo a decair, e em pouco tempo a sua autoridade na Itália era quase nula. O exarcado (relativo aos delegado dos imperadores de Bizâncio na Itália ou na África) de Ravena, que teoricamente pertencia ao Império, se viu obrigado a se defender contra os lombardos por conta própria. <br />O mesmo podemos dizer de Roma, sob a direção do papa. Quando Benedito l faleceu em 579, as tropas lombardas assediaram a cidade. Seu sucessor Pelágio II salvou-a, oferecendo aos lombardos altas somas em dinheiro. Além disto, já que Constantinopla não lhe enviava ajuda, Pelágio iniciou negociações com os francos, para que estes atacassem os lombardos pelo norte. Estes contatos iniciais ainda não levaram a ações militares, mas serviram de sinal para o que sucederia várias gerações mais tarde, quando os francos se transformaram nos principais aliados do papado.<br /><br />Gregório, o Grande<br />As coisas estavam assim quando uma terrível epidemia irrompeu na Itália. Pelágio fez tudo o que podia para enfrentar este novo desafio, mas acabou ele mesmo sucumbindo à peste. Era o ano de 590, e o eleito para sucedê-lo seria um dos maiores papas de todos os tempos.<br />Gregório nasceu por volta do ano 540 em Roma, em uma família que, ao que parece, pertencia à velha aristocracia do lugar. Era a época em que Justiniano reinava em Constantinopla, e seus generais estavam empenhados em derrotar os godos na Itália. Depois das primeiras vitórias, Justiniano tirara seu general Belisário do campo de batalha, quando Totila conseguiu reorganizar as tropas godas, e deter por algum tempo o avanço dos exércitos imperiais. <br />Em 545, Totila sitiou Roma, que se rendeu a ele em dezembro de 546. Quando os godos entraram na cidade, o arcediago (O primeiro entre os diáconos) Pelágio (o mesmo que depois seria papa) saiu ao encontro do rei vencedor e lhe suplicou que respeitasse a vida e a honra dos vencidos. Totila concordou, e por isso a queda de Roma não foi a catástrofe que poderia ter sido.<br />É muito provável que Gregório tenha estado em Roma durante estes acontecimentos. Em todo caso não há dúvida de que a atuação de Pelágio foi um dos modelos que Gregório seguiu quando coube a ele ser papa. ,<br />Tudo isto nos mostra que a Roma em que Gregório cresceu estava muito longe daquela cidade nobre dos tempos de César Augusto. Pouco depois da vitória de Totila, Belisário e as tropas imperiais tomaram novamente a cidade, somente para perdê-la de novo. Com tantos sítios seguidos a população da antiga capital reduziu-se enormemente. Muitos dos velhos monumentos e edifícios foram destruídos, ou durante os comba¬tes, ou para utilizar suas pedras para reforçar as defesas da cidade. Os aquedutos foram interrompidos seguidamente pelos diferentes atacantes, e por fim ficaram abandonados. Descuidou-se dos sistemas de drenagem dos antigos pântanos, e as inundações frequentes traziam consigo epidemias não menos frequentes.<br />Sabemos pouco da juventude de Gregório na cidade. Parece que ele foi prefeito, antes de decidir ser monge. Algum tempo depois, o papa Benedito o fez diácono, isto é, mem-bro do conselho consultivo e administrativo do papa. Quan¬do Benedito morreu, Pelágio II lhe sucedeu, e este nomeou o monge Gregório seu embaixador na corte de Constantinopla.<br />Na cidade do Bósforo, Gregório passou seis anos representando os interesses do papa e dos romanos diante do imperador. Durante este tempo esteve repetidamente envolvido nas controvérsias teológicas que sempre ferviam na corte bizantina, porém apesar disso nunca aprendeu grego. Ali também ele fez amizade com Leandro de Sevilha, a quem já nos referimos como principal instrumento da conversão do reino visigodo da Espanha à fé católica. <br />Por fim, em 586, o papa Pelágio enviou outro embaixador, e Gregório pôde regressar à tranquilidade do seu mosteiro em Roma. No mosteiro de Santo André, Gregório logo foi feito abade, ao mesmo tempo que servia ao papa Pelágio como ajudante e secretário. <br />Nestes tempos a situação em Roma era difícil, pois dois anos antes do regresso de Gregório, os lombardos tinham acabado por se unir debaixo de um rei, com o propó¬sito de completar a conquista da Itália. Apesar do imperador enviar alguns recursos esporádicos para a defesa de Roma e de outras cidades ainda não conquistadas, e apesar dos francos invadirem frequentemente os territórios lombardos, vindos do outro lado dos Alpes, a situação militar era precária.<br />Para complicar as coisas, irrompeu uma grande epidemia na cidade, dizimando a população. Pouco antes houvera uma inundação que destruíra os principais armazéns da igreja, onde era guardado o trigo de que dependia boa parte dos habitantes. <br />Como a peste produzia alucinações, começaram a circular rumores de todo tipo de coisa estranhas. Um grande dragão apareceu no rio Tibre. Do céu choviam flechas de fogo. A morte aparecia aos que iam morrer. O pânico se somou à fome e à peste. Para cúmulo dos males, o papa Pelágio, que tinha se esforçado para manter a cidade relativamente limpa, com a ajuda de Gregório e de outros, para enterrar os mortos e alimentar os famintos, adoeceu da praga e morreu.<br />Em tais circunstâncias, não eram muitos os que ambicio¬navam o posto vago. O próprio Gregório não tinha outro desejo senão regressar à tranquilidade do seu mosteiro. Porém o clero e o povo o elegeram com entusiasmo e, ao menos no momento, Gregório não podia fazer outra coisa senão continuar a obra interrompida de Pelágio. <br />Uma das suas primeiras medidas, entretanto, foi escrever ao imperador pedindo que confir¬masse sua nomeação, pois naquela época havia o costume dos imperadores de Constantinopla darem sua aprovação ao papa eleito, antes que ele pudesse ser consagrado. Porém, o prefeito da cidade, que sabia que não poderia cumprir com suas obrigações sem o auxílio de um papa como Gregório, intercep¬tou a carta.<br />Outra das medidas de Gregório foi convocar todo o povo para uma grande procissão de penitência, pedindo a Deus que perdoasse seus pecados e que fizesse cessar a praga. Depois de ouvir um sermão do novo papa, que ainda existe, todo o povo saiu em procissão angustiada, e conta-se que a praga cessou.<br />Mesmo não desejando ser papa, assim que Gregório se viu instituído no cargo começou a cumprir com suas obriga¬ções cabalmente. Na cidade de Roma, organizou a distribuição de alimentos aos necessitados, de modo que havia quem levasse comida até os cantos mais afastados da cidade. Ao mesmo tem¬po o papa supervisionava as remessas de trigo que vinham da Sicília, para ter certeza de que não faltariam provisões. Por outro lado era necessário garantir que a cidade fosse ha¬bitável e defensável, e Gregório se dedicou com afinco a essas tarefas, que normalmente cabiam às autoridades civis. Na medida do possível, os aquedutos foram reconstruídos, bem como as fortificações, e a moral da guarnição foi renovada, pois ela quase a tinha perdido por falta de pagamento.<br />Para defender a cidade contra os lombardos, Gregório solicitou ajuda de Constantinopla. Porém como esta ajuda não chegava, em duas ocasiões ele se viu obrigado a negociar diretamente com o inimigo, como se ele fosse o representante do poder civil. Por fim conseguiu com a rainha Teodolinda que ela deixasse educar seu filho na fé católica, e não na ariana dos lombardos. <br />Em tudo isto, por causa da inexistência de uma política por parte do Império, Gregório viu-se obrigado a atuar por conta própria, e por isso ele é considerado o fundador do poder temporal do papado.<br />Este poder se estendia diretamente a uma série de territórios que de um ou outro modo tinham se tornado propriedade do papado, e que recebiam o nome comum de "património de São Pedro". Além das igrejas e de vários palácios em Roma, ao redor da velha capital havia terras que faziam parte deste património, bem como em outras partes da Itália, na Sicília, Córsega, Sardenha, Gália, e até na África. <br />Como proprietário de todas estas terras, o papado gozava de enormes riquezas. E Gregório pôs esse recurso a serviço da grande tarefa de alimentar o povo romano. Apesar de não lhe pertencer o governo da cidade de Roma, Gregório viu-se obrigado a exercê-lo. Esse precedente, junto com a decadência do poder imperial na Itália, fez com que, com o passar do tempo, os sucessores de Gregório ficassem sendo donos e governantes da cidade de Roma e arredores. <br />Algum tempo depois, perto do fim do século VIII, alguém falsificou um documento, a chamada Doação de Constantino, que pretendia que o grande imperador tivesse doado aqueles territórios aos sucessores de Pedro.<br />Em Roma, além de se ocupar com as necessidades físicas do povo, Gregório dedicou também seu tempo à vida da igreja. Ele dava muita importância à pregação, razão pela qual dedicou boa parte dos seus esforços pregando nas diversas igrejas da cidade e assegurando-se que todo o clero desse atenção especial à pregação. <br />Os luxos a que alguns tinham se acostumado foram proibidos, assim como pagamentos excessivos que alguns clérigos recebiam por seus serviços. Além disso, Gregório adotou medidas em favor do celibato eclesiástico, que paulatinamente tinha se generalizado na Itália, mas que muitos não cum¬priam.<br />Como bispo de Roma, Gregório se considerava também patriarca do Ocidente. Sem reclamar para o papado a autoridade universal que Leão tinha definido antes, Gregório fez muitos mais que seu antecessor para aplicar esta autoridade em diversas regiões. Na Espanha ele deu apoio às medidas que seu amigo Leandro de Sevilha e o rei Recaredo tomavam em favor da conversão do país do arianismo para o catolicismo. <br />Na verdade, foi ele quem interpretou assim a rebelião de Hermenegildo, a quem nos referimos antes, que logo foi considerado mártir da fé ortodoxa, sendo que mais tarde apareceu o culto a "São Hermenegildo". <br />Na África, o principal problema não eram os arianos, mas os donatistas, cujo cisma ainda perdurava. Na época de Gregório, e graças às conquistas de Justiniano e de seu general Belisário, todo o norte da África fazia parte do Império Romano. O Egito estava sob a jurisdição do patriarca de Alexandria. Gregório, entretanto, como patriarca do Ocidente, achava que tinha certa jurisdição sobre o antigo reino dos vândalos, que sempre fizera parte do Império do Ocidente. Por isso tratou de intervir nessa região para destruir o donatismo que ainda existia. <br />Os bispos africanos, todavia, não tinham interesse em levar avante a política intransigente que Gregório queria lhes impor, e se contentaram em conviver com os donatistas, como tinham aprendido a fazê-lo durante os dias difíceis do regime vândalo.<br />Gregório, por seu lado, fez pressão para que as autoridades imperiais aplicassem as leis de Constantino e dos seus sucessores imediatos contra os donatistas, que supostamente ainda estavam em vigor, mas que ninguém aplicava. <br />Os representantes de Constantinopla, entretanto, também se mostraram mais tolerantes que o papa, de modo que a política deste, no norte da África, foi, em termos gerais, um fracasso. À Inglaterra, Gregório enviou Agostinho e seus companheiros de missão, e depois outros contingentes que continuassem e ampliassem a obra. Nos territórios francos Gregório aumentou o prestígio da sede romana através de uma série de manobras hábeis. Os diversos reis francos estavam em constantes lutas entre si, cada um tentando aumentar seus domínios às expensas dos seus vizinhos, e obter a hegemonia da região. Em tais circunstâncias as boas relações com o prestigioso bispo de Roma poderiam contribuir para o triunfo de um ou outro reino. <br />Gregório aproveitou, então, os desejos de vários destes governantes para estabelecer relações com eles, sobretudo ao outorgar honras especiais a este ou aquele bispo deste ou daquele reino. Ao mesmo tempo, começou a usar esses contatos para pedir aos governantes que reformassem os costumes eclesiásticos em seus domínios, onde era hábito comprar e vender cargos na igreja, e onde era frequente o caso de algum leigo ambicioso ser nomeado bispo de um dia para outro. <br />Em outras tentativas de reforma, Gregório fracassou redondamente, pois os chefes francos queriam reter seu poder sobre a igreja. E o que o papa pedia acabaria com esse poder. Porém, ao mesmo tempo que não conseguiu as reformas desejadas, Gregório conseguiu aumentar o prestígio e a autoridade do papado nos territórios francos, pois a partir de então ficaram numerosos precedentes que pareciam indicar que o papa tinha jurisdição sobre os assuntos eclesiásticos na França.<br />Em resumo, mediante a simples política de intervir em diversas situações, quase sempre com tato e habilidade diplomática, Gregório estendeu a esfera de influência do papado.<br />Para esta tarefa ele contou com a ajuda do monasticismo beneditino, que começava a se disseminar pela Europa ocidental.<br />Já que o monasticismo e o papado foram as duas características principais do cristianismo medieval, podemos dizer que no tempo de Gregório foram colocadas as bases que, a longo prazo, permitiram à igreja ocidental sair da "era das trevas". Porém, como veremos adiante, a obra de Gregório levou séculos até chegar à sua expansão máxima, e os períodos de corrupção e obscurantismo foram mais frequentes que os momentos breves de luz e reforma.<br />Não faríamos justiça a todas as razões por que Gregório recebeu o título de "o Grande", se nos esquecêssemos de sua obra literária e teológica. Desde antes de ser papa, ele tinha se dedicado ao estudo das Escrituras e dos antigos autores cristãos. Sendo papa, mesmo dedicando menos tempo a este estudo, produziu numerosos sermões e cartas, muitos dos quais ainda existem. Através destes escritos, ele fez sentir seu impacto sobre todo o pensamento medieval.<br />Gregório não era um pensador de altas esferas, nem um comentarista original das Escrituras. Pelo contrário, ele achava que dever-se-ia evitar por todos os meios possíveis o que parecia ser "original" ou "novo", pois não é tarefa do mestre cristão dizer algo novo, mas repetir o que a igreja tem ensinado desde seu nascimento, e por isso somente os hereges são autores ou pensadores originais. <br />Quanto a si, Gregório se conformava em ser o porta-voz da antiguidade cristã, seu intérprete para tempos presentes. Bastava-lhe ser discípulo de Agostinho, e mestre dos ensinos deste.<br />Porém os séculos não passam em vão. Um abismo enorme se abria entre o bispo de Hipona e seu intérprete de fins do sexto século. Apesar de toda sua sabedoria, Gregório viveu em uma época de ignorância, e em certa medida tinha de participar dessa ignorância. Além disso, somente por considerar Agostinho seu mestre infalível Gregório já está torcendo o espírito do seu venerado mestre( cujo gênio residia, pelo menos em parte, em sua mente inquieta e suas conjecturas arriscadas. O que para Agostinho não passava de suposição, para Gregório passa a ser certeza. Assim, por exemplo, Agostinho se aventurara a dizer que talvez haja um lugar onde os que morrem em pecado tenham de passar por um processo de purificação, antes de entrar na glória. <br />Baseando-se nessa conjectura de seu mestre, Gregório declara que indubitavelmente existe este lugar, e começa a desenvolver a doutrina do purgatório.<br />Principalmente no que se refere à doutrina da salvação, foi que Gregório deformou e até transformou os ensinos de Agostinho. As doutrinas agostinianas da graça irresistível e da predestinação passaram despercebidas nas obras de Gregório, que dedicou sua atenção à questão de como podemos oferecer a Deus uma satisfação pelos pecados que cometemos. Esa satisfação oferecemos através da penitência, que consiste em arrependimento, confissão e pena ou castigo. A estas três fases se junta a absolvição sacerdotal, que confirma o perdão que Deus já conferiu ao penitente. Os que morrem na fé e em comunhão com a igreja, mas não fizeram suficiente penitência por seus pecados, vão para o purgatório, onde passam algum tempo antes de ir para o céu.<br />Uma das maneiras de os vivos ajudarem os mortos a saí¬rem do purgatório é oferecer missas em seu nome. Para Gregório, a missa é um sacrifício em que Cristo é imolado de novo. E diz a lenda que, em certa ocasião em que esse papa celebrava a missa, o Crucificado lhe apareceu. Esta idéia da missa como sacrifício, que talvez poderia ser deduzida de alguns textos de Agostinho, mesmo que forçando-os, é parte fundamental da devoção e da teologia de Gregório.<br />Conta-se que quando Gregório ainda era abade de Santo André ficou sabendo que um dos seus monges, que estava à beira da morte, tinha escondido algumas moedas de ouro. A sentença do abade foi dura: o monge pecador morreria sem escutar uma palavra de perdão ou consolo, e seria enterrado em um monte de esterco, junto com seu ouro. Depois de cumprida esta sentença, e para salvação da alma de Justo (este era o nome do monge), Gregório ordenou que durante os próximos trinta dias a missa do mosteiro fosse lida em memória a ele. Findado este período, o abade declarou que, de acordo com uma visão que o monge Copioso, irmão carnal do falecido, tivera, a alma de Justo tinha saído do purgatório e estava agora na glória.<br />Tudo isto não foi invenção de Gregório. Era mais parte do ambiente e das crenças da época. Porém, enquanto os antigos mestres da igreja haviam se esforçado para evitar que a doutrina cristã fosse contaminada com superstições populares, Gregório simplesmente aceitou todas as crenças, superstições e lendas da sua época como se fossem verdade evangélica. <br />Suas obras estão cheias de narrações de milagres, aparições de defuntos, anjos e demónios, e outras coisas anti-bíblicas. Quando, com o correr do tempo, a produção literária de Gregório passou a ter a mesma autoridade infalível que tinha tido a de Santo Agostinho, boa parte das crenças populares do século sexto foi realmente incorporada à doutrina cristã.<br />Os sucessores de Gregório<br />Os papas que seguiram a Gregório mostraram-se incapazes de continuar a sua obra. Seu sucessor imediato, Sabiniano, achou ser prudente vender a bom preço o trigo que Gregório tinha distribuído gratuitamente. Quando os pobres se queixaram, dizendo que somente os ricos podiam comer, enquanto eles morriam de fome, Sabiniano começou uma companha de difamação contra Gregório, dizendo que ele tinha utilizado o património da igreja para se fazer popular. <br />A reação foi que começou uma campanha pública contra o papa reinante. Pedro, o Diácono, admirador fiel de Gregório, declarou que, ainda em vida deste, tinha visto o Espírito Santo, em forma de pomba, sussurrando-lhe ao ouvido. A partir de então, boa parte da iconografia cristã tem apresentado Gregório com uma pomba sobre seu ombro. Quando Sabiniano morreu, antes de completar dois anos de pontificado, dizia-se que Gregório lhe tinha aparecido três vezes, sem que o papa lhe desse atenção, e que na quarta aparição, o espírito de Gre¬gório se enfureceu tanto que matou Sabiniano com um golpe na cabeça.<br />O próximo papa, Bonifácio III, conseguiu que o imperador Focas lhe concedesse o título de "bispo universal", que Gregório tinha recusado. Mais tarde, outros papas citaram esse precedente para dizer que a igreja bizantina também chegou a reconhecer a supremacia de Roma. Porém o fato é que o imperador Focas, que deu este título a Bonifácio, era um usurpador, e que a única razão de ele honrar assim o papa era que ele estava aborrecido com o patriarca de Constantinopla, que por algum tempo havia se chamado de "bispo universal". Em todo caso, o papado de Bonifácio III não durou um ano, e quando o imperador Focas morreu, o patriarca de Constantinopla voltou a usar o cobiçado título.<br />De 607 a 625, houve uma sucessão de três papas que conseguiram restaurar parte da glória que o papado tinha perdido: Bonifácio IV, Deodato e Bonifácio V. Estes pontífices voltaram â vida austera que Gregório tinha levado, e em meio às vicissitudes da época puderam fazer algumas reformas na disciplina eclesiástica e organizar a igreja inglesa de acordo com os padrões romanos.<br />Durante o próximo papado, entretanto, começaram a aparecer as consequências funestas da relação estreita que existia entre Roma e Constantinopla. Como vimos, desde o tempo de João Crisóstomo os imperadores de Constantinopla tinham se acostumado a ter a última palavra em questões eclesiásticas. <br />No Ocidente a situação era bem diferente, pois frequentemente não houvia um poder civil efetivo. No século VII, já que não havia imperador no Ocidente, e a Itália estava na esfera de influência de Constantinopla, os imperadores orientais quiseram impor sua vontade sobre os papas, assim como o tinham feito com os patriarcas de Constantinopla. O papa Honório, sucessor de Bonifácio V, teve de enfrentar a questão do monotelismo, doutrina que discutiremos depois, e que o imperador Heráclio apoiava. Pressionado pelo imperador, o papa se declarou monotelista. Quando depois de muitas controvérsias a questão foi resolvida no concílio de Constantinopla, em 680, o papa Honório, que tinha morrido quarenta anos antes, foi declarado herege.<br />Enquanto isso, os sucessores de Honório tinham se mostrado mais firmes diante da doutrina monotelista e das pretensões imperiais. Só que tiveram de pagar um preço alto por essa firmeza. Durante o papado de Severino, em 640, o exarca de Ravena, que era o principal representante imperial na Itália, tomou Roma e se apossou dos tesouros da igreja. Uma parte da presa foi enviada para Constantinopla, e os clérigos que protestaram foram exilados.<br />Pouco depois, o papa Martim sofreu consequências semelhantes. Na época, em Constantinopla reinava Constante II, que quis encerrar o assunto e simplesmente proibiu qualquer debate sobre ele. Ao papa isso pareceu uma usurpação de poder por parte do imperador, e ele convocou um concílio que se reuniu em Latrão e condenou o monotelismo, em franca desobediência ao mandato imperial. O resultado foi que as tropas do exarcado de Ravena sequestraram o papa, que foi levado para Constantinopla, e dali para o exílio, onde morreu. <br />O monge Máximo, que tinha apoiado o papa decididamente, foi enviado ao exílio, depois de serem cortadas a língua e a mão direita dele, para que não pudesse difundir as suas supostas heresias. Depois desta mostra do poder imperial, os sucessores de Martim obedeceram às ordens de Constante, e guardaram silêncio em relação ao monotelismo. Quando afinal o concílio de Constantinopla se reuniu em 680, isto foi possível porque as circunstâncias políticas tinham mudado, e o novo imperador queria chegar a um acordo mais aceitável para a igreja ocidental. A isso seguiu-se um período de paz entre Roma e Constantinopla, durante o qual a primeira se submeteu à segunda, ao que parece sem nenhum protesto.<br />O conflito entre o Império oriental e a igreja do Ocidente surgiu de novo quando do concílio que o imperador Justiniano II convocou em fins do século VII, que é conhecido como concílio "em Trulho", por ter se reunido num dos salões do palácio imperial que recebia este nome. Entre outras coisas, tratou-se ali do casamento dos clérigos. Na época tinha se estabelecido o costume, tanto no Oriente como no Ocidente, de os clérigos serem proibidos de casar depois de sua ordenação. Porém enquanto no Oriente os homens casados tinham permissão de continuar a vida matrimonial depois da ordenação, no Ocidente, em tais casos eles eram proibidos de qualquer ato sexual. <br />O concílio em Trulho rejeitou o costume ocidental, declarando que não há base na Escritura para proibir aos clérigos casados que continuem tendo relações sexuais com suas esposas. O papa Sérgio se negou a aceitar as decisões do concílio, e insistiu em que todos os clérigos deveriam ser celibatários. Justiniano tentou tratá-lo, assim como seu antecessor tinha tratado Martim; porém o povo romano se rebelou, e os oficiais imperiais teriam ficado em maus lençóis se o papa não tivesse intervindo junto ao povo, pedindo-lhe moderação.<br />Justiniano se preparava para se vingar desse insulto quando foi deposto. Quando afinal conseguiu voltar ao trono, ele começou uma vingança sistemática contra todos que se tinham oposto a ele no período anterior. Como o papa Sérgio tinha morrido, e o imperador não podia se vingar dele, insistiu em que o novo papa, Constantino, aceitasse os decretos do concílio em Trulho. <br />Com este propósito em mente, ele chamou o papa a Constantinopla. Dando provas de uma coragem fora do comum, Constantino aceitou o convite do imperador. Não sabemos no que consistiram as conversações entre o imperador e o papa. O fato é que este último, apesar de ter de se humilhar diante do primeiro, voltou a Roma com o favor imperial, e não se viu obrigado a aceitar os decretos do discutido concílio. Pouco depois o imperador foi deposto e decapitado. Quando sua cabeça foi enviada a Roma, o povo a arrastou pelas ruas.<br />O sucessor do papa Constantino, Gregório II, também entrou em choque com a corte de Constantinopla. A causa das novas desavenças foi a questão das imagens, de que trataremos depois, que foi principalmente uma contro¬vérsia dentro da igreja oriental. Uma vez mais o papa recebia ordens do imperador, que lhe ditava o curso que deveria seguir em assuntos ao que parece puramente religiosos. <br />Nesse caso, o imperador ordenou que nas igrejas as imagens dos santos não fossem mais veneradas. Em todo caso o que importa aqui é que houve de novo uma ruptura entre Roma e Constantinopla, pois o papa e seus seguidores se negaram a obedecer ao mandato imperial. Tanto Gregório II quanto seu sucessor, Gregório III, convocaram concílios que se reuniram em Roma e que condenaram os "iconoclastas" (como eram chamados os que se opunham às imagens). <br />O imperador, enfurecido, enviou uma grande esquadra contra Roma. Porém esta foi envolvida por uma grande tempestade, e boa parte da frota imperial naufragou. Pouco antes, os muçulmanos tinham tomado várias das províncias mais ricas do Império, e se apossado também de toda a costa sul do Mediterrâneo. Todos estes desastres marcaram o fim da influência de Cons¬tantinopla sobre o Mediterrâneo ocidental. <br />Quanto ao que se refere ao papado, esta mudança de circunstâncias podemos ver no fato de que, até Gregório III, a eleição de um novo papa não era considerada válida enquanto não ratificada pelo impe¬rador, ou por seu representante em Ravena. Depois de Gregó¬rio ninguém mais buscou esta ratificação.<br />Essa nova situação fez necessária uma mudança radical na política internacional dos papas. Depois da destruição da frota bizantina, ao mesmo tempo que o papa se sentiu alivia¬do, pois a ameaça desaparecera, viu-se também assediado pelo crescente poder dos lombardos, que durante várias gerações vinham tentando transformar-se em donos absolutos da Itália. <br />As tropas imperiais tinham sido o principal obstáculo às ambições dos lombardos. Agora que estas tropas tinham ido embora, o que o papa podia fazer para impedir que seus antigos inimigos se apossassem de Roma? A resposta era clara. Além dos Alpes os francos tinham se transformado em uma grande potência. Pouco antes, seu chefe, Carlos Martel, tinha detido o avanço dos muçulmanos ao derrotá-los na batalha de Tours ou Poitiers. Então, por que não pedir a quem tinha salvo a Europa do islã que salvasse agora Roma dos lombardos? Este foi o pedido que Carlos Martel recebeu do papa, junto com a promessa de ser nomeado "cônsul dos romanos". <br />Mesmo sendo impossível saber se Gregório se apercebeu da magnitude do passo que estava dando, o fato é que naquela carta do papa ao mordomo do palácio dos francos vários precedentes estavam sendo criados. O papa estava se dirigindo a Carlos Martel e lhe oferecendo honras que tradicionalmente só o imperador, ou o senado romano, podiam outorgar, e o fazia sem consultar Constantinopla. <br />Gregório estava agindo mais como estadista autônomo do que como súdito do Império ou como líder espiritual. Por outro lado, com estas gestões entre Gregório e Carlos Martel estavam sendo dados os primeiros passos para o surgimento de uma Europa Ocidental unida (pelo menos em teoria) sob um papa e um imperador.<br />Nisso estavam as coisas quando morreram Gregório e Carlos Martel. Luitprando, o rei dos lombardos, tinha desistido de atacar os territórios romanos, talvez porque sabia das negociações empreendidas com os francos e não queria provocar a inimizade de vizinhos tão poderosos. Porém, quando Carlos Martel morreu, seu poder foi dividido entre seus dois filhos, e Luitprando começou novamente a avançar contra Roma e Ravena.<br />O novo papa, Zacarias, não tinha outro recurso que o prestígio do seu cargo. Assim como Leão se pôs diante do avanço de Átila, Zacarias dispôs-se a enfrentar Luitprando face a face. A entrevista teve lugar na igreja de São Valentim, em Terni, e Luitprando devolveu ao papa todos os territórios recentemente conquistados, além de várias cidades que os lombardos já dominavam havia três décadas. <br />Zacarias regressou a Roma em meio às aclamações do povo, que fez uma procissão de ação de graças até a basílica de São Pedro. Quando Luitprando atacou Ravena, Zacarias foi novamente falar com ele, e outra vez conseguiu uma paz vantajosa.<br />Depois da morte de Luitprando, entretanto, seus sucessores estavam menos dispostos a se dobrarem diante da autoridade, ou das súplicas do papa, e foi então que Zacarias concordou com a deposição do rei franco Childerico III, "o estúpido", e com a coroação de Pepino, o filho de Carlos Martel. Deste modo continuava a política estabelecida por Gregório III, de se aliar com os francos diante da ameaça dos lombardos.<br />Zacarias morreu no mesmo ano da coroação de Pepino (752), porém seu sucessor, Estêvão II, logo teve oportunidade para cobrar a dívida de gratidão que o novo rei franco tinha contraído com Roma. Ameaçado pelos lombardos, Estêvão viajou até a França, onde ungiu de novo o rei e seus filhos, ao mesmo tempo que lhes suplicou ajuda contra os lombar¬dos. <br />Duas vezes Pepino invadiu a Itália para defender o papa, e na segunda vez lhe doou não só Roma e arredores, mas também Ravena e outras cidades que os lombardos tinham conquistado, e que tradicionalmente tinham sido governadas por Constantinopla. <br />Apesar dos protestos do imperador, o papa e o rei dos francos não lhe deram ouvidos. O império Bizantino já não era uma potência digna de ser levada em conta no Mediterrâneo ocidental. E o papa agora era soberano temporal de boa parte da Itália. Isso era possível, pelo menos na teoria, porque o imperador que reinava em Constantinopla se tinha declarado contrário às imagens, e por isso não era necessário obedecer-lhe.<br />Quando Estêvão morreu, seu irmão, Paulo, foi seu sucessor, e ocupou a sede pontifícia por dez anos, sempre sob a proteção de Pepino. Porém quando este papa morreu, um duque, vizinho poderoso, se apoderou à força da cidade e nomeou seu irmão Constantino papa. <br />Este é um dos primeiros exem¬plos de uma situação que se repetirá através de toda a Idade Média. Já que agora o papado era uma possessão territorial, e além disto gozava de grande prestígio e autoridade em outras regiões da Europa, muitos o cobiçavam não por razões religiosas, mas puramente políticas. <br />Como não havia um sistema de eleição rigorosamente estabelecido, não faltaram nobres das proximidades, ou famílias poderosas de Roma mesmo, que se apossaram do papado e o utilizaram para seus próprios fins. <br />Neste caso, todavia, Constantino não pôde manter-se no poder, pois alguns romanos apelaram aos lombardos, que intervieram com as armas, depuseram o usurpador, e procederam a uma nova eleição. O papa eleito foi Estêvão III, que empreendeu uma vingança terrível contra os que tinham apoiado a usurpação, vazando-lhes os olhos, mutilando-os e encarcerando-os.<br />Pouco depois morreu Pepino, o rei dos francos, e seus filhos Carlos (Carlos Magno) e Carlomão lhe sucederam, divi¬dindo o reino. Quando Carlomão morreu em 771, Carlos Magno se apossou dos territórios do seu irmão, deserdando a seus sobrinhos. Isso não era totalmente irregular, pois entre os francos a coroa não era estritamente hereditária, mas eletiva. Apesar do costume de herdar os territórios ter surgido através das gerações, quando da morte de Carlomão, os nobres do seu reino deveriam pelo menos ter a chance de eleger seu sucessor ou sucessores. Carlos Magno fez isto, sabendo que os nobres do reino do seu falecido irmão preferiam a ele por rei, aos fracos e inexperientes filhos de Carlomão. <br />Estes se refugiaram na corte de Desidério, rei dos lombardos, que se fez defensor de sua causa. O resultado de tudo isso foi uma aliança ainda mais estreita entre o papa, na época Adriano, e Carlos Magno.<br />Desidério decidiu aproveitar uma oportunidade em que Carlos Magno estava envolvido em outras guerras fronteiriças para atacar alguns dos estados pontifícios. Porém Carlos Magno atravessou inesperadamente os Alpes e infligiu tantas derrotas aos lombardos que a força destes ficou seriamente abalada. <br />Em um ato solene Carlos Magno confirmou a doação de territórios que seu pai Pepino tinha feito ao papa. Isto ocorreu no ano 774. A partir de então, Carlos Magno visitou por diversas vezes a cidade papal.<br />Uma destas visitas teve lugar em fins de 800. O sucessor de Adriano, Leão III, tinha sido atacado fisicamente por uma das famílias poderosas de Roma, que desejava o papado para um dos seus membros. Leão atravessou os Alpes e pediu socorro a Carlos Magno, que voltou novamente a Roma, escutou os argumentos de ambas as partes, e se decidiu a favor do papa. No dia de Natal, Leão presidiu o culto solene, estando presentes Carlos Magno, toda sua corte e seus principais oficiais, bem como uma enorme multidão do povo romano. No fim do culto, o papa tomou uma coroa, andou até. onde estava o rei, coroou-o, e proclamou: "Deus dê vida e vitória ao grande e pacífico imperador!"<br />Ao ouvir estas palavras todos os presentes irromperam em vivas e aclamações, enquanto o papa ungia o novo imperador.<br />Era um ato sem precedentes. Até poucas gerações antes, a eleição de cada novo papa não era válida enquanto não fosse confirmada pelo imperador de Constantinopla. Agora um papa se atrevia a coroar um rei com o título de imperador. E o fazia sem consulta prévia ao Império Oriental. <br />É impossível saber com certeza quais eram os propósitos específicos de Leão ao outorgar a Carlos Magno a dignidade imperial. Uma coisa, porém, estava clara. Desde o tempo de Rômulo Augústulo não houvera imperador no Ocidente. Em teoria, o imperador de Constantinopla o era de todo o Império Romano. Porém, na verdade, o governo imperial fora efetivo no Ocidente somente em algumas regiões da África e da Itália. E também nestas, sua autoridade foi ignorada frequentemente. Em tempos mais recentes os muçulmanos tinham conquistado os territórios imperiais da África, e por diversas razões a autoridade do imperador na Itália tinha sido limitada ao extremo sul da península. Agora, em virtude da ação de Leão, havia um imperador no Ocidente, e o papado se colocava definitivamente fora da jurisdição do Império do Oriente. Havia nascido a cristandade ocidental.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-63615065212606136622007-06-13T05:50:00.000-07:002009-05-06T04:23:39.911-07:00História da Igreja - Parte 13A Era das Trevas<br />Sob o regime dos bárbaros<br />O velho Império Romano estava moribundo, e não o sabia. Além das suas fronteiras do Reno e do Danúbio, agitava-se uma multidão de povos, prontos para irromper nos territórios romanizados. Estes povos, aos quais os romanos chamavam de "bárbaros", seguindo o exemplo dos gregos, tinham habitado as florestas e estepes da Europa Oriental durante séculos. Desde seu início o Império Romano fora constantemente obrigado a proteger suas fronteiras contra as incursões dos bárbaros. Para isso, construiu fortificações acompanhando o Reno e o Danúbio e, na Grã-Bretanha, uma muralha que separava os territórios romanizados dos que permaneciam em mãos de bárbaros. Para facilitar a defesa, repartiram as terras entre os soldados que vi¬viam nelas como colonos, em condições de correr ao campo de batalha se fosse necessário.<br />Deste modo, o Império Romano conseguiu defender suas fronteiras até meados do século IV. Porém, a partir de então, a defesa ficou cada vez mais difícil, até que por fim toda a parte ocidental do Império sucumbiu diante das vagas de invasores.<br />Em resumo, em fins do século V, a parte ocidental do Im¬pério Romano estava dividida entre uma série de reinos bárbaros. Destes, os mais importantes eram o dos vândalos no norte da África, dos visigodos na Espanha, os sete reinos dos anglos e dos saxões na Grâ-Bretanha, o dos francos na Gália, e o dos ostrogodos na Itália. Aqui, dois esclarecimentos são de grande importância para o curso futuro da história da igreja.<br />O primeiro destes esclarecimentos é que os diversos chefes, ou reis bárbaros, não se consideravam independentes do Império Romano. Muitos deles tinham cruzado as fronteiras com permissão do Império, para estabelecer-se como "federados". <br />Outros, mesmo a princípio sendo invasores, tinham colocado suas ar¬mas a serviço do Império contra algum outro povo bárbaro. E todos continuavam declarando que eram súditos do Império Romano. Seu propósito não tinha sido destuir a civilização romana, mas participar dos seus benefícios. Por isso, mesmo se muitas vezes suas campanhas e políticas destruíram grande parte desta civilização, a longo prazo quase todos os povos estabelecidos no velho Império acabaram por romanizar-se. <br />Isso pode ser visto, até os nossos dias, nos indiomas falados em Espanha, Portugal, França e Itália, cujas raízes se encontram muito mais na língua latina que nas dos bárbaros.<br />O segundo esclarecimento é que muitos destes invasores eram cristãos. No século IV, quando os godos se encontravam ao norte do Danúbio, havia entre eles missionários provenientes da parte oriental do Império Romano. O mais famoso deles, de quem só sabemos o nome godo, Ulfila, tinha inventado uma maneira de escrever a língua gótica e traduzido as Escrituras para ela. <br />Além disso, no tempo do imperador Constâncio, estivera em Constantinopla um forte contingente de soldados godos a serviço do Império. Muitos desses soldados se tornaram cristãos e depois regressaram ao seu povo com sua fé. Já que todos esses contatos tiveram lugar na época do apogeu do arianismo no Oriente, os visigodos se converteram a esta forma de fé cristã. Através deles também os ostrogodos, os vândalos e outros povos bár¬baros se tornaram cristãos arianos. <br />A falta de documentos impede que conheçamos os detalhes desta rápida e enorme expansão do cristianismo além das fronteiras do Império. Se os conhecêssemos, provavelmente, seriam das mais interressantes páginas da história da igreja. Em todo caso, o fato é que muitos dos bárbaros que no século V se estabeleceram na África, Espanha e Itália eram arianos.<br />Isso trouxe consequências sérias, pois até então, a questão do arianismo nunca havia sido discutida na parte ocidental do Império, como o fora na parte oriental. <br />Por isso, boa parte da história da igreja, durante os séculos V e VI, consiste no con¬flito entre o arianismo e a fé católica. O modo com que aqui usamos o termo "fé católica" não se refere ao catolicismo ro¬mano atual, mas simplesmente à fé dos que aceitavam a doutri-na trinitária que tinha sido promulgada nos concílios de Nicéia e de Constantinopla. <br />Neste sentido, tanto os protestantes quanto os católicos romanos do século XXI sustentam a "fé católica" frente ao arianismo. O que estava em jogo era, primeiro, se os arianos obrigariam os católicos a se converter, ou vice-versa; e, segundo, se os bárbaros que ainda eram pagãos se tornariam católicos ou arianos.<br />Assim, os séculos V a VIII foram um período de obscuridade e angústia na Europa Ocidental. As invasões dos bárbaros puseram um fim ao poderio efetivo do Império Romano na região, mesmo considerando-se que, durante séculos, muitos destes mesmos bárbaros continuassem a agir como se súditos fossem do Império agonizante.<br />Do ponto de vista religioso, os bárbaros reintroduziram na Europa Ocidental os elementos que pouco antes pareciam estar quase desaparecidos: o paganismo e o arianismo. Quase todos os invasores eram arianos: os vândalos, os visigodos, os ostrogodos, os suevos, os burgúndios e os lombardos. <br />Com o passar do tempo, esses povos ou desapareceram (os ostrogodos e os vândalos), ou se tornaram católicos (os suevos, os visigodos e os burgúndios). Quanto aos povos pagãos, todos se tornaram católicos. Mas algumas destas conversões foram resultado da pressão exercida por algum povo vizinho. Porém, na maior parte, foram simplesmente o resultado do processo de assimilação que ocorreu depois das invasões. <br />Os bárbaros não penetraram no Império para destruir a civilização romana, mas para participar dela. Por essa razão, a maioria deles logo esqueceu as línguas bárbaras e começou a falar (mal ou bem) o latim. Esta é a origem das nossas línguas latinas modernas. <br />De igual modo, os bárbaros abandonaram suas antigas crenças e acabaram por aceitar as dos povos conquistados. Esta é a origem do cristianismo ocidental, do tipo que a Idade Média conheceu. <br />Em todo esse processo, existe dois elementos da vida da igreja que se destacam por sua importância na conversão dos bárbaros e na preservação da cultura antiga. Esses dois elemen¬tos são o monasticismo e o papado. <br /><br />O monasticismo<br />Vimos anteriormente que quando a igreja se uniu ao Império e tornou-se a igreja dos poderosos, houve muitos que, sem abandoná-la, se separaram dela para levar uma vida de renúncia especial, o que deu origem ao monasticismo. Se bem que naquela oportunidade vimos como o ideal monástico se propagou do Oriente de fala grega até o Ocidente de fala latina, na verdade, naquela época, o monasticismo ainda era um fenômeno principalmente oriental, cujos centros mais importantes eram Egito, Síria e, algum tempo mais tarde, Capadócia. Os monges que existiam no Ocidente somente imitavam o que tinham aprendido, ou ouvido, dos monges do Oriente.<br />O monasticismo oriental, todavia, não se adaptava de todo à Europa Ocidental. Além das diferenças de clima, que impediam que os monges ocidentais levassem a mesma vida que levavam os do Egito, havia diferenças significativas na maneira de encarar a vida cristã e a função do monasticismo nela.<br />A primeira dessas diferenças provinha do espírito prático que os romanos tinham deixado como seu legado à igreja ocidental. O cristianismo latino não via com bons olhos os exces¬sos da vida ascética dos anacoretas do Oriente. O propósito da vida ascética, assim como de qualquer exercício atlético, não é destruir o corpo, porém fazer com que ele seja cada vez mais capaz de enfrentar todos os tipos de provas. Por isso, o Ocidente não via com aprovação o jejum até o desfalecimento, ou a falta de dormir, só para castigar o corpo.<br />Além disso, como parte deste espírito prático, boa parte do monasticismo ocidental tinha o propósito de levar a cabo a obra de Deus, e não só de conseguir a própria salvação. Muitos monges do Ocidente usaram a disciplina monástica como um modo de se preparar para a obra missionária. Exemplo disto são Columba e Agostinho, e houve milhares de monges que seguiram o caminho traçado por eles. Outros monges ocidentais lutavam contra as injustiças e os crimes do seu tempo. Símbolo destes é Telêmaco, o monge que em princípios do século V se lançou ao meio de um combate de gladiadores, na arena do circo romano, para detê-lo. A multidão enfurecida, supostamente cristã, o matou. Porém a partir desta data, e em consequência da ação de Telêmaco, os combates de gladiadores foram proibidos pelo imperador Honório.<br />Outra diferença entre o monasticismo grego e o latino é que este último nunca sentiu a enorme atração pela vida solitária que dominou boa parte do monasticismo oriental. Apesar de haver no Ocidente alguns ermitões solitários, e de alguns dos mais famosos monges ocidentais praticarem por algum tempo este tipo de vida, a grosso modo, o ideal do monasticismo ocidental foi a vida em comunidade.<br />Por último, o monasticismo ocidental poucas vezes viveu a tensão constante com a igreja hierárquica que caracterizou o monasticismo oriental, principalmente nos primeiros tempos. <br />Até os dias de hoje o monasticismo segue seu próprio rumo nas igrejas orientais, prestando pouca atenção à vida da igreja em geral, a não ser quando algum monge é chamado para ser bispo. No Ocidente, ao contrário, a relação entre o monasticismo e a igreja hierárquica sempre tem sido estreita. A não ser nos momentos em que a corrupção extrema da hierarquia levava os monges a reformá-la, o monasticismo foi sempre o braço direito da hierarquia eclesiástica. Em mais de uma ocasião os monges reformaram a hierarquia, ou a hierarquia reformou o monasticismo decadente.<br />De certo modo o monasticismo ocidental encontrou seu fundador em Benedito de Núrsia. Antes dele, houve muitos monges da igreja ocidental, porém somente ele conseguiu dar ao monasticismo latino o seu próprio sabor, de tal modo que depois dele o monasticismo não foi mais algo importado do Oriente grego, mas uma planta autóctona.<br />Benedito nasceu na pequena aldeia italiana de Núrsia, por vojta do ano de 480. Para colocarmos sua vida dentro do quadro de acontecimentos, recordemo-nos que Odoacro depôs o último imperador do Ocidente em 476, e que em 493, quando Benedito começava sua adoles¬cência, toda a Itália estava nas mãos dos ostrogodos. A família de Benedito pertencia à velha aristocracia romana, e é de se supor que ele presenciou, durante sua mocidade, as tensões entre católicos e arianos que caracterizaram esta época na Itália.<br />Quando tinha mais ou menos vinte anos de idade, Benedito se retirou para viver sozinho em uma caverna, onde se dedicou a um tipo de vida extremamente ascético. Levava ali uma luta contínua contra as tentações. Seu biógrafo, Gregório, o Grande, nos conta que nessa época o futuro criador do monasticismo beneditino se sentiu dominado por uma grande tentação carnal. Uma mulher formosa, que ele havia visto anteriormente, se apresentou em sua imaginação com tanta nitidez que Benedito não conseguia conter sua paixão e chegou a pensar em abandonar a vida monástica. Então, nos diz Gregório:<br />"... ele recebeu uma repentina iluminação do alto, recobrou os sentidos, e ao ver uma moita de espinheiros e urtigas tirou toda a roupa e se lançou aos espinhos e ao fogo das urti¬gas. Depois de se revolver ali durante muito tempo, saiu todo ferido ... A partir de então nunca voltou a ser tentado de maneira igual."<br />Excessos como esse, entretanto, não eram característicos do jovem monge, para quem a vida monástica não consistia em destruir o corpo, mas em fazê-lo apto para ser um instrumento no serviço de Deus.<br />Em pouco tempo, a fama de Benedito era tal que um numeroso grupo de monges se reuniu a ele. Benedito os organizou em grupos de doze. Essa foi sua primeira tentativa de organizar a vida monástica, que teve de ser interrompida quando algumas mulheres dissolutas invadiram a região.<br />Benedito então se retirou para Montecasino com seus mon¬ges, um lugar tão remoto que ainda havia um bosque sagrado ali, e os habitantes do lugar continuavam oferecendo sacrifícios em um antigo templo pagão. <br />A primeira coisa que Benedito fez foi por um fim a tudo isto, derrubando as árvores, o altar e o ídolo do templo. Depois, organizou ali uma comunidade monástica para homens, perto de outra que sua irmã gémea, Escolástica, fundou para mulheres. Ali sua fama era tamanha que vinha gente de todo o país para visitá-lo. Entre esses visitantes se encontrava o rei ostrogodo Totila, a quem Benedito repreendeu, dizendo-lhe: — "Fazes muitas coisas más, e já tens feito mais. Chegou o momento de parar com estas iniquidades... Reinarás ainda por nove anos, e morrerás no décimo". <br />E, de acordo com o que diz o biógrafo de Benedito, Gregório, o Grande, Totila morreu no décimo ano do seu reinado, como o monge havia predito.<br />Porém a fama de São Benedito não se deve às suas profecias, nem à sua prática ascética, mas à Regra deu à comunidade de Montecasino, em 529, e que em pouco tempo passou a ser a base de todo o monasticismo ocidental.<br />A Regra de São Benedito<br />O enorme impacto desta Regra não proveio da sua extensão, pois ela continha somente setenta e três breves capítulos. O impacto proveio do fato de que a Regra ordena a vida monástica de forma concisa e clara, de acordo com o temperamento e as necessidades da igreja ocidental.<br />Comparada com os excessos de alguns monges do Egito, a Regra é um modelo de moderação em tudo o que se refere à prática ascética. No prólogo, Benedito diz a seus leitores que "se trata de constituir uma escola para o serviço do Senhor. Nela não queremos instituir nenhuma coisa áspera nem severa". <br />Em consequência, em toda a Regra domina um espírito prático, às vezes até transigente. Assim, por exemplo, enquanto que muitos monges do deserto se alimentavam somente de água, pão e sal, Benedito estabelece que seus monges devem se alimen¬tar duas vezes por dia, e que em cada refeição deverá haver dois pratos cozidos e às vezes outro de legumes ou frutas frescas. Além disto cada monge recebia um quarto de litro de vinho por dia. Tudo isso, é claro, somente quando não havia escassez, pois nesse caso os monges deveriam se contentar com o que havia, sem queixas ou murmurações. <br />De igual modo, enquanto que os monges do deserto dormiam o menos possível, e da maneira mais desconfortável possível, Benedito prescreve que cada monge deverá ter, além do seu leito, uma coberta e um travesseiro. Ao distribuir as horas do dia, ele separa de seis a oito para o sono.<br />Porém, em meio à sua moderação, há dois elementos em que Benedito se mostra firme. Estes dois são permanência e obediência. Permanência quer dizer que os monges não devem andar vagando de um mosteiro para outro. Pelo contrário, de acordo com a Regra, cada monge deverá permanecer o resto de sua vida no mesmo mosteiro em que fez seus votos, a menos que por alguma razão o abade o envie a outro lugar. Isso pode parecer tirania, porém Benedito queria remediar uma situação em que muitos se dedicavam a ir de mosteiro em mosteiro, desfrutando de hospitalidade por algum tempo, até que começava-se a exigir deles que levassem junto com os demais monges as cargas do lugar, ou até que começassem a ter conflito com o abade ou com outros monges. Então, em vez de assumir sua responsabilidade, ou de resolver seus conflitos, eles iam para outro mosteiro, onde em pouco tempo surgiam os mesmos problemas. <br />A permanência foi, assim, uma das características da Regra que mais fez sentir seu impacto, pois deu estabilidade à vida monástica.<br />A obediência é outro dos pilares da Regra de São Benedito. Todos devem obediência ao abade "sem demora". Isto quer dizer que o monge não só deve obedecer, mas que deve fazer todo o possível para que esta obediência seja de bom grado. Queixas e murmurações estão absolutamente proibidas. Se em algum caso o abade ou outro superior ordena a algum monge que faça algo aparentemente impossível, este lhe exporá com todo o respeito as razões pelas quais não pode cumprir a ordem. Porém, se depois da explicação, o abade insistir, o monge tratará de fazer com boa disposição o que lhe foi ordenado.<br />O abade, entretanto, não deverá ser um tirano, pois o título "abade" é o mesmo que "pai". Como pai ou pastor das almas que se dedicaram, o abade terá de prestar contas delas no juízo final. Por isso, sua disciplina não deverá ser excessivamente severa, pois seu intento não é mostrar poder, mas trazer os pecadores novamente para o caminho certo.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-30510220545192738962007-06-13T05:24:00.000-07:002009-05-06T04:08:59.363-07:00História da Igreja - Parte 12Gigantes da Fé <br />Ambrósio de Milão e Outros<br />Entre os muitos gigantes cristãos que o século IV produziu, nenhum levou uma vida tão interessante como Ambrósio de Milão.<br />Sua eleição para o bispado<br />O ano era 373, quando a morte do bispo de Milão veio turbar a paz desta grande cidade. Auxêncio, o bispo falecido, tinha sido posto neste cargo por um imperador ariano, que havia enviado para o exílio o bispo anterior. Agora a sede estava vaga, e a eleição ameaçava transformar-se em um tumulto que poderia ser sangrento, pois tanto os arianos como os nicenos estavam decididos a fazer com que um dos seus fosse eleito.<br />Para evitar derramamento de sangue, Ambrósio, o governador da cidade, foi pessoalmente à igreja onde seria realizada a eleição. Seu governo justo e eficiente lhe tinha conquistado as simpatias do povo. Natural de Tréveris, Ambrósio era filho de um alto funcionário do Império, e por isto esperava que sua carreira política o levasse a posições cada vez mais elevadas. Mas para que sua carreira não fosse arruinada era necessário evitar uma desordem violenta na eleição do novo bispo de Milão.<br />Com isso em mente, Ambrósio foi à igreja, pediu a palavra e começou a exortar o povo com a eloquência que mais tarde o faria famoso. À medida que Ambrósio falava a multidão se acalmava, dando a impressão de que os esforços do governador teriam bom êxito.<br />De repente um menino gritou: "Ambrósio bispo!" Inespe¬radamente o povo também começou a gritar: "Ambrósio bispo! Ambrósio bispo! Ambrósio! Ambrósio! Ambrósio!"<br />Para Ambrósio este grito da multidão podia significar o fim de sua carreira política. Por isso ele abriu passagem entre o povo, foi até o pretório e condenou diversos presos à tortura, na esperança de perder sua popularidade. O populacho, porém, o seguia e não se deixava convencer. Então o jovem governador mandou trazer para sua casa mulheres de má fama, para assim destruir a opinião que o público tinha dele. Mas o povo continuava na frente de sua casa, e continuava gritando que queria que Ambrósio fosse seu bispo. Duas vezes ele tentou fugir da cidade, ou se esconder, mas seus esforços fracassaram. Por fim, rendendo-se à insistência do povo e à ordem imperial, ele concordou em ser o bispo de Milão.<br />Ambrósio, todavia, nem sequer tinha sido batizado, pois naquela época muitas pessoas — especialmente as que ocupavam cargos públicos elevados — demoravam seu batismo até o final dos seus dias. Por isso foi necessário começar batizando-o. Depois, no transcurso de uma semana, ele foi feito sucessivamente leitor, exorcista, acólito (aquele que acompanha e serve, na Igreja Católica, aos ministros superiores), subdiácono, diácono e pres¬bítero, até que foi consagrado bispo oito dias depois, no dia primeiro de dezembro de 373.<br />O pastor de Milão<br />Ambrósio não quis ser bispo, mas, a partir do momento em que aceitou o cargo, ele se dedicou a cumprir cabalmente suas funções. Para ajudá-lo no trabalho administrativo da igreja ele chamou para junto de si seu irmão Urânio Sátiro, que era governador de outra província. Fez vir também o presbítero Simpliciano, que anos antes lhe tinha ensinado os rudimentos da fé cristã, para que fosse seu mestre de teologia. Sendo um homem culto, e dedicando-se com assiduidade ao estudo, Ambrósio em pouco tempo veio a ser um dos melhores teólogos da igreja ocidental. Urânio Sátiro morreu pouco depois em consequência de um naufrágio, mas, no tempo que passou com Ambrósio, ele ajudou o novo bispo a pôr seus assuntos em ordem, e a tomar nas mãos as rédeas da igreja que lhe coube dirigir.<br />Pouco depois da morte de seu irmão, os acontecimentos deram a Ambrósio ocasião de mostrar a maneira em que entendia suas responsabilidades pastorais. Um forte contingente godo atravessou as fronteiras do Danúbio com a permissão das autoridades imperiais, mas logo se rebelou e cometeu muitos atos de violência nas regiões a leste de Milão. Em resultado a isto chegaram muitos refugiados à cidade, e muitos cativo; permaneceram presos à espera de resgate. Diante dessa situação Ambrósio mandou fundir e vender uma parte dos tesouros da igreja, para ajudar os refugiados e pagar o resgate dos cativos. Imediatamente os arianos o acusaram de ter cometido um sacrilégio. Ambrósio retrucou:<br />"É muito melhor guardar almas para o Senhor, do que ouro. Porque quem enviou os apóstolos sem ouro, sem ouro reuniu também as igrejas. A igreja não tem ouro para armazená-lo, mas para entregá-lo, para gastá-lo em favor dos que têm necessidades. . . . Melhor é conservar os vasos vivos que os de ouro."<br />Da mesma forma Ambrósio lhes disse, ao escrever sobre os deveres dos pastores, que a verdadeira força consiste em apoiar os débeis contra os poderosos, e que eles devem convidar para suas festas e banquetes não os ricos que podem recompensá-los, mas os pobres, que têm maior necessidade e que não podern lhes oferecer nenhuma recompensa.<br />Ambrósio teve outra oportunidade de pôr esses princípios em prática quando, pouco depois da morte de Valente, o novo imperador, Graciano, condenou um nobre pagão injustamente à morte. O homem em questão não fazia parte da grei de Ambrósio, mas o bispo cria que seus deveres se estendiam além dos membros da sua igreja. Graciano, que provavelmente suspeitava o que Ambrósio queria dele, se negava a lhe conceder audiência. Finalmente, Ambrósio conseguiu entrar às escondidas no lugar onde o imperador estava dando uma exibição de caça, e ali insistiu com ele para que perdoasse a vida do réu. A princípio o imperador e seu séquito se indignaram contra quem interrompia suas diversões. Mas mais tarde, vencido pela coragem do bispo e pela justiça do seu pedido, Graciano perdoou o condenado, e agradeceu a Ambrósio por tê-lo obrigado a fazer justiça.<br />Ambrósio, porém, nunca ficou sabendo do seu triunfo mais importante. Entre seus ouvintes na catedral de Milão estava um jovem intelectual que tinha seguido uma longa peregrinação espiritual. Agora os sermões de Ambrósio foram um dos instru¬mentos que Deus usou para sua conversão. Aquele jovem se chamava Agostinho, e mesmo tendo sido Ambrósio quem o batizou, o bispo de Milão não parece ter notado os dotes excepcionais do novo convertido, que depois viria a ser o mais fa¬moso de todos os "gigantes" da sua época.<br />Ambrosio faleceu no dia 4 de abril de 397, domingo da ressurreição.<br /><br />João Crisóstomo<br />Cem anos depois de sua morte, João de Constantinopla recebeu o título pelo qual o conhecemos hoje: João Crisóstomo — o homem da língua dourada. Esse título era bem merecido, pois em um século que produziu oradores como Ambrósio de Milão e Gregório de Nazianzo, João de Constantinopla se ergueu acima de todos — gigantes acima dos gigantes.<br />Para João, todavia, o púlpito não era simplesmente uma tribuna onde ele oferecia brilhantes peças de oratória. Ele foi antes a expressão oral de toda a sua vida, cenário da sua batalha contra os poderes do mal, vocação insubornável que mais tarde lhe custou o desterro e até a vida.<br />Voz do deserto que clama na cidade<br />Crisóstomo foi monge acima de tudo. Antes de ser monge foi advogado, educado em sua própria cidade natal de Antioquia pelo famoso orador pagão Libânio. Conta-se que quando alguém perguntou ao velho mestre quem deveria ser seu sucessor, ele afirmou: João, mas os cristãos se apossaram dele.<br />Antusa, a mãe de João, era uma cristã fervorosa, e amava seu filho com um amor profundo e possessivo. Aos vinte anos de idade, o jovem advogado solicitou inclusão de seu nome na lista dos que se preparavam para o batismo, e três anos depois, que era o período de preparo exigido então, ele foi batizado nas águas pelo bispo Melécio. Tudo isso era do agrado de Antu¬sa. Mas, quando seu filho comunicou seu propósito de abandonar a cidade e se dedicar à vida monástica, isto foi demais para ela, e ela o fez prometer que ele não a abandonaria enquanto ela vivesse.<br />A resposta de João foi simplesmente organizar um mosteiro em sua própria casa. Ali ele viveu em companhia de três amigos de sentimentos semelhantes até que, morta sua mãe, ele foi viver entre os monges das montanhas da Síria. Quatro anos ele passou aprendendo a disciplina monástica, e outros dois praticando-a com todo o rigor em meio à mais completa solidão. Como ele mesmo diria, esta vida monástica talvez não fosse o melhor preparo para a tarefa pastoral: "Muitos que passam da solidão monástica à vida ativa de sacerdote, ou bispo, se evidenciam completamente incapazes de enfrentar as dificuldades da nova situação".<br />Seja como for, João regressou a Antioquia depois de seus seis anos de retiro monástico, foi ordenado diácono, e pouco depois presbítero. Como tal, ele começou a pregar, e sua fama logo se espalhou por toda a igreja de fala grega.<br />Quando o bispado de Constantinopla ficou vago em 397, João foi obrigado por ordem imperial a ocupar o cargo. Sua popularidade era tão grande em Antioquia que as autoridades mantiveram em segredo o que tramavam. Simplesmente o convidaram a visitar uma capela fora da cidade, e quando estava distante do povo ordenaram-lhe que entrasse na carroça imperial, na qual ele foi levado para Constantinopla contra a sua vontade. Ali ele foi consagrado bispo — ou patriarca, pois o bispo dessa cidade ostentava este título — em princípios de 398.<br />Constantinopla era uma cidade rica, dada ao luxo e às intrigas políticas. Esta situação tinha piorado porque o grande imperador Teodósio tinha morrido, e os dois filhos que lhe tinham sucedido — Honório e Arcádio — eram indolentes e ineptos. <br />Arcádio, que oficialmente governava o Oriente de Constantinopla, por sua vez se deixava governar pelo admi¬nistrador do palácio, Eutrópio, que utilizava seu poder para satisfazer suas próprias ambições e as de seus amigos. Eudóxia, a imperatriz, se sentia humilhada pelo poder do administrador — apesar de dever a ele a possibilidade de ter casado com Arcádio. <br />Na própria escolha de João não faltaram intrigas de que ele mesmo nem sabia, pois Teófilo, o patriarca de Alexandria, tinha feito tudo que podia para colocar no trono episcopal de Constantinopla um alexandrino, e Eutrópio tinha imposto sua vontade e nomeado o antiocano João.<br />O novo bispo de Constantinopla não sabia de nada disso. Até onde conhecemos seu caráter, é bem provável que mesmo tendo conhecimento de tudo ele teria agido como agiu. O antigo monge continuava sendo-o, e não podia tolerar a maneira com que os habitantes ricos de Constantinopla queriam adaptar o evangelho aos seus próprios luxos e comodidades.<br />Seu primeiro objetivo foi reformar a vida do clero. Alguns sacerdotes que diziam ser celibatários tinham em suas casas mulheres que chamavam de irmãs espirituais, e isto escandalizava a muitos. Outros clérigos tinham se tornado ricos, e viviam em tanto luxo como os poderosos civis da grande cidade. As finanças da igreja estavam completamente desorganizadas, e a tarefa pastoral era negligenciada. João logo enfrentou todos estes problemas, proibindo que as "irmãs espirituais" vivessem com os sacerdotes, e exigindo que estes levassem uma vida austera. As finanças foram submetidas a um sistema de controle detalhado. Os objetos de luxo que haviam no palácio do bispo foram vendidos para dar de comer aos pobres. E o clero recebeu ordens para abrir as igrejas durante as tardes, para que as pessoas que trabalhavam pudessem entrar nelas. É desnecessário mencionar que isto tudo, apesar de lhe conquistar o respeito de muitos, também lhe granjeou o ódio de outros.<br />A reforma, no entanto, não poderia ser limitada ao clero. Era necessário que os leigos também levassem uma vida mais de acordo com os princípios evangélicos. Por isso o orador de língua dourada trovejava do púlpito:<br />Esse freio de ouro na boca do teu cavalo, este aro de ouro no braço do teu escravo, esses adornos dourados em teus sapatos, são sinal de que estás roubando o órfão e matando de fome a viúva. Depois de morreres, quem passar pela tua casa dirá: "Com quantas lágrimas ele construiu esse palácio? Quantos órfãos se viram nus, quantas viúvas injuriadas, quantos operários receberam salários injustos?" Assim nem mesmo a morte te livrará dos teus acusadores.<br />Era o monge do deserto que clamava na cidade. Era a voz do cristianismo antigo que não se dobrava às tentações do cristianismo imperial. Era um gigante cuja voz fazia tremer até os fundamentos da sociedade — não por que sua língua era de ouro, mas porque suas palavras eram do alto.<br />As vidas de Crisóstomo e Ambrósio, comparadas, nos são indícios do rumo diferente que a longo prazo as igrejas do Oriente e do Ocidente encetariam. Ambrósio enfrentou o mais poderoso imperador da sua época, e saiu vencedor. Crisóstomo, por sua vez, foi destituído e enviado para o exílio pelo débil Arcádio. A partir do próximo século, a igreja do Ocidente — isto é, a de fala latina — se tornaria cada vez mais poderosa, em meio aos desastres que destruíram o poder do Império. No Oriente, pelo contrário, o Império duraria por mais mil anos. Às vezes forte, outras vezes fraco, esse rebento oriental do velho Império Romano — o chamado Império Bizantino — guardaria com zelo suas prerrogativas sobre a igreja. Teodósio não foi o último imperador do Ocidente que teve de se humilhar diante de um bispo de fala latina. E João Crisóstomo — o da língua de ouro — não foi o último bispo de fala grega enviado para o exílio por um imperador do oriente.<br /><br />Jerônimo<br />Dos gigantes do quarto século nenhum é tão interessante como Jerônimo. Interessante não por sua santidade, como António, o eremita, nem por sua intuição religiosa, como Atanásio, nem por sua firmeza contra a injustiça, nem tampouco por sua devoção pastofal, como Crisóstomo, mas por sua luta gigantesca e interminável com o mundo e consigo mesmo. Mesmo sendo conhecido como "São Jerônimo", ele não era destes santos a quem foi dado gozar nesta vida a paz de Deus. Sua santidade não foi humilde, amável e doce, mas orgulhosa, grosseira e amarga. Jerônimo sempre desejou estar acima do humano, e por isso não tinha paciência com os que lhe pareciam ser indolentes, nem com os que de alguma maneira ousa¬vam criticá-lo. Entre as muitas pessoas que foram objeto dos seus ataques impiedosos estavam não só os hereges, os igno¬rantes e os hipócritas, mas também João Crisóstomo, Ambrósio de Milão, Basílio de Cesaréia e Agostinho de Hipona. Os que se atreviam a criticá-lo eram simplesmente "asnos de duas patas". Mas apesar dessa atitude — e em parte por causa dela — Jerônimo conquistou um lugar entre os gigantes do cristianismo no século IV.<br />Jerônimo nasceu por volta de 348 em um lugar remoto do norte da Itália. Considerando sua data de nascimento, ele era mais novo que muitos gigantes que estudamos. Mas Jerônimo nasceu velho, e por isto logo se considerou muito acima dos seus contemporâneos. E, o que é ainda mais surpre¬endente, muitos deles logo passaram a encará-lo como uma instituição imponente e antiga.<br />Recebeu o batismo quando tinha uns vinte anos de idade, e poucos anos depois decidiu viajar para o Oriente. Jerônimo tinha se dedicado ao estudo das letras, e nesse campo o ocidente latino tinha grande admiração pelo oriente grego. Além disso, ele decidiu se dedicar ao estudo das letras divinas, depois de uma experiência em Tréveris que não sabemos com precisão, e neste campo o oriente também era famoso. A primeira cidade que visitou foi Antioquia, onde passou algum tempo para aprender melhor o grego. Pouco depois pediu a um judeu convertido que lhe ensinasse o hebraico.<br />Mas isso não bastava. Jerônimo ainda sentia uma paixão ardente pelas letras pagãs e a vida sensual. Tentando vencer suas tentações, passou a levar uma vida austera, e estudou a Bíblia com mais assiduidade. Acabou se retirando de Antioquia, para viver como eremita, em Caleis. As suas tentações, porém, o seguiram também para lá. Ele tinha levado sua biblioteca consigo, e na caverna em que vivia ele estudava, copiava livros e escrevia tratados. Seu espírito foi sacudido quando, no meio de uma enfermidade grave, ele sonhou que estava no juízo final, e que o juiz lhe perguntava: "Quem és?" Jerônimo afirmava: "Sou cristão". E o juiz lhe respondia: "Mentes. Não és cristão, mas ciceroniano". A partir de então Jerônimo se dedicou com afinco redobrado ao estudo das Escrituras, se bem que nunca deixou de citar, nem de ler e imitar os escritores pagãos.<br />O sexo também era uma obsessão para ele. Jerônimo que¬ria se libertar totalmente dele. Mas os sonhos e as lembranças das dançarinas de Roma o seguiam até mesmo para Caleis. A única maneira de se desfazer destas tentações era castigar o próprio corpo, e por causa disto ele levava uma vida exageradamente austera. Andava sujo, e chegou mesmo a dizer e praticar que quem tinha sido lavado por Cristo não tinha necessidade de se lavar de novo. <br />E isto ainda não bastava. Era necessário ocupar sua mente com algo que desalojasse as lembranças de Roma. Foi então que ele decidiu estudar hebraico. Para sua mente treinada na literatura clássica, o hebraico, com suas letras raras e suas aspirações, parecia bárbaro. Mas como cristão ele dizia que nesta língua estavam escritos os livros sagrados, e que por isto ela era divina. Neste período, escreveu também a Vida de São Paulo, o eremita.<br />Jerônimo, no entanto, não fora feito para levar uma vida de anacoreta (religioso ou penitente que vive na solidão). Provavelmente, antes de completar três anos como eremita, ele regressou à civilização. Em Antioquia, ele foi ordenado presbítero. Esteve em Constantinopla antes e durante o concílio ecuménico do ano 381. Mais tarde voltou para Roma, onde o bispo Damásio, bom conhecedor da natureza humana, fez dele seu secretário particular, e lhe deu todo tipo de oportunidades para estudar e escrever. Damásio foi também o primeiro que lhe deu a sugestão da obra que mais tarde consumiria boa parte da sua vida e seria seu principal monumento: uma nova tradução da Bíblia para o latim. Jerônimo já dera alguns passos nesta direção quando ainda estava em Roma, mas se entregou totalmente a esta tarefa somente bem depois, em Belém.<br />Em Roma, Jerônimo encontrou consolo com um grupo de mulheres castas e devotas. No palácio da viúva Albina e de sua filha Marcela — também viúva — vivia um grupo de mulheres que se dedicavam a uma vida austera, à meditação religiosa e ao estudo das Escrituras. Faziam parte deste grupo, além de Marcelina (a irmã de Ambrósio de Milão), Asséia, a filha de Marcela, e Paula, que junto com sua filha Eustóquia acompanharia desde então a vida de Jerônimo. O secretário do bispo visitava esta casa com frequência, pois teve nestas mulheres discípulas consagradas, que absorviam com avidez seus conhecimentos. Algumas logo começaram a estudar grego e hebraico, e Jerônimo tinha com elas conversas sobre o texto bíblico, o que não era possível com seus contemporâneos homens.<br />É interessante que Jerônimo, que nunca soube manter um relacionamento amistoso com seus colegas homens, o soube com este grupo de mulheres. E isto apesar de o sexo sempre ter sido para ele uma obsessão, tanto que ele tinha horror de pensar na fisiologia feminina. Entre estas mulheres santas, porém, que escutavam com avidez e que não poderiam querer corrigi-lo, Jerônimo estava tranquilo e à vontade, e assim foram elas, e não o resto do mundo, que conheceram a devoção e a doçura que estavam escondidas no fundo da sua alma.<br />Enquanto isso, entretanto, Jerônimo continuava fazendo inimigos entre as pessoas chegadas ao bispo Damásio. Não fosse o apoio deste, seus anos de paz em Roma nunca teriam acontecido. Por isso quando Damásio morreu, em fins de 384, a tempestade se desencadeou. Basília, uma das filhas de Paula, morreu, e algumas pessoas disseram que sua morte fora cau¬sada pela vida excessivamente rigorosa que Jerônimo lhe tinha imposto. Sirício, o sucessor de Damásio, não apreciava os estudos de Jerônimo, e este afinal decidiu ir embora de Roma, para a Terra Santa - ou, como ele dizia, "de Babilónia para Jerusalém".<br />Acima de tudo, no entanto, Jerônimo se dedicou à obra que seria seu principal monumento literário: a tradução da Bíblia para o latim. Naturalmente já existiam outras traduções das Escrituras naquela época. Mas todas tinham sido feitas a partir da Septuaginta, isto é, a tradução do Antigo Testamento do hebraico para o grego. Jerônimo se pôs ao trabalho, apesar de ser constantemente interrompido por sua enorme correspondência, suas constantes controvérsias e as calamidades que assolavam o mundo.<br />A longo prazo a versão de Jerônimo — conhecida como a Vulgata — se impôs em toda a igreja de fala latina, mas a princí¬pio não foi tão bem recebida como Jerônimo desejara. Naturalmente a nova tradução da Bíblia — como toda tradução nova — mudava algumas das passagens favoritas de algumas pessoas, e muitos se perguntavam que direito tinha Jerônimo de mudar as Escrituras. <br />Além disso, muitas tinham aceito a lenda de acordo com a qual a Septuaginta tinha sido traduzida por setenta homens que coincidiram até mesmo nos mínimos detalhes na sua tradução, apesar de trabalharem separadamente. Com isso justificava-se a versão grega, e afirmava-se que ela era tão inspirada como o original hebraico. Por isso, quando Jerônimo publicou uma nova versão que diferia da Septuaginta, não falta¬ram os que o acusaram de estar desrespeitando as Escrituras.<br />Estas críticas não provinham somente de pessoas ignorantes, mas até mesmo de alguns dos sábios mais distintos da época. Agostinho lhe escreveu, do norte da África:<br /><br />Rogo-te que não dediques teus esforços à tradução dos livros sagrados para o latim, a menos que sigas o método que seguiste antes, em tua versão do livro de Jó, ou seja, acrescentando notas que mostrem claramente em que pontos tua versão difere da Septuaginta, cuja autoridade é inigualável... Além disso não vejo como, depois de tanto tempo, alguém possa descobrir nos manuscritos hebraicos alguma coisa que tantos tradutores e bons conhecedores da língua hebraica não tenham visto antes.<br /><br />Jerônimo não lhe respondeu logo, e quando finalmente o fez, simplesmente deu a entender a Agostinho que ele não deveria tentar se promover, atacando os que eram maiores do que ele. De maneira sutil, ao mesmo tempo que parecia elogiá-lo, Jerônimo dizia a Agostinho que o combate seria desigual, e que, portanto, o bispo faria bem deixando de criticar o velho erudito.<br />A maior parte das controvérsias de Jerônimo terminaram em querelas nunca resolvidas, mas, no caso de Agostinho, a situação foi diferente, pois anos mais tarde Jerônimo precisou refutar a heresia dos pelagianos — da qual falaremos depois — e para isso teve de recorrer às obras de Agostinho. Sua próxima carta para o sábio bispo demonstra uma admiração que Jerônimo reservava para muito poucas pessoas.<br />Tudo isso pode dar a entender que Jerônimo era uma pessoa insensível, preocupada somente com o próprio prestígio. Pelo contrário, seu espírito era extremamente sensível, e precisamente por esta razão ele tinha de apresentar para o mundo uma fachada rígida e imperturbável. Talvez ninguém soubesse isso tão bem como Paula e Eustóquia, sua filha. Mas Paula mor¬reu em 404 e Eustóquia em 419, e Jerônimo ficou só e desani¬mado. Sua dor era tanto maior porque ele sabia que não só ele se aproximava de seu fim, mas toda uma era. <br />Uns poucos anos antes, em 410, Roma tinha sido tomada e saqueada pelos godos, sob o comando de Alarico. Todo mundo estremeceu a esta notícia. Quando Jerônimo o soube, em seu retiro em Belém, escreveu a Eustóquia:<br /><br />"Quem pode acreditar que Roma, construída pela con¬quista do mundo, tenha caído? Que a mãe de muitas nações se transformou num túmulo? . . . Meus olhos obscurecem por causa da minha idade,... e com a luz que tenho à noite não posso ler os livros em hebraico, que até de dia me são difíceis por causa do pequeno tamanho das letras."<br /><br />Jerônimo viveu ainda quase dez anos depois da queda de Roma. Foram anos de solidão, controvérsias e sofrimento. Por fim, poucos meses depois da morte de Eustóquia, o velho erudito entregou o espírito.<br /><br />Agostinho de Hipona<br />"Toma e lê. Toma e lê. Toma e lê". Estas palavras, que alguma criança gritava em seus jogos infantis, flutuaram sobre a grade do parque de Milão e foram dar nos ouvidos do abatido mestre de retórica que clamava debaixo de uma figueira: "Até quando, Senhor, até quando? Amanhã, sempre amanhã? Porque não acaba com minha imundície neste exato momento?" <br />As palavras que o menino gritava lhe pareceram ser um sinal do céu. Pouco antes ele jogara fora, em outro lugar do parque, um manuscrito que estivera lendo. Agora voltou para lá, tomou-o e leu as palavras do apóstolo Paulo: "Não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e nada disponhais para a carne" (Romanos 13:13-14). Em resposta a essas palavras do apóstolo, Agostinho — porque assim se chamava aquele mestre de retórica — decidiu ali mesmo o que estivera tentando decidir por muito tempo. Dedicou-se totalmente à vida religiosa, deixou sua ocupação como professor, e em resultado a tudo isso a posteridade o conhece como "Santo Agostinho".<br />Mas para compreendermos o alcance e o sentido daquela experiência no parque de Milão, precisamos nos deter para narrar a vida do jovem Agostinho até aquele momento crucial,<br />Caminho para a salvação<br />Agostinho nasceu em 354, no povoado de Tagaste, no norte da África. Seu pai era um oficial romano do escalão inferior, e era pagão. Sua mãe, porém, Mônica, era uma cristã fervo¬rosa, cuja oração constante pela conversão de seu esposo aca¬baria sendo respondida. Agostinho parece não ter tido um relacionamento muito íntimo com seu pai, pois o menciona muito pouco em suas obras. Mônica, no entanto, soube conquistar seu afeto, a ponto de boa parte da vida adulta de Agostinho ainda ter transcorrido à sombra de sua mãe.<br />Seja como for, os pais de Agostinho sabiam que seu filho tinha uma inteligência pouco comum e, por isso, se esmeraram em oferecer-lhe a melhor educação disponível. Com este propó¬sito, enviaram-no primeiro para a próxima cidade, Madaura, e depois para Cartago.<br />Agostinho tinha uns dezessete anos quando chegou à grande cidade que durante vários séculos tinha sido o centro político, económico e cultural da África de fala latina. Parece que ele não se descuidou dos estudos, mas logo ele começou a desfrutar também dos diversos prazeres que Cartago lhe oferecia. Conheceu ali uma mulher com a qual passou a conviver, e de quem teve seu único filho, Adeodato.<br />A matéria que Agostinho estudava, retórica, servia para preparar advogados e funcionários públicos. Seu objetivo era ensinar a falar de maneira elegante e convincente, e não se importava se o que era dito era certo ou não. Os professores de filosofia podiam se preocupar com a natureza da verdade. Os de retórica se preocupavam somente com o bom falar. Por isso esperava-se que Agostinho aprendesse em Cartago não a verdade, mas somente a maneira de persuadir os demais de que o que ele dizia era certo e justo.<br />Entre as obras da antiguidade que os estudantes de retórica deviam ler estavam as de Cícero, o famoso orador da era clássica romana. E Cícero, além de orador, tinha sido filósofo. Agostinho, lendo uma das suas obras, devido a isto se convenceu que o bom falar não era suficiente. Era necessário buscar a verdade.<br />Essa busca o levou, primeiramente, para o maniqueísmo. O maniqueísmo era uma religião de origem persa, fundada por Mani na primeira metade do século III. Na opinião de Mani, a difícil situação humana era causada pelos dois princípios que há em cada um de nós. Um deles é espiritual e luminoso. O outro — a matéria — é físico e tenebroso. Em todo o universo há dois princípios igualmente eternos: a luz e as trevas. De alguma maneira, que os maniqueus explicavam através de uma série de mitos, estes dois princípios se mesclaram e se confundiram, e esta confusão se projetou sobre a situação humana. A salvação, então consiste em separar esses dois elementos, e em preparar nosso espírito para a volta ao reino da luz, e sua fusão final com a luz eterna. Como toda nova mistura é necessariamente má, os novos crentes devem fazer tudo para evitá-la — e por esta razão, os maniqueus, apesar de não condenarem o sexo, condenavam a procriação. <br />Mani dizia que essa doutrina tinha sido revelada em diversas épocas a vários profetas, entre os quais estavam Buda, Zoroastro, Jesus e, por último, ele próprio.<br />No tempo de Agostinho, o maniqueísmo tinha se espalhado por toda a costa do Mediterrâneo, e seu principal meio de difusão era sua auréola de ser uma doutrina eminentemente racional. <br />Assim como o gnosticismo em épocas anteriores, o maniqueísmo explicava suas doutrinas com base em observações astronômicas. E boa parte de sua propaganda consistia em ridicularizar as doutrinas da igreja, particularmente as Escrituras, cujo materialismo e linguagem primitiva eram objeto de crítica e zombaria.<br />Tudo isso parecia ser uma resposta para as dúvidas de Agostinho, que estavam centralizadas em dois pontos. O primeiro destes era que as Escrituras cristãs, do ponto de vista da retórica, eram uma série de escritos pouco elegantes e até mesmo bárbaros, que faziam caso omisso de muitas regras do bom falar, e onde estavam registrados muitos episódios grosseiros de violência, violações, engano, e outros. O segundo era a questão da origem do mal. Mônica lhe tinha ensinado que só havia um Deus. Mas Agostinho olhava ao seu redor, e para dentro de si mesmo, e se perguntava de onde vinha todo o mal que existia no mundo. Se Deus era a suprema bondade, ele não podia ter criado o mal. E se Deus criou todas as coisas, não podia ser tão bom e sábio como Mônica e a igreja diziam. Nos dois pontos, o maniqueísmo parecia ter uma resposta. As Escrituras — o Antigo Testamento em particular — na verdade não eram a palavra do princípio da luz eterna. O mal também não era produto deste princípio, mas de seu oponente, o princípio das trevas.<br />Por todas essas razões, Agostinho se tornou maniqueu. Mas ainda restavam dúvidas, e por esta razão, durante nove anos, ele não passou de "ouvinte" do maniqueísmo, sem tentar ascender para a classe dos "perfeitos". Quando ele expressava suas dúvidas nas reuniões dos maniqueus, os outros lhe diziam que estes problemas eram muito profundos, e que o grande sábio maniqueu, um tal de Fausto, lhe daria a resposta. Quando a tão ansiada visita finalmente chegou. Fausto provou ser uma farsa, cujo conhecimento não era maior que o dos demais mestres do maniqueísmo. Desiludido Agostinho decidiu conduzir sua busca pela verdade por outros caminhos. Seus estudantes cartaginenses também não se comportavam tão bem como ele desejava, e por isso, ele decidiu tentar sua sorte em Roma. <br />Os estudantes romanos, por sua vez, mesmo se portando melhor não o pagavam, e por essa razão ele se transferiu para Milão onde havia uma vaga de professor de retórica.<br />Em Milão, Agostinho se tornou neoplatônico. O neoplatonismo era uma doutrina muito popular naquela época. Não podemos descrever aqui toda esta filosofia, mas é suficiente se dissermos que o neoplatonismo era tanto uma doutrina como uma disciplina. Seu objetivo central era vir a conhecer o Um inefável, do qual provinham todas as coisas, combinando o estudo com a contemplação mística, até chegar ao êxtase. <br />Em oposição ao maniqueísmo, o neoplatonismo cria que existia só um princípio, do qual provinha toda a realidade, através de uma série de emanações — como os círculos concêntricos que uma pedra produz em uma piscina. As realidades mais próximas deste Um são superiores, e as mais distantes dele inferiores. O mal, então, não provém de um outro princípio, mas consiste em afastar-se do Um inefável, e dirigir os olhos e pensamentos para a infinita multiplicidade do mundo material. <br />Tudo isso era uma resposta para uma das velhas interrogações de Agostinho, o problema da origem do mal. Desse ponto de vista, era possível afirmar que um só ser, de bondade infinita, era a fonte de toda a criação, sem com isso negar o mal que há nela. O neoplatonismo também ajudou Agostinho a conceber Deus e a alma em termos menos materialistas que os que tinha apren¬dido com os maniqueus.<br />Ainda restava, porém, uma dúvjda. Como podiam as Escrituras, com sua linguagem rude e suas histórias de violência e roubo, ser a Palavra de Deus? Foi nesse ponto que Ambrósio de Milão entrou em cena. <br />Agostinho, como professor de retórica, foi ouvir a pregação do famoso bispo. Seu propósito não era ouvir o que Ambrósio dizia, mas como ele o dizia. Se Ambrósio tinha tanta fama de ser um bom orador, a causa disso deveria ser sua retórica. Agostinho, pois, foi por razões puramente profissionais diversas vezes à igreja, para ouvir a pregação de Ambrósio. À medida que o ouvia, no entanto, prestava menos atenção à maneira com que o bispo elaborava seus sermões, e mais ao que dizia neles. Ambrósio usava o método alegórico na interpretação de muitas passagens em que Agostinho tinha encontrado dificuldades. <br />Como esse método era perteitamente aceitável na ciência retórica da época, Agostinho não podia fazer nenhuma objeção. O que Ambrósio na verdade estava fazendo, apesar de não estar ciente disto, era mostrar ao mestre de retórica a riqueza e o valor das Escrituras.<br />A partir de então as dificuldades intelectuais estavam resolvidas. Mas havia outras. Agostinho não se tornaria cristão facil¬mente. Se decidisse abraçar a fé de sua mãe, o faria de todo coração, e para toda a vida. Por causa do exemplo dos monges e da sua própria formação neoplatônica, Agostinho estava convicto de que teria de renunciar à sua carreira de professor de retórica, e todas as suas ambições e gozo dos prazeres sensuais, se se tornasse cristão. Esse último ponto era a principal dificul¬dade que ainda o detinha. Ele mesmo conta que sua constante oração era: "Dá-me castidade e continência. Mas não logo".<br />Então recrudesceu nele a batalha entre o querer e o não querer. Ele queria se tornar cristão. Mas ainda não. Sabia que não podia mais interpor dificuldades de ordem intelectual, o que fazia a luta consigo mesmo ser mais intensa ainda. De todos os lados lhe vinham notícias de outras pessoas que tinham feito o que ele não arriscava fazer, e ele sentia inveja. <br />Uma destas pessoas era o famoso filósofo Mário Vitorino, que tinha tradu¬zido para o latim as obras neoplatônicas que Agostinho tanto apreciava, e que certo dia se apresentou na igreja de Roma para fazer profissão pública da sua fé cristã. Pouco depois de ser informado da atitude de Mário Vitorino, Agostinho soube de dois altos funcionários que tinham lido a Vida de Santo Antó¬nio, escrita por Atanásio, e deixado cargos e honras para se dedicar a uma vida semelhante. Neste momento, não podendo tolerar a companhia de seus amigos — nem tampouco a sua — ele fugiu para o parque, onde o encontramos no começo deste relato, e onde teve lugar sua conversão.<br />A vida contemplativa<br />Depois da sua conversão Agostinho começou a dar os passos necessários em que sua decisão implicava. Pediu o batismo, e o recebeu das mãos de Ambrósio — o qual, como dissemos anteriormente, não parece ter notado os dotes excepcionais de seu converso. Renunciou ao cargo de retórica. E junto com um grupo de amigos e sua mãe Mônica decidiu regressar para o norte da África, para ali se dedicar à vida contemplativa.<br />Mônica o tinha acompanhado em boa parte de suas via¬gens, pois ficara viúva e desde então se dedicava inteiramente à vida religiosa e a cuidar de seu filho. Algum tempo antes, por insistência de sua mãe, Agostinho tinha despedido a concubina com quem vivera por vários anos — cujo nome ele nem sequer menciona — e ficado com Adeodato. Agora, junto com Mônica, Adeodato e alguns amigos, ele partiu para a África. No porto de Óstia, todavia, Mônica adoeceu e morreu, e Agostinho ficou tão desolado que ele e seus companheiros ficaram vários meses mais em Roma, antes de partir para a África.<br />Quando, por fim, chegaram em Tagaste, Agostinho vendeu a maior parte das suas propriedades, deu o dinheiro aos pobres e se dedicou a uma vida retirada em companhia de Adeodato e seus amigos. Não se tratava, no entanto, de uma vida exces¬sivamente austera, no estilo dos monges do deserto, mas mais de uma vida disciplinada dedicada ao estudo, à devoção e à meditação.<br />Ali Agostinho escreveu suas primeiras obras cristãs. Em algumas ainda se via a marca neoplatônica. Apesar disso, em toda a região ele em pouco tempo foi reconhecido como cristão dedi¬cado, professor hábil e líder espiritual dos seus companheiros. Em Casicíaco — assim se chamava o lugar onde eles moravam — Agostinho era completamente feliz, e não tinha outra ambição que continuar assim até o fim da sua vida.<br />Ministro da igreja<br />Mas havia os que tinham outros propósitos para sua vida. Em 391 Agostinho visitou a cidade de Hipona para encontrar um amigo que queria convidar para que se unisse ao grupo de Casicíaco. Quando foi à igreja da cidade, o bispo Valério pregou sobre como Deus envia pastores para seu rebanho, e solicitou à congregação que pedisse a Deus que indicasse se havia entre a congregação uma pessoa que ele tinha enviado para ser seu ministro, agora que ele estava envelhecendo. Naturalmente a reação da congregação foi exatamente a que o bispo desejava, e Agostinho foi ordenado, contra a sua vontade. <br />Quatro anos mais tarde foi feito bispo de Hipona junto com Valério, que tinha medo que alguma outra igreja lhe arrebatasse sua presa. Nesta época era proibido que um bispo fosse transferido de uma cidade para outra, e desta forma Valério garantia que Agostinho passaria o resto de seus dias em Hipona. (Agostinho não o sabia, mas também era proibido que houvesse dois bispos na mesma igreja.)<br />Como ministro e como bispo, Agostinho continuou levando uma vida semelhante à que tinha levado em Casicíaco. Só que não podia mais dedicar tanto tempo à contemplação, por causa dos seus deveres pastorais. Em cumprimento destas responsabilidades, ele escreveu uma série de obras que fizeram dele o teólogo mais importante da igreja ocidental desde o tempo do apóstolo Paulo.<br />O impacto de Agostinho<br />Agostinho foi o último sobrevivente da "era dos gigantes". Quando ele morreu, os vândalos estavam às portas de Hipona, anunciando uma nova época. Por isto a obra de Agostinho foi como o canto do cisne de uma época que morria.<br />Apesar disso, sua obra não ficou esquecida entre os escombros da civilização que desmoronava. Agostinho foi o mestre por excelência da nova época. Durante toda a Idade Média, nenhum teólogo foi mais citado do que ele, e por esta razão ele acabou sendo um dos grandes doutores da Igreja Católica Romana. <br />Mesmo assim, Agostinho foi também o autor favorito dos grandes reformadores do século XVI. Portanto, nenhum de todos aqueles gigantes foi tão notável quanto ele, que levou a cabo sua obra em uma pequena cidade do norte da África, mas cujo impacto se fez sentir através dos séculos futuros em todo o cristianismo ocidental — tanto católico como protestante.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-35788653012995046912007-06-13T04:21:00.000-07:002007-06-13T04:44:03.986-07:00História da Igreja - Parte 11A controvérsia ariana e o Concílio de Nicéia<br />Desde o começo a igreja esteve envolvida por controvérsias teológicas. No tempo do apóstolo Paulo, foi a questão da relação entre judeus e gentios; depois apareceu a ameaça do gnosticismo e de outras doutrinas semelhantes; no século III, quando Cipriano era bispo de Cartago, foi debatida a questão da readmissão dos que tinham caído. Todas estas controvérsias tinham sido de vulto, e às vezes amargas. Mas havia dois fatores que limitavam o fragor das contendas. O primeiro era que a única maneira de vencer o debate era a força do argumento ou da fé. Quando dois grupos diferiam quanto a qual deles interpretava o evangelho corretamente, não era possível recorrer às autoridades imperiais para resolver o problema. O segundo fator que limitava o alcance das controvérsias era que os que estavam envolvidos nelas sempre tinham outras ocupações, além de debater o problema. <br />Paulo, enquanto escrevia contra os judaizantes, se dedicava ao trabalho missionário, e sempre estava exposto a ser encarcerado, açoitado, ou talvez morto. Tanto Cipriano como seus opositores sabiam que a perseguição que acabavam de passar não era a última, e que acima dos dois grupos havia o Império, que a qualquer momento podia desencadear uma nova tempestade. A mesma coisa podemos dizer dos cristãos que discutiam o gnosticismo, no segundo século.<br />Com o surgimento da paz da igreja, no entanto, as circunstâncias mudaram. O perigo de uma perseguição parecia estar cada vez mais remoto, e por isso, quando surgia uma controvérsia teológica, os que estavam envolvidos nela se sentiam com mais liberdade para prosseguir o debate. <br />Muito mais importante, todavia, era o fato de agora o estado estava interessado em que todos os conflitos que pudessem aparecer entre os fiéis fossem resolvidos. Constantino queria que a igreja fosse "o cimento do Império", e por isso qualquer divisão nela podia ameaçar a unidade do Império. Por esta razão, já desde o tempo de Constantino, o estado começou a usar seu poder para acabar com as diferenças de opinião que surgiam dentro da igreja, como veremos a seguir. <br />É bem possível que estas opiniões dissidentes tenham sido, de fato, contrárias à verdadeira doutrina cristã, e que, por isso, foi bom que tenham desaparecido. Mas o perigo estava em que, em vez de permitir que a verdade surgisse de um debate teológico e da autoridade das Escrituras, muitos governantes tentaram simplificar este processo simplesmente decidindo que este ou aquele partido estava errado, ordenando-lhe que se calasse. O resultado foi que em muitos casos os contendentes, em vez de tentar convencer seus opositores, ou o restante da igreja, tentavam convencer o imperador. <br />Em pouco tempo o debate teológico desceu ao nível da intriga política — particularmente no século V, como veremos no curso desta história.<br />Começamos a ver tudo isso no caso da controvérsia ariana, que iniciou com um debate local, cresceu até se transformar em uma dissensão séria em que Constantino achou que deveria intervir, e pouco depois desembocou em uma série de intrigas políticas. Mas se nos dermos conta do espírito dos tempos, não nos surpreenderá tanto isso, mas o fato de que através de tudo isso a igreja soube tomar decisões sábias, rejeitando as doutrinas que de um ou outro modo punham em perigo a mensagem crista.<br />As origens da controvérsia ariana<br />As raízes da controvérsia ariana remontam a tempos bem anteriores a Constantino, pois estão na maneira com que, através da obra de Justino, de Clemente de Alexandria, de Orígenes e de outros, a igreja entendia a natureza de Deus. <br />Como dissemos anterioormente, quando os cristãos do primeiro século se lançaram pelo mundo a proclamar o evangelho, eles eram acusados de ateus e ignorantes. E era verdade que eles não tinham deuses que pudessem ser vistos ou apalpados, como os pagãos tinham. Em resposta a estas acusações, alguns cristãos apelaram às pessoas que a antiguidade considerava sábios por excelência, isto é, os filósofos. Os melhores filósofos pagãos tinham dito que acima de todo o universo existe um ser su¬premo, e alguns tinham chegado a dizer que os deuses pagãos eram feitos pelos homens. <br />Assim, apelando para estes sábios, os cristãos começaram a dizer que eles também, como os filósofos de antigamente, criam em um só ser supremo, e este ser era Deus. Este argumento era muito convincente, e não há dúvida de que contribuiu para que muitos intelectuais aceitassem o cristianismo.<br />Este argumento, no entanto, trazia consigo um perigo. Era grande a possibilidade de os cristãos, em seu afã de mostrar como sua fé e a filosofia eram compatíveis, chegassem a con¬vencer a si mesmos que a melhor maneira de conceber Deus não era a dos profetas e outros autores das Escrituras, mas a de Platão, Plotino e outros. Estes filósofos concebiam a perfeição como algo imutável, impassível e estático, e muitos cristãos chegaram à conclusão que o Deus de que as Escrituras falavam também era assim. Naturalmente era necessário resolver o conflito que surgiu entre esta ideia de Deus e a que aparece nas Escrituras, onde Deus é ativo, onde Deus chora com os que sofrem, e onde Deus intervém na história.<br />Este conflito entre as Escrituras e a filosofia, no que se refere à doutrina de Deus, foi resolvido de duas maneiras.<br />Uma delas foi a interpretação alegórica das Escrituras. De acordo com esta interpretação, sempre que as Escrituras se referem a algo "indigno" de Deus — isto é, algo que se opu¬nha à maneira de os filósofos conceberem o ser supremo — isto não deveria ser interpretado literalmente, mas de maneira alegórica. Se as Escrituras, por exemplo, dizem que Deus falou, isto não deve ser entendido literalmente, pois um ser imutável não fala. Intelectualmente, isto satisfez a muitos. Emocionalmente, porém, isto deixava muito a desejar, pois a vida da igreja se baseava na ideia de que era possível ter uma relação íntima com um Deus pessoal, e o ser supremo imutável, impassível, estático e distante dos filósofos de modo algum era pessoal.<br />Isto deu origem à segunda maneira de resolver o conflito entre a ideia que os filósofos faziam de Deus e o testemunho das Escrituras. Esta segunda maneira era a doutrina do Logos ou Verbo, como foi desenvolvida por Justino, Orígenes, Clemente e outros. De acordo com essa doutrina, é verdade que o próprio Deus — o "Pai" — é imutável, imóvel, mas Deus tem um Verbo, Palavra, Logos ou Razão que é pessoal, e que se relaciona diretamente com o mundo e com os seres humanos. Por esta razão Justino diz que quando Deus falou com Moisés, não foi o Pai quem falou, mas o Verbo.<br />Por causa da influência de Orígenes e de seus discípulos, este modo de ver as coisas tinha se difundido por toda a igreja oriental — isto é, a igreja que falava grego e não latim. Este foi o contexto dentro do qual se desenvolveu a controvérsia ariana, e a longo prazo o resultado desta controvérsia foi mos¬rar como é errado ver as coisas dessa maneira. <br />A controvérsia surgiu na cidade de Alexandria, quando Licínio ainda governava no leste e Constantino no oeste. Tudo começou com uma série de desacordos teológicos entre Ale-xandre, bispo de Alexandria, e Ário, um dos presbíteros de mais prestígio e popularidade na cidade.<br />Os pontos em debate eram vários e sutis, mas podemos resumir toda a controvérsia à questão de: Se o Verbo era co-eterno com o Pai ou não. A frase principal em debate era, como dizia Ário, "se houve quando o Verbo não existia". Alexandre dizia que o Verbo sempre tinha existido junto ao Pai. Ário dizia o contrário. Isto pode nos parecer uma infantilidade, mas no fundo estava em jogo a divindade do Verbo. Ário dizia que o Verbo não era Deus, mas somente a primeira de todas as criaturas. <br />Reparem que Ário não dizia que o Verbo não tivesse pré-existido antes do nascimento de Jesus. Nessa pré-existência todos estavam de acordo. O que Ário dizia era que o Verbo tinha sido criado por Deus, se bem que antes de toda a criação. Alexandre dizia que o Verbo, por ser divino, não era uma criatura, mas sempre havia existido com Deus. Em outras palavras, se a questão fosse traçar uma linha divisória entre Deus e as criaturas, Ãrio traçaria a linha entre Deus e o Verbo, colocando assim o Verbo como a primeira das criaturas, e Alexandre traçaria a linha de maneira que o Verbo ficasse junto com Deus, separado das criaturas.<br />Os dois partidos tinham — além de certos textos bíblicos favoritos — razões lógicas que faziam a posição do oponente aparecer isustentável.<br />Ário, de um lado, dizia que Alexandre estava propondo, no fim das contas, que o monoteísmo cristão fosse abandonado, pois no esquema de Alexandre havia dois que eram Deus, e portanto dois deuses.<br />Alexandre respondia que a posição de Ário negava a divin¬dade do Verbo, e em consequência de Jesus Cristo. E já que a igreja desde o começo tinha adorado a Jesus Cristo, se a proposta de Àrio fosse aceita, a igreja teria de: ou deixar de adorar a Jesus Cristo, ou adorar uma criatura. As duas alternativas eram inaceitáveis, e por isso Ârio deveria estar equivocado. O conflito ficou público quando Alexandre, apelando para sua responsabilidade e autoridade episcopal, condenou as doutrinas de Ãrio e o depôs de seus cargos na igreja de Alexandria. Ário não aceitou este veredito, e por sua vez apelou às massas e a vários bispos de destaque que tinham sido seus colegas de estudo em Antioquia. Logo houve protestos populares em Alexandria, onde o povo marchava pelas ruas cantando as máximas teológicas de Ário. <br />Os bispos a quem Ário tinha escrito responderam declarando que Ário tinha razão, e que era Alexandre que estava ensinando doutrinas falsas. Desta forma, o debate local em Alexandria ameaçava se transformar em um cisma geral, que poderia chegar a dividir toda a igreja oriental. As coisas estavam neste ponto quando Constantino, que acabara de derrotar Licínio, decidiu se meter no assunto. Sua primeira gestão consistiu em enviar o bispo Ôsio de Córdoba, seu conselheiro em assuntos eclesiásticos, para que tentasse reconciliar as partes em conflito. Mas quando Ôsio constatou que as raízes teológicas do conflito eram profundas, e que a dissensão não poderia ser resolvida com gestões individuais, Constantino decidiu dar um passo que estivera considerando já por algum tempo > convocar uma grande assembléia ou concílio de todos os bispos cristãos, para pôr em ordem a vida da igreja, e para decidir sobre a controvérsia ariana.<br />O concílio de Nicéia<br />O concílio afinal se reuniu na cidade de Nicéia, na Ásia Menor, perto de Constantinopla, em 325. A posteridade conhe¬ce esta assembléia como o primeiro concílio ecumênico, isto é, universal.<br />Não sabemos o número exato de bispos que assistiram ao concílio, mas ao que parece foram uns trezentos. Para compre¬endermos a importância do que estava acontecendo, recordemos que vários dos presentes tinham sofrido prisões, torturas ou exílio pouco antes, e que alguns levavam em seu corpo as marcas físicas da sua fidelidade. E agora, poucos anos depois daqueles dias de provações, todos estes bispos eram convidados a se reunir na cidade de Nicéia, e o imperador cobria todos os seus gas¬tos. Muitos dos presentes se conheciam de ouvir falar, ou por correspondência. Agora, pela primeira vez na história da igreja, eles podiam ter uma visão física da universalidade da sua fé. Eusébio de Cesaréia nos descreve a cena, em sua Vida de Constantino:<br /><br />“Ali se reuniram os mais distintos ministros de Deus, da Europa, Líbia (isto é, África) e Ásia. Uma só casa de oração, como que ampliada por obra de Deus, abrigava sírios e cilícios, fenícios e árabes, delegados da Palestina e do Egito, tebanos e líbios, junto com os que vinham da Mesopotâmia. Havia também um bispo persa, e tampouco faltava um cita na assembleia. Ponto, Galácia, Panfília, Capadócia, Ásia e Frigia enviaram seus bispos mais dis¬tintos, bem como os que moravam nas regiões mais remotas da Trácia, Macedônia, Acaia e Epiro. Até mesmo da Espanha, um de grande fama (Ôsio de Córdoba) se sentou como membro da assembléia. O bispo da cidade imperial (Roma) não pôde participar por causa da sua idade avançada, mas seus presbíteros o representaram. Constantino é o primeiro príncipe de todas as épocas que juntou semelhante grinalda mediante o vínculo da paz, e a apresentou a seu Salvador como oferta de gratidão pelas vitórias que conseguiu sobre seus inimigos.”<br />Neste ambiente de euforia, os bispos se puseram a discutir as muitas questões legislativas que eram necessárias resolver, uma vez terminada a perseguição. A assembléia aprovou uma série de regras para a readmissão dos que tinham caído, sobre como os presbíteros e bispos deveriam ser eleitos e ordenados, e sobre a ordem de precedência das diversas sedes.<br />A questão mais escabrosa, porém, que o concílio de Nicéia tinha de discutir era a controvérsia ariana. Em relação a este assunto havia várias tendências no concílio.<br />Em primeiro lugar, havia um pequeno grupo de arianos convictos, liderados por Eusébio de Nicomédia — personagem importantíssimo em toda esta controvérsia, que não deve ser confundido com Eusébio de Cesaréia. Ârio, por não ser bispo, não tinha o direito de participar das deliberações do concílio. Seja como for, Eusébio e os seus estavam convictos de que sua posição era correta, e que a assembléia, assim que ouvisse seu ponto de vista exposto com clareza, daria razão a Ário e repreenderia Alexandre por tê-lo condenado.<br />Em segundo lugar, havia um pequeno grupo que estava convencido de que as doutrinas de Ário punham em perigo o próprio cerne da fé cristã, e que por isto era necessário condená-las. O líder deste grupo era Alexandre de Alexandria. Junto a ele estava um jovem diácono que depois ficaria famoso como um dos gigantes cristãos do século IV, Atanásio.<br />Os bispos que procediam do oeste, isto é, da região do Império onde era falado latim, não estavam interessados na especulação teológica. Para eles a doutrina da Trindade estava resumida na velha fórmula enunciada por Tertuliano mais de um século antes > uma substância e três pessoas.<br />Outro pequeno grupo - contando provavelmente com não mais que três ou quatro pessoas - defendia posições próximas do "patripassionismo", ou seja, da doutrina de acordo com a qual o Pai e o Filho são a mesma pessoa, e que por isto, Pai sofreu na cruz. Estas pessoas estiveram de acordo com as decisões de Nicéia, mas mais tarde foram condenadas. Para não complicar demais nossa narração, porém, não voltaremos a nos ocupar delas.<br />Por último, a maior parte dos bispos presentes não pertencia a nenhum destes grupos. Para eles era uma verdadeira lástima o fato de Ârio e Alexandre se terem envolvido em uma controvérsia que ameaçava dividir a igreja, agora que afinal a igreja gozava de paz em relação ao Império. A esperança destes bispos, no início das reuniões, parece ter sido conseguir uma posição conciliatória, resolver as diferenças entre Alexandre e Ário, e esquecer a questão. Exemplo típico desta atitude é Eusébio de Cesaréia, o historiador. Nisto estavam as coisas, quando Eusébio de Nicomédia, o líder do partido ariano, pediu a palavra para expor sua doutrina. Ao que parece, Eusébio estava tão convicto da verdade do que dizia, que tinha certeza que os bispos, assim que ouvissem uma exposição clara de suas doutrinas, as aceitariam como corretas, ficando a questão encerrada. Mas, quando os bispos ouviram a exposição das doutrinas arianas, sua reação foi bem diferente do que Eusébio esperava. A doutrina de o Filho ou Verbo ser somente uma criatura — por mais exaltada que fosse esta criatura — parecia-lhes atentar contra o próprio âmago da sua fé. Aos gritos de "blasfémia!", "mentira!" e "heresia!" Eusébio teve de se calar, e conta-se que alguns dos presentes lhe arrancaram seu discurso, o rasgaram em pedaços e o pisotearam.<br />O resultado de tudo isso foi que a atitude da assembléia mudou. Antes a maioria quisera tratar o caso com a maior suavidade possível, e talvez evitar que algum lado fosse condenado, mas agora a maior parte estava convencida de que era necessário condenar as doutrinas expostas por Eusébio de Nicomédia.<br />No começo, tentou-se fazer isto somente com citações bíblicas. Mas logo ficou claro que os arianos podiam interpretar qualquer citação de uma maneira que os favorecia — ou pelo menos que podiam aceitar. Por esta razão a assembléia decidiu compor um credo que expressasse a fé da igreja em relação às questões em debate. Depois de um processo que não podemos narrar aqui, mas que contou, entre outras coisas, com a intervenção de Constantino, sugerindo que fosse incluída a palavra "consubstancial" — palavra esta que discutiremos mais adiante — chegou-se à seguinte fórmula, conhecida como credo de Nicéia:<br /><br />“Cremos em um Deus Pai Todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis.<br />E em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus; gerado como o Unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus; luz de luz; Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não feito; consubstanciai com o Pai; mediante o qual todas as coisas foram feitas, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra; que para nós humanos e para nossa salvação desceu e se fez carne, se fez homem, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro dia, e virá para julgar os vivos e os mortos.<br />E no Espírito Santo.<br />Aos que dizem, pois, que houve quando o Filho de Deus não existia, e que antes de ser concebido não existia, e que foi feito das coisas que não são, ou que foi formado de outra substância ou essência, ou que é uma criatura, ou que é mutável ou variável, a estes a igreja católica anatematiza.”<br /><br />Esta fórmula, a que depois foram acrescentadas diversas cláusulas — e foram tirados os anátemas do último parágrafo — é a base do que hoje em dia chamamos de "Credo Niceno", o credo cristão mais universalmente aceito. O chamado "Credo Apostólico", por ter surgido em Roma e nunca ter sido conhecido no Oriente, é usado somente pelas igrejas de origem ocidental — ou seja, a romana e as protestantes. Mas o credo niceno, ao mesmo tempo que é usado pela maioria das igrejas ocidentais, também é o credo mais comum entre as igrejas ortodoxas orientais — grega, russa, e outras.<br />Paremos alguns instantes para analisar o sentido do credo, assim como foi aprovado pelos bispos reunidos em Nicéia. Desta análise fica claro que o propósito da fórmula é excluir toda doutrina que queira dizer que o Verbo é, em algum sentido, uma criatura. Podemos ver isto, em primeiro lugar, em frases como: "Deus de Deus; luz de luz; Deus verdadeiro de Deus verdadeiro". Mas podemos vê-lo também em outras frases, como quando o credo diz "gerado, não feito". <br />Reparem que, no princípio, o mesmo credo diz que o Pai é "criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis". Portanto, dizendo que o Filho não é "feito", o credo o exclui destas coisas "visíveis e invisíveis" que o Pai fez. Além disso o último parágrafo condena todos que digam que o Filho "foi feito das coisas que não são", ou seja, que foi feito do nada, como a criação. E no texto do credo, para não deixar margem a dúvidas, consta que o Filho foi concebido "da substância do Pai", e que é "consubstanciail com o Pai". Esta última frase, "consubstanciail com o Pai , foi a que provocou mais resistência ao credo de Nicéia, pois parecia dar a entender que o Pai e o Filho são a mesma coisa, se bem que o sentido aqui não é este, mas somente asse¬gurar que o Filho não é feito do nada, como as criaturas.<br />Seja como for, os bispos se consideraram satisfeitos com este credo, e quase todos o assinaram, dando assim a entender que ele era uma expressão genuína da sua fé. Somente alguns poucos — entre eles Eusébio de Nicomédia — se negaram a assiná-lo. Estes foram condenados pela assembléia, e depostos A esta sentença Constantino acrescentou a sua, ordenando que os bispos depostos abandonassem suas cidades. Esta sen¬tença de exílio, acrescentada à de heresia, teve consequências funestas, como já dissemos, pois estabeleceu o precedente de que o estado intervém para assegurar a ortodoxia da igreja, ou de seus membros.<br />A controvérsia depois do concílio<br />Entretanto, o concílio de Nicéia não pôs fim à discusão. Eusébio de Nicomédia era um político hábil - e parece até ter sido parente distante de Constantino. Sua estratégia foi reconquistar a simpatia do imperador, que logo lhe deu permissão para regressar a Nicomédia. Já que nesta cidade ficava a residência de verão de Constantino, isto deu a Eusébio a oportunidade de se aproximar cada vez mais do imperador. Mais tarde até o próprio Ário foi trazido do seu lugar de desterro, e Constantino ordenou ao bispo de Constantinopla que admitisse o herege para a Santa Ceia. O bispo estava no conflito de obedecer ao imperador ou à sua consciência quando Ário morreu.<br />Em 328, morreu Alexandre de Alexandria, e Atanásio lhe sucedeu, o diácono que o havia acompanhado a Nicéia, e que, deste momento em diante seria o grande campeão da causa nicena. <br />A partir de então esta causa ficou tão identificada com o novo bispo de Alexandria que quase podemos dizer que a história subsequente da controvérsia ariana é a biografia de Atanásio. Como mais adiante falaremos sobre Atanásio, não entraremos aqui em detalhes. Basta dizer que, depois de uma série de manejos, Eusébio de Nicomédia e seus seguidores conseguiram que Constantino enviasse Atanásio para o exílio. Antes eles já tinham conseguido que o imperador promulgasse sentenças semelhantes contra diversos outros líderes do partido niceno. Quando Constantino afinal decidiu receber o batismo, em seu leito de morte, quem o batizou foi Eusébio de Nicomédia.<br />À morte de Constantino, depois de um breve interregno, lhe sucederam seus três filhos Constantino II, Constante e Constancio. A Constantino II coube a região das Gálias, Grã-Bretanha, Espanha e Marrocos. A Constâncio coube a maior parte do Oriente. Os territórios de Constante ficaram no meio dos de seus irmãos, abrangendo o norte da África, a Itália e alguns territórios ao norte da Itália. No começo, a nova situação favoreceu os nicenos, pois o mais velho dos filhos de Constantino favorecia sua causa, e fez com que Atanásio e os demais voltassem do exílio. Mas quando irrompeu a guerra entre Constantino II e Constante, Constâncio, que como dissemos reinava no Oriente, se sentiu livre para estabelecer sua política favorável aos arianos. <br />Mais uma vez Atanásio se viu obrigado a partir para o exílio, do qual voltou quando Constantino II morreu, e todo o Ocidente foi unificado sob Constante, o que fez com que Constâncio moderasse suas inclinações arianas. Mas mais tarde Constâncio acabou sendo o único dono do Império, e foi então que, como diria Jerônimo — sobre quem também falaremos mais adiante - "o mundo despertou de um sono profundo e percebeu que tinha ficado ariano". <br />Os líderes nicenos tiveram novamente de abandonar suas dioceses, e a pressão imperial foi tão grande que mais tarde os anciãos Ósio de Córdoba e Libério — o bispo de Roma — assinaram uma confissão ariana.<br />Estavam as coisas nesse pé, quando um fato inesperado veio mudar o curso dos acontecimentos. À morte de Constâncio sucedeu seu primo Juliano, conhecido pelos historiadores cristãos como "o Apóstata". Aproveitando as contendas entre os cristãos, a reaçao pagã tinha ascendido ao poder.<br />A reação pagã: Juliano, o Apóstata<br />Juliano tinha razões de sobra para não simpatizar com Constâncio, ou com a fé cristã que este professava. De fato, quando Constantino morreu tinha ocorrido uma matança de todos os parentes do grande imperador, com excessão de seus três filhos. As circunstâncias em que isto se deu não são totalmente claras, e por isto talvez seja injusto culpar Constâncio por tudo. A sucessão esteve controvertida por algum tempo quando Constantino morreu, e durante este período, os soldados de Constantinopla mataram quase toda a parentela do imperador falecido. Eles não fizeram isto para que outra dinastia assumisse o trono, pelo contrário; a razão foi para que ninguém reclamasse o poder, que pertencia exclusivamente aos três filhos de Constantino. Destes, somente Constâncio estava em Constantinopla naquela época, e por isso, ele foi sempre considerado responsável pela morte dos seus parentes.<br />Seja como for, tenha ou não Constâncio mandado matar a família de Juliano, o fato é que este estava convicto de que seu primo era o culpado. O pai de Juliano, Constâncio, era meio-irmão de Constantino, e por isto Juliano e o imperador Constâncio eram primos-irmãos. Juliano suspeitava — e em todo o Império isso era comentado em voz baixa — que Constâncio tinha ordenado a morte de todos os parentes próximos do grande imperador, temendo que algum deles pretendesse o trono.<br />A longa luta pelo poder<br />De toda a família, sobreviveram somente Juliano e seu meio-irmão Galo, vários anos mais velho que ele. Juliano pensou, depois, que sua vida tinha sido poupada porque os soldados tiveram misericórdia da sua pouca idade — seis anos — e da enfermidade aparentemente mortal de seu irmão. Mas parece ser mais provável que Constâncio decidiu que estes dois remanescentes da casa de Constâncio Cloro não fossem mortos, pois eram jovens demais para dirigir uma rebelião, e, se acontecesse que nem Constâncio nem seus irmãos deixassem descen¬dência, sempre seria possível recorrer a Galo ou a Juliano, que então já teriam alcançado sua maioridade.<br />De qualquer forma Galo e Juliano foram afastados da corte, e enquanto o maior dos dois irmãos se dedicava ao exercício físico, o menor se interessava cada vez mais pelos estudos filosóficos. Ambos tinham sido batizados e instruídos nas doutrinas cristãs, e durante seu exílio da corte foram ordenados como leitores da igreja.<br />Mais tarde, Constâncio teve de recorrer a Galo, pois tinha se tornado único senhor do Império em 350, e não tinha filhos que o ajudassem a governar ou que pudessem garantir a sucessão ao trono. Por essa razão, em 351, Constâncio convocou Galo e lhe deu o título de César, confiando-lhe o governo da parte oriental do Império. Mas Galo demonstrou não ser um bom governante, e também acabou sendo acusado de conspirar contra Constâncio para se apoderar do trono, de modo que Cons¬tâncio o mandou prender e decapitar em 354.<br />Enquanto isso, Juliano tinha continuado seus estudos de filosofia, principalmente na cidade de Atenas, onde funcionava a mais famosa escola destas matérias, e onde conheceu Basílio de Cesaréia, cuja vida e obra falaremos mais adiante. Em Atenas, Juliano foi iniciado nas antigas religiões de mistério. Ele já tinha abandonado definitivamente o cristianismo, e procurava a verdade e a beleza na literatura e na religião da época clássica.<br />Por fim, depois de vencer os receios que a experiência que tivera com Galo lhe inspirava, Constâncio decidiu convocar Juliano para o governo, dando-lhe o título de César e confiando-lhe o governo das Gálias. Ninguém esperava que Juliano fosse um bom governante, pois tinha passado a vida entre livros e filósofos, e, de qualquer forma, os recursos que Constâncio lhe confiou eram muito escassos. Mas Juliano surpreendeu os que não esperavam grande coisa dele. Sua administração das Gálias foi sábia, e em suas campanhas contra os bárbaros ele demonstrou ser um general hábil, tornando-se popular entre seus soldados.<br />Tudo isso não era totalmente do agrado do seu primo, o imperador Constâncio, que logo começou a temer que Juliano conspirasse contra ele e tentasse lhe arrebatar o trono. A tensão foi aumentado entre os dois parentes. Quando Constâncio, preparando-se para uma campanha contra os persas, ordenou que boa parte das tropas que estavam nas Gálias se dirigissem para o Oriente, estas tropas se sublevaram e proclamaram Juliano "Augusto" — isto é, imperador supremo. Constâncio não pôde fazer nada no momento, pois a ameaça persa parecia ser séria. Mas assim que este perigo foi afastado, o imperador marchou para enfrentar Juliano e seus soldados rebeldes. Quan¬do a guerra parecia ser inevitável, e os dois lados se preparavam para uma luta sem quartel, Constâncio morreu, e Juliano não teve maiores dificuldades para marchar sobre Constantinopla e se apoderar de todo o império. Era o ano 361.<br />A primeira atitude de Juliano foi se vingar dos principais responsáveis pelos seus infortúnios, e dos que tinham tentado mante-lo afastado do poder durante seu exílio. Com este propósito, ele nomeou um tribunal que, supostamente, era independente, mas que, na verdade, satisfazia os desejos do novo imperador, e que condenou à morte vários dos seus piores inimigos.<br />Fora isto Juliano foi um governante hábil, que soube pôr em ordem a administração do Império. Mas ele não é lembrado tanto por isto quanto por sua política religiosa, que lhe valeu o apelido de "o Apóstata".<br />A política religiosa de Juliano<br />Esta política consistiu, por um lado, em restaurar a glória perdida do paganismo, e por outro lado, em impedir o progresso do cristianismo.<br />Depois da ascensão de Constantino, o paganismo tinha perdido seu antigo brilho. O próprio Constantino, mesmo não tendo perseguido os pagãos, saqueou diversos templos para obter obras de arte para Constantinopla. Esta política continuou sob o regime dos filhos de Constantino, que legislavam em favor do cristianismo e iam colocando cada vez mais obstá-culos ao culto pagão. Quando Juliano ascendeu ao trono, os templos estavam quase totalmente abandonados, e havia sacerdotes pagãos que andavam esfarrapados, sustentando-se de diversas maneiras, e apenas se ocupando dos cultos.<br />Juliano começou uma reforma total do paganismo. Suas primeiras providências foram ordenar que todos os objetos e propriedades que tinham sido tomados dos templos fossem devolvidos. Além disso, ele passou a organizar o sacerdócio pagão em uma hierarquia semelhante à da igreja cristã. Acima dos sacerdotes de cada região havia arquisacerdotes, que por sua vez estavam subordinados ao sacerdote máximo da província, e por cima de todos estava o sumo pontífice, que ere o próprio Juliano. Nessa hierarquia, os sacerdotes deveriam levar uma vida exemplar, não só se ocupando do culto, mas também das obras de caridade. Fica evidente que, apesar dos seus sentimentos anticristãos, boa parte da reforma pagã de Juliano era inspirada no exemplo da igreja cristã.<br />Enquanto promulgava estas leis, Juliano estava empenhado em restaurar o culto pagão de maneira mais direta. Ele se considerava eleito pelos deuses para esta obra, e por isso, enquanto esperava que todo o Império regressasse à sua antiga fé, ele se sentia obrigado a prestar aos deuses o culto que os outros não lhes prestavam. <br />Por ordem de Juliano houve sacrifícios em massa, em que eram oferecidos centenas de touros e outros animais aos deuses. Mas Juliano percebeu que sua reforma não era tão popular como ele tinha desejado. As pessoas zombavam dos sacrifícios, às vezes ao mesmo tempo que participavam deles. Por essa razão, era necessário não só promover o paganismo, mas também atacar o cristianismo, que era seu rival mais poderoso.<br />Com este propósito em mente, Juliano tomou uma série de medidas, se bem que temos de dizer com toda a justiça que ele nunca decretou a perseguição direta da jgreja. Se em alguns lugares houve cristãos que perderam a vida, isso foi causado por tumultos populares, ou pelo excessivo zelo das autoridades locais, pois Juliano estava convicto de que sua causa não progrediria com uma perseguição.<br />Em vez de perseguir os cristãos, Juliano seguiu uma política dupla de dificultar sua difusão e ridicularizá-los. No primeiro sentido, ele proibiu que cristãos ensinassem as letras clássicas. Dessa forma, ao mesmo tempo que evitava o que para ele era um sacrilégio, ele se assegurava de que os cristãos não poderiam fazer uso das grandes obras da antiguidade pagã para difundir sua própria doutrina, como vinham fazendo desde o tempo de Justino, no segundo século. Para ridicularizar os cristãos, Juliano começou a chamá-los de "galileus", sempre se referindo a eles com este nome. Escreveu também uma obra, Contra os galileus, em que evidencia seu conhecimento das Escrituras cristãs, e ridiculariza seu conteúdo, como também os ensinos de Jesus. Por último, ele se dispôs a reconstruir o templo de Jerusalém, não porque simpatizasse com os judeus, mas porque pensava que assim poderia contradizer os cristãos, que diziam que a destruição do templo tinha ocorrido em cumprimento das profecias do Antigo Testamento.<br />Juliano estava às voltas com todos estes projetos quando a morte o surpreendeu.<br />A morte de Juliano<br />Basílio de Cesaréia, o bispo cristão que tinha sido condiscípulo de Juliano em Atenas, tivera uma visão em que São Mercúrio, um dos velhos mártires de Cesaréia, descia do céu e atravessava o coração de Juliano com uma lança. A visão de Basílio não se cumpriu, mas pouco depois, quando Juliano dirigia suas tropas em uma campanha contra os persas, ele foi atingido por uma lança inimiga, e morreu. Conta-se que suas últimas palavras foram: "Venceste, Galileu!", mas isto não passa de uma lenda pouco digna de crédito.<br />Seja como for, tenha ou não Juliano pronunciado estas palavras, é verdade que o Galileu já tinha vencido quando Juliano ainda vivia. As reformas religiosas do imperador apóstata nunca conseguiram apoio do povo que zombava delas, pois o paganismo tinha perdido sua força vital e não podia ser ressuscitado mediante decretos imperiais.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-87082841150156468442007-06-12T12:54:00.000-07:002007-06-12T13:00:44.525-07:00História da Igreja - Parte 10O impacto de Constantino<br />(texto extraído e adaptado da obra de Justo L. Gonzales, Uma História Ilustrada do Cristianismo)<br />Do Sol Invicto para Jesus Cristo<br /><br />Muito já foi escrito e discutido sobre a conversão de Constantino. Pouco depois de ela ter acontecido houve escritores crístãos, como veremos mais adiante, que quiseram mostrar que esta conversão era o ponto culminante de toda a história da igreja. <br />Outros têm dito que Constantino não passava de um político hábil que percebeu que poderia obter vantagens com uma "conversão", e que por isso decidiu atrelar seu carro à causa do cristianismo. <br />As duas interpretações são exageradas. Basta ler os documentos da época para vermos que a conversão de Constantino foi bem diferente da conversão comum de um cristão. <br />Quando algum pagão se convertia ele era submetido a um longo processo de disciplina e ensino, para ter certeza de que o novo convertido entendia e vivia sua nova fé, e então ele era balizado. O novo convertido, então, seguia seu bispo como guia e pastor, para descobrir o significado da sua fé nas situações concretas da vida.<br />O caso de Constantino foi bem diferente. Durante toda a sua vida, Constantino nunca se submeteu em nenhum aspecto à autoridade pastoral da igreja. Ele contava com o conselho de cristãos, como o eru¬ito Lactâncio — tutor de seu filho Crispo — e o bispo Ôsio de Córdoba — seu conselheiro para assuntos eclesiásticos — mas Constantino sempre se reservou o direito de determinar ele mesmo suas atitudes religiosas, pois considerava-se "bispo dos bispos". <br />Repetidamente, mesmo depois da sua conversão, Constantino participou de rituais pagãos que eram proibidos aos cristãos comuns, e os bispos não levantaram a voz em protesto e condenação, como teriam feito em qualquer outro caso.<br />O que acontecia não era somente que Constantino era uma pessoa ao mesmo tempo poderosa e irascível. O imperador também, apesar da sua política cada vez mais favorável aos cristãos e das suas afirmações de crer no poder de Jesus Cristo, tecnica¬mente pelo menos não era cristão, pois não tinha se submetido ao batismo. <br />Constantino, de fato, só foi batizado no seu leito de morte. De maneira que qualquer política ou edito em favor dos cristãos, da parte do imperador, era recebido pela igreja como um favor feito por um amigo ou simpatizante. <br />E qualquer deslize religioso de Constaníino era encarado da mesma perspectiva, como sendo a ação de alguém que não fazia parte do grupo dos fiéis, ainda que fosse simpatizante deles. <br />Uma pessoa assim podia receber conselhos da igreja, mas nunca sua direção ou condenação. Esta situação se encaixava perfeitamente nos propósitos de Constantino, e por isso ele teve o cuidado de so¬mente se deixar batizar no leito de morte.<br />Por outro lado, os que acham que Constantino se con¬verteu simplesmente por oportunismo político estão equivo¬cados, por diversas razões. A primeira delas é que esta interpretação é anacrônica demais, isto é, alheia aos costumes daquela época. <br />Até onde sabemos, ninguém em toda a antiguidade se acercou da questão religiosa com o oportunismo político que tem sido característico da idade moderna. <br />Para os antigos, os deuses eram realidades bem concretas, e mesmo os mais céticos temiam e respeitavam os poderes sobrenaturais. Por isso, pensar que Constantino foi hipócrita ao se declarar cristão, sem crer de fato em Jesus Cristo, é um anacronismo. <br />A segunda razão é que, na verdade, do ponto de vista puramente político, a conversão de Constantino aconteceu no pior momento possível. Quando Constantino adotou o labarum por emblema (estandarte dos exércitos romanos), ele estava se preparando para lutar pela cidade de Roma, centro das tradições pagãs, onde seus principais aliados eram os membros da velha aristocracia pagã, que se consideravam oprimidos por Majêncio. <br />A maior força numérica do cristianismo não estava no Ocidente, onde governava Constantino e onde ele lutava contra Majêncio, mas no Oriente, para onde sua atenção seria dirigida somente anos mais tarde. Por último, a opinião oportunista é equivocada porque o grau de apoio que os cristãos poderiam ter prestado a Constantino era muito duvidoso. A igreja sempre tivera dúvidas sobre se os cristãos poderiam prestar serviço militar, e por isso o número de cristãos no exército era pequeno. <br />Entre a população civil, a maioria dos cristãos fazia parte da classe baixa, que não poderia dar muito apoio financeiro às intenções de Constantino. E, de qualquer forma, depois de quase três séculos de medo do Império, ninguém poderia predizer qual seria a reação dos cristãos diante do fenómeno inesperado de um imperador cristão.<br />O mais certo, parece, que Constantino cria mesmo no poder de Jesus Cristo. Mas esta afirmação não implica em que o imperador entendesse sua nova fé como os muitos cristãos que tinham entregue sua vida por ela a entendiam.<br />Para Constantino, o Deus dos cristãos era um ser extremamente poderoso, que estava disposto a ajudá-lo sempre e quando ele favorecesse os seus fiéis. <br />Quando Constantino, portanto, começou a construir igrejas e a proclamar leis favoráveis ao cristianismo, ele não estava tanto buscando o favor dos cristãos, mas o do seu Deus. <br />Este Deus lhe tinha dado a vitória em Ponte Mílvio, e muitas outras batalhas que se seguiram. Em certo sentido, a fé de Constantino era semelhante à de Licínio, que disse aos seus soldados que o labarum de Constantino possuía certo poder sobrenatural, e que todos deveriam temê-lo. <br />A diferença era que Constantino tinha se apropriado desse poder, servindo a causa dos cristãos. Esta interpretação encontra apoio nas declarações do próprio Cons¬tantino que a história conservou, que nos mostram um homem sincero, cuja compreensão do evangelho era reduzida.<br />Constantino interpretava a fé em Jesus Cristo de uma ma¬neira que não o impedia de adorar a outros deuses. Seu pai já tinha sido devoto do Sol Invicto. Este era um culto ao Deus Supremo, cujo símbolo era o sol, mesmo não negando a existência de outros deuses. <br />Parece que Constantino, durante boa parte da sua carreira política, pensou que o Sol Invicto e o Deus dos cristãos eram o mesmo ser, e que os outros deuses também eram reais e relativamente poderosos, apesar de serem divindades subalternas. <br />Por essa razão Constantino podia consultar o oráculo de Apoio, aceitar o título de sumo sacerdote dos deuses tradicionalmente conferido aos imperadores, e participar de cerimónias pagãs de todos os tipos sem pensar com isso estar traindo ou abandonando o Deus que lhe tinha dado a vitória e o poder.<br />Além disso Constantino era um político hábil. Ele tinha tanto poder que podia favorecer os cristãos, construir igrejas, e até se apossar de algumas imagens de deuses para mandá-las para Constantinopla. <br />Mas, se ele quisesse suprimir todo o culto pagão, o imperador imediatamente teria de enfrentar uma opo¬sição irresistível. Os velhos deuses não estavam totalmente esquecidos. A velha aristocracia e as extensas zonas rurais ainda não tinham sido penetradas pela pregação cristã. No exército havia muitos seguidores de Mitras e de outros deuses. A Academia de Atenas e o Museu de Alexandria, os dois grandes centros de estudo da época, se dedicavam ao ensino da velha sabedoria pagã. <br />Querer suprimir tudo isso através de um man¬dato imperial era impossível — ainda mais porque o imperador não via nenhuma contradição entre o culto ao Sol Invicto e a fé cristã.<br />E a política religiosa de Constantino seguiu um processo lento, mas constante. O mais provável é que isso não foi causado somente por exigência das circunstâncias, mas também por um progresso interno no próprio Constantino, à medida que ele deixava atrás de si a velha religião e compreendia melhor o alcance da nova. <br />No começo Constantino se limitou a garantir a paz da igreja, e a lhe devolver as propriedades que tinham lido confiscadas durante a perseguição. Pouco depois ele começou a apoiar a igreja mais decididamente, como por exemplo, doando-lhe o palácio de Latrão, em Roma, que pertencia à família de sua esposa, e ordenando que os bispos que se dirigiam para o sínodo de Aries, em 314, utilizassem os meios de trans¬porte imperiais, sem nenhum ónus para a igreja. <br />Ao mesmo tempo, entretanto, ele tentava manter boas relações com os devotos dos cultos antigos, e particularmente com o Senado romano. O Império oficialmente era pagão, e correspondia a Constantino, como cabeça do Império, o título de sumo sacerdote. <br />Negar-se a aceitá-lo seria rejeitar de chofre todas as antigas tradições do Império -- e Constantino não estava disposto a tanto. Até o ano 320 as moedas de Constantino, frequentemente, apresentavam os símbolos e os nomes dos velhos deuses, se bem que muitas já continham também o monograma de Cristo.<br />A campanha contra Licínio deu a Constantino uma nova oportunidade de aparecer como o campeão do cristianismo. Era precisamente nos territórios que antes tinham pertencido a Licínio que a igreja era numericamente mais forte. Por isto Constantino pôde nomear vários cristãos para cargos elevados na máquina administrativa do governo, e até pareceu que ele favorecia os cristãos, em detrimento dos pagãos. <br />Ao mesmo tempo suas desavenças com o Senado romano aumentavam, sendo que este inclusive empreendeu uma campanha para reavivar a antiga religião, de modo que Constantino se sentiu cada vez mais inclinado a favorecer os cristãos.<br />Em 324, uma ordem imperial determinou que todos os soldados adorassem o Deus supremo no primeiro dia da semana. Este era o dia em que os cristãos celebravam a ressurreição do seu Senhor, mas era também o dia dedicado ao culto do Sol Invicto, e por isso os pagãos não podiam se opor a esse edito. <br />No ano seguinte, 325, reuniu-se em Nicéia a grande assembléia de bis¬pos conhecida como o primeiro concílio ecuménico, de que falaremos mais à frente. Essa assembleia foi convocada por Constantino, e os bispos viajaram às expensas do tesouro imperial.<br />A fundação de Constantinopla foi um passo adiante nesse processo. Já o fato de criar uma "nova Roma" em si era uma tentativa de fugir do poder das velhas famílias pagãs da aristocracia romana. Mas principalmente a política de utilizar os tesouros artísticos dos templos pagãos para a construção de Constantinopla fez com que o velho paganismo, até então rodeado de riquezas e pompa, ficasse cada vez mais pobre. <br />É verdade que durante o governo de Constantino foram construídos e restaurados alguns templos pagãos. Em termos gerais, porém, os santuários pagãos perderam muito do seu esplendor, ao mesmo tempo que eram construídas enormes e suntuosas Igrejas cristãs.<br />Apesar de tudo isso, até quase o fim dos seus dias Constantino continuou se comportando como o sumo sacerdote do paganismo. Quando ele morreu, seus três filhos, que lhe sucederam, não se opuseram ao desejo do Senado de divinizá-lo, e assim surgiu o fato bizarro de que Constantino, que tanto tinha feito de mal ao culto pagão, passou a ser um dos seus deuses.<br />O impacto de Constantino<br />O impacto da conversão de Constantino sobre a vida da igreja foi tão grande que se fará sentir durante toda a narrativa da história do cristianismo, até os nossos dias. <br />Por isso, o que importa aqui não é tanto mostrar as últimas consequências desse acontecimento, mas suas consequências imediatas, durante o quarto século.<br />Naturalmente, a consequência mais imediata e notável da conversão de Constantino foi o fim das perseguições. Até então os cristãos tinham vivido em constante temor de uma nova perseguição, mesmo em tempos de relativa paz. <br />Depois da conversão de Constantino, esse temor se dissipou. Os poucos governantes pagãos, que vieram depois dele, não perseguiram os cristãos, somente tentaram restaurar o paganismo por outros meios.<br />Tudo isso produziu, em primeiro lugar, o desenvolvimento do que poderíamos chamar de uma "teologia oficial". Deslumbrados com o favor que Constantino evidenciava em relação a eles, não faltaram cristãos que se empenharam em provar que Constantino era um eleito de Deus, e que sua obra era a consu¬mação da história da igreja. <br />Um caso típico dessa atitude foi Eusébio de Cesaréia, o historiador que não deve ser confundido com Eusébio de Nicomédia, e a quem dedicaremos uma parte do nosso estudo.<br />Outros seguiram um caminho radicalmente oposto. Para eles o fato de o imperador se declarar cristão, e que agora era mais fácil ser cristão, não era uma bênção, mas o começo de uma grande apostasia. <br />Algumas pessoas que mantinham esta atitude, mas que não queriam deixar a comunhão da igreja, se retiraram para o deserto, onde se dedicavam à vida ascética. <br />Como já não era mais possível ser martirizado, estas pessoas pensavam que o verdadeiro atleta de Jesus Cristo deveria con¬tinuar se exercitando pelo menos para a vida monástica. De maneira que o século quarto viu um grande êxodo para os deser¬tos do Egito e da Síria. Trataremos deste movimento monástico em aulas futuras.<br />Alguns dos que não viam com agrado a nova aproximação entre a igreja e o estado, simplesmente romperam a comunhão com os demais cristãos. Estes são os cismáticos, de quem falaremos também mais à frente.<br />Entre os que permaneceram na igreja, não se retirando para o deserto, nem optando pelo cisma, logo surgiu um grande despertamento intelectual. Como em todas as épocas de atividade intelectual, não faltaram os que propuseram teorias e doutrinas que o restante da igreja se viu obrigado a rejeitar. <br />A principal dessas doutrinas foi o arianismo, que deu lugar a controvérsias acaloradas sobre a doutrina da Trindade. Discutiremos depois essas controvérsias até o ano 361, em que Juliano foi proclamado imperador.<br />O reinado de Juliano foi o ponto culminante de outra atitude provocada pela conversão de Constantino: a reação pagã! O reinado de Juliano será visto em outra oportunidade.<br />A maioria dos cristãos, todavia, não reagiu à nova situação, nem com aceitação total, nem com rejeição absoluta. Para a maior parte dos líderes da igreja, as novas circunstâncias traziam consigo oportunidades inesperadas, mas também enormes perigos. <br />Por isso, ao mesmo tempo que confirmavam sua lealdade para com o imperador, como sempre o tinham feito, a maioria dos cristãos insistia em que sua lealdade final cabia somente a Deus. <br />Esta foi a atitude dos "gigantes" da igreja — Atanásio, os capadócios, Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e outros. Tanto as oportunidades como os perigos eram grandes, e por isso essas pessoas enfrentaram uma tarefa difícil. <br />Naturalmente não podemos dizer que suas atitudes e soluções foram sempre corretas. Mas dada a magnitude da tarefa que se propuseram, e dado também o impacto que sua obra teve sobre a igreja através dos séculos, temos razões de sobra para chamar o século IV — e o começo do V — de "a era dos gigantes".<br />Mas, antes de concluir, temos de mencionar algumas mudanças que ocorreram como resultado da conversão de Constantino. Referimo-nos às mudanças relacionadas com o culto.<br />Até a época de Constantino, o culto cristão tinha sido rela¬tivamente simples. No princípio, os cristãos se reuniam para adorar em casas particulares. Depois começaram a se reunir tam¬bém em cemitérios, como as catacumbas romanas.<br />No século terceiro já havia lugares dedicados especificamente para o culto. A igreja mais antiga descoberta até agora é a de Dura-Europos, que data aproximadamente do ano 270. Mas também essa igreja de Dura-Europos não passa de uma pequena habitação, decorada somente com algumas pinturas murais de caráter quase primitivo.<br />Depois da conversão de Constantino, o culto cristão começou a sentir a influência do protocolo imperial. O incenso, que até então tinha sido sinal do culto ao imperador, apareceu nas Igrejas cristãs. Os ministros que oficiavam no culto começaram a usar vestimentas ricamente ornamentadas, em sinal de respeito pelo que estava tendo lugar. <br />Pela mesma razão vários gestos de respeito normalmente feitos diante do imperador começaram a surgir também no culto. Além disso «pareceu o costume de iniciar-se o culto com uma procissão. Para dar mais destaque a esta procissão surgiram os coros, com o resultado, a longo prazo, de que a congregação participava cada vez menos do culto.<br />Por outro lado, as igrejas construídas no tempo de Constantino e dos seus sucessores contrastavam com a simplicidade da de Dura-Europos. O próprio Constantino mandou construir em Constantinopla a igreja de Santa Irene, em honra à paz. Helena, sua mãe, construiu na Terra Santa a igreja da Natividade e a do Monte das Oliveiras. <br />Ao mesmo tempo, ou por ordem do imperador, ou seguindo seu exemplo, foram construídas igrejas semelhantes nas principais cidades do Império. Essa política continuou sob o governo dos sucessores de Constantino. Quase todos eles tentaram perpetrar sua memória, construindo igrejas pomposas. <br />Apesar de quase todas as igrejas construídas por Constantino e seus sucessores mais imediatos terem desaparecido, restam suficientes documentos por escrito e restos arqueológicos para formarmos uma ideia da planta comum desses templos. <br />E como o padrão estabe¬lecido no século IV perdurou por muito tempo, outras igrejas posteriores, que existem até os dias de hoje, ilustram o estilo arquitetônico da época.<br />Algumas dessas igrejas tinham o altar no centro, e eram construídas sobre um alicerce poligonal ou quase redondo. A forrma típica das igrejas de então, porém, é a chamada "basí¬lica". Esse termo já era usado muito tempo antes para designar os grandes edifícios públicos — ou, às vezes, privados — que consistiam principalmente de um grande salão com duas ou mais filas de colunas. Como estes edifícios serviram de modelo para as igrejas construídas nos séculos quarto e seguintes, estas rtceberam o nome de "basílicas".<br />Tudo isto nos serve de exemplo do que estava acontecendo por causa da conversão de Constantino. A antiga igreja continuava seus costumes tradicionais. A ceia ainda era o principal ato de adoração, celebrada pelo menos todos os domingos. <br />Mas tudo assumia um outro aspecto, por causa da nova situação. Por isso o grande desafio que os cristãos tinham de enfrentar naquela época era até que ponto e como eles deveriam adaptar seus hábitos e costumes às novas circunstâncias. Todos concordavam em que certo grau de adaptação era necessário, pois os novos tempos requeriam novas formas de viver e de comunicar o evangelho. Todos também concordavam com que essa adaptação não deveria causar o abandono da fé tradicional da igreja. O ponto em que não havia concordância era o grau de equilíbrio que esses elementos deveriam conservar.<br />Nas aulas seguintes veremos vários exemplos de resposta que os cristãos do século IV deram a esse grande desafio trazido pela nova situação.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-58585662046493403352007-06-12T12:33:00.000-07:002007-06-12T12:54:06.041-07:00História da Igreja - Parte 9Os mestres da igreja<br /><br />No fim do século II, e no princípio do III, floresceu toda uma geração de notabilíssimos pensadores cristãos. Isto se deu em parte devido ao desafio das heresias que estavam surgindo e, em parte também, a que, graças à obra de Justino e outros como ele, ia-se tornando mais fácil construir pontes entre a fé cristã e a cultura da época.<br />Durante os primeiros anos de vida da igreja, o que os cristãos escreviam se dirigia, normalmente, a algum problema, ou questão específica e, portanto, fica difícil reconstruir a totalidade de seu pensamento. <br />Isto é certo, por exemplo, quanto às epístolas de Paulo. Por elas sabemos que Paulo era um escri¬tor e pensador de muita habilidade, e estudando-as podemos chegar a conhecer muito do pensamento paulino. Mas cada uma destas epístolas está escrita em circunstâncias concretas, e Paulo se dirige a essas circunstâncias. <br />Portanto, as epístolas de Paulo não nos dão um quadro completo de toda a teologia paulina. <br />Sabemos, por exemplo, o que Paulo pensava a respeito da ressurreição, porque na igreja de Corinto havia certas dúvidas a respeito, e o apóstolo tratou de responder a essas dúvidas. Mas com relação a muitas outras questões não nos é possível conhecer o pensamento de Paulo, simplesmente porque o apóstolo nunca teve ocasião de discuti-las em suas cartas. <br />O mesmo é certo com referência a todos os escritos cristãos do século I, e da primeira metade do II. As epístolas de Inácio nos oferecem preciosos panoramas de sua visão do martírio. Mas foram escritas durante um período de não mais de duas semanas, e portanto seria injusto esperar encontrar nelas toda uma exposição da fé cristã.<br />Mas durante a segunda metade do século II, diante dos desafios dos gnósticos e de Márciom, foi necessário que alguns cristãos tratassem sobre a totalidade da fé cristã. Com efeito, pode-se dizer que os gnósticos foram os primeiros teólogos que trataram de sistematizar toda a doutrina cristã. <br />Nesse intento de sistematização, usaram de subterfúgios para tratar da doutrina de tal modo que os demais cristãos a viram ameaçada e se dedicaram a refutar as especulações dos hereges. <br />Dado o vasto alcance dessas especulações, as obras que os cristãos escreveram contra elas tiveram que ter o mesmo alcance, e assim, surgiram os pri¬meiros escritos que nos dão uma idéia da totalidade da teologia cristã nos primeiros séculos. Estes escritos são as obras de Irineu de Leão, Clemente de Alexandria, Tertuliano de Cartago e Orígenes, também de Alexandria.<br />Irineu de Leão<br />Irineu era natural da Ásia Menor — provavelmente de Esmirna — onde nasceu por volta do ano de 130 e onde foi também discípulo do bispo Policarpo, acerca de cujo martírio falamos anteriormente. <br />Durante toda sua vida, Irineu foi um admirador de seu mestre Policarpo, e em seus escritos se refere repetidamente aos ensinos de um "ancião" - o presbítero — cujo nome não menciona, mas que parece ser Policarpo. <br />Em todo caso, por razões que desconhecemos, Irineu se transladou a Leão, no que hoje é a França. Ali chegou a ser presbítero da igreja, que o enviou a Roma com uma carta para o bispo daquela cidade. Irineu estava em Roma quando houve uma perseguição em Leão e Viena. <br />Nessa perseguição, o bispo Fotino entregou sua vida como mártir e, portanto, quando Irineu regressou a Leão ficou encarregado da direção espiritual da igreja, que o elegeu para que fosse seu bispo.<br />Irineu era antes de tudo um pastor. Seu interesse não es¬tava na especulação filosófica, nem em descobrir recônditos secretos, até então desconhecidos, mas em dirigir os seus paroquianos na sã doutrina e na vida correta. <br />Portanto, seus escritos não intentam elevar-se em altos vôos especulativos, mas pretendem simplesmente refutar os hereges e instruir os crentes. <br />Ainda que Irineu compusesse outros escritos, são duas as obras dele que se conservam: "A demonstração da fé apostólica" e "A refu¬ação da falsa gnosis", esta última melhor conhecida como "Contra as Heresias". <br />Na primeira destas obras, Irineu está tratando de instruir os seus paroquianos sobre alguns pontos da fé cristã. Na segunda refuta os gnósticos. <br />Em ambas, Irineu se limita a expor a fé que recebeu de seus mestres, sem tratar de adorná-la com especulações de sua própria lavra. Portanto, muito mais do que qualquer dos outros teólogos que estudaremos, Irineu nos mostra qual era a doutrina comum da igreja até os fins do século segundo.<br />Irineu é antes de mais nada pastor. Desse modo, ele mesmo concebe a Deus como um pastor. Deus é um ser amante que cria o mundo e a humanidade, não por necessidade, nem por erro — como pretendiam os gnósticos — mas por causa de seu próprio desejo de ter uma criação a qual amar e a qual dirigir, como o pastor dirige o seu rebanho ao redil. <br />À luz desta perspectiva, toda a história aparece como o processo mediante o qual o di¬vino pastor vai dirigindo sua criação em direção à consumação final.<br />A coroa da criação de Deus é a criatura humana. O ser humano foi criado desde o princípio como um ser livre e portanto responsável. Essa liberdade é tal, que mediante ela podemos nos conformar mais e mais à vontade e à natureza divina, e gozar de uma comunhão sempre crescente com nosso criador. <br />Mas, por outra parte, a criatura humana não foi criada desde um princípio em toda sua perfeição. Como pastor que é, Deus colocou o primeiro casal no paraíso, não em um estado de perfeição, mas "como meninos" (ou "como crianças"). <br />Isso significa que Deus tinha o propósito de que o ser humano crescesse de tal modo em comunhão com ele que, com o tempo, che¬gasse a estar ainda acima dos anjos.<br />Os anjos são seres superiores a nós somente provisoriamente. Quando se cumprir na humanidade o propósito divino, os seres humanos estarão acima dos anjos, pois gozaremos de uma comunhão com Deus mais estreita que a deles. <br />A função dos anjos é semelhante à do tutor que dirige os primeiros passos de um príncipe. Ainda por um momento o tutor está acima do príncipe, mas com o tempo será subordinado a ele.<br />Deus criou então a humanidade "como crianças", para que fossem crescendo e se acostumando à comunhão com o Senhor. Além dos anjos, Deus contava com suas duas "mãos" — o Verbo e o Espírito Santo — para dirigir e instruir a humanidade. <br />Guiados por essas mãos, os seres humanos receberiam instrução e crescimento, preparando-se cada vez mais para uma comunhão mais e mais íntima com Deus. <br />Isto é o que Irineu chama de "divinização". O propósito último de Deus é fazer-nos cada vez mais semelhantes a ele. Isto não quer dizer que, de algum modo, nos dissolveremos na divindade, nem que chegaremos a ser iguais a Deus. Ao contrário, Deus se encontra tão acima de nós que por mais que cresçamos em nossa semelhança a Ele, sempre haverá caminho por andar.<br />Mas um dos anjos, Satanás, sentiu ciúmes do destino tão elevado que Deus reservava à criatura humana e, portanto, tentou e fez pecarem Adão e Eva. <br />Como resultado do pecado, a criatura humana foi expulsa do paraíso, e seu crescimento ficou torcido. Portanto, a história tal como se desenvolveu é resultado do pecado.<br />Mas, se bem que o conteúdo concreto da história da humanidade é resultado do pecado, o fato de que haja história não o é. Deus sempre teve o propósito de que houvesse história. O paraíso não era senão o ponto de partida nos propósitos de Deus para com a humanidade.<br />O mesmo se pode dizer com respeito à encarnação de Deus em Jesus Cristo. A encarnação não é o resultado do pecado humano. Ao contrário, desde o princípio Deus tinha o propósito de se unir à humanidade como o fez em Jesus Cristo. <br />De fato, o Verbo encarnado foi o modelo que Deus utilizou ao criar o ser humano segundo sua "imagem e semelhança". Adão e Eva foram criados para que, depois de um processo de crescimento e instrução, chegassem a ser como o Verbo que havia de encarnar. Por causa do pecado, o que sucedeu é que a encarnação tomou outro propósito, e veio a ser também remédio contra o pecado e meio para a derrota de Satanás. <br />Ainda antes da encarnação, e desde o momento do primeiro pecado, Deus esteve dirigindo a humanidade em direção a uma comunhão mais íntima com ele. Por isso é que Deus "maldiz" à serpente e à terra, enquanto que só "castiga" ao homem e à mulher. No momento das maldições, Deus continua levando a cabo seus propósitos redentores.<br />Nesses propósitos, o povo de Israel cumpre um papel importantíssimo, pois é na história do povo escolhido que as mãos do Senhor têm continuado a preparar a humanidade para a comunhão com Deus. Portanto, o Antigo Testamento não é a revelação de um Deus estranho à fé cristã, mas é a história de como Deus continuou os seus propósitos redentores mesmo depois do pecado de Adão e Eva.<br />Por fim, ao chegar o momento adequado, quando a humanidade tivesse recebido a preparação necessária, o Verbo se encarnou em Jesus Cristo. Jesus é o "segundo Adão" porque em sua vida, morte e ressurreição foi criada uma nova humanidade, e em todas suas ações, Jesus foi corrigindo o mal que fora feito no primeiro pecado. <br />Mas, além disso, Jesus derrotou o maligno, e nos fez possível viver uma nova liberdade. Quem está unido a ele, mediante o batismo, a fé e a comunhão, participa de sua vitória. <br />Jesus Cristo é literalmente a cabeça da igreja, que é seu corpo. O corpo se nutre mediante a adoração — particularmente a eucaristia — e de tal modo está unido à cabeça que já vai recebendo os benefícios da vitória de Cristo. Em sua ressurreição começou a ressurreição final, da qual todos os que formam parte de seu corpo são participantes.<br />Quando chegar a consumação final, e o Reino de Deus se estabelecer, isto não vai querer dizer que a tarefa de Deus como pastor terá terminado. Ao contrário, a humanidade redimida continuará crescendo em comunhão com Deus, e o processo de divinização continuará por toda a eternidade, levando-nos sempre para mais perto de Deus.<br />Em resumo, a teologia de Irineu consiste em uma grandiosa e ampla visão da história, de tal modo que os propósitos de Deus vão se cumprindo através dela. <br />Nessa história, o ponto central é a encarnação de Jesus Cristo, não simplesmente porque Ele tenha vindo corrigir a carreira torcida da humanidade, mas também e, sobretudo, porque desde o próprio momento da criação, Deus já projetava a encarnação como o ponto culminante de sua obra. O propósito de Deus é unir-se ao ser humano, e isto ocorreu em Jesus Cristo de um modo inigualável.<br />Clemente de Alexandria<br />Muito diferentes são os interesses e a teologia de Clemente de Alexandria. Ao que parece, Clemente era natural de Atenas, a cidade que durante séculos havia sido famosa por seus filósofos.<br />Seus pais eram pagãos; mas o jovem Clemente se con¬verteu de algum modo que desconhecemos, e se lançou então em busca de quem pudesse ensiná-lo mais sobre o cristianismo. <br />Depois de viajar por uma boa parte do Mediterrâneo, encontrou em Alexandria um mestre que o satisfez. Este mestre era Panteno, de quem é pouco o que sabemos. Mas, em todo caso, Clemente permaneceu em Alexandria, e sucedeu a Panteno. <br />No ano 202, por causa da perseguição de Sétimo Severo, Clemente viu-se obrigado a abandonar Alexandria, e andou por várias regiões do Mediterrâneo oriental — parti-cularmente Síria e Ásia Menor — até sua morte, que teve lugar por volta do ano 215.<br />Alexandria, cidade onde Clemente recebeu sua formação teológica e onde primeiro exerceu seu magistério, era o centro em que se encontravam todas as diversas doutrinas que circulavam nessa época, e era também, portanto, o centro da febre sincretista que se alastrava. <br />Sobre isso temos um testemunho interessantíssimo em que o imperador Adriano escreve a seu cunhado, o cônsul Serviano, a respeito do Egito, cuja capital era Alexandria:<br />Queridíssimo Serviano, o Egito que tanto elogiavas parece-me ser leviano, vacilante e borboleteador entre os rumores de cada momento. Os que adoram a Serápis são cristãos. E os que se dão o título de bispos de Cristo são devotos de Serápis. Não há chefe da sinagoga dos judeus, nem samaritano, nem presbítero cristão, que não seja também numerólogo, adivinho e saltimbanco. (...) São gente altamente sediciosa, vã e injuriosa, e sua cidade é rica, opulenta, fecunda. Nela ninguém está ocioso. Uns sopram vidro, e outro fabricam papel, e todos parecem ser tecedores de linho ou têm algum ofício. Têm trabalho os reumáticos, os mutilados, os cegos, e até os inválidos. O único Deus de todos eles é o dinheiro, a quem adoram os cristãos, os judeus e toda classe de pessoas. <br />Pelo resto da carta de Adriano, sabemos que ele estava irado com os alexandrinos, e por isso tudo o que havia visto naquela cidade parecia-lhe mal. <br />Até o fato de que todos estivessem ocupados dava-lhe ocasião para criticar a vida dos alexandrinos. Mas ainda descontando a má vontade do imperador, esta carta nos dá a impressão de uma cidade rica, com grande atividade comercial e intelectual, em que entretanto se entremesclavam e confundiam toda sorte de doutrinas.<br />Por outro lado, Adriano não menciona as verdadeiras glórias de Alexandria. Além do seu farol, que era uma das sete maravilhas da antiguidade, Alexandria contava com sua famo¬síssima biblioteca e com seu Museu, ou templo das musas, isto é, algo assim como uma universidade. <br />Ali se encontravam os mais importantes pensadores do momento e, portanto, Alexandria era conhecida em todo o Império como o centro da vida intelectual do Mediterrâneo.<br />Foi nessa cidade que Clemente encontrou Panteno, e formou sua teologia. Portanto, não é de se estranhar que o seu próprio pensamento mostre notáveis afinidades ao pensamento filosófico de sua época. <br />Além disso, Clemente não foi pastor como Irineu, mas sim mestre, e mestre de intelectuais. Assim, o que ele busca não é tanto expor a fé tradicional da igreja, nem guiar todo o rebanho de tal modo que evite cair nas redes das heresias, mas, antes, procura ajudar os que buscam as verdades mais profundas e convencer os intelectuais pagãos de que o cristianismo não é, depois de tudo, a religião absurda que pretendem seus inimigos.<br />Em sua "Exortação aos pagãos", Clemente dá mostras de seu método teológico ao apelar a Platão e outros filósofos. "Busco conhecer a Deus e não só as obras de Deus. Quem me ajudará em minha busca? (...) Como então, oh Platão, há de se buscar a Deus?" <br />O propósito de Clemente, nesta passagem, é mostrar aos seus feitores pagãos que boa parte das doutrinas cristãs encontra apoio nos ensinos de Platão. Desse modo os pagãos poderão se aproximar do critianismo sem crer que se trata, como diziam muitos, de uma religião de pessoas igno¬rantes e supersticiosas.<br />Mas a razão pela qual Clemente apela a Platão não é somente a conveniência do argumento. Clemente está convencido de que a verdade é uma só e de que, portanto, qualquer verdade que Platão tenha conhecido não pode ser diferente da verdade que se revelou em Jesus Cristo e nas Escrituras. <br />Segundo ele, a filosofia foi dada aos gregos da mesma forma que a Lei foi dada aos judeus. E tanto a filosofia como a Lei têm o propósito de levar à verdade última, que nos foi revelada em Jesus Cristo. <br />Os filósofos são para os gregos o que os profetas foram para os judeus. Com os judeus, Deus estabeleceu o pacto da Lei; e com os gregos, o da filosofia.<br />Como então haveremos de coordenar o que nos dizem os filósofos com o que nos dizem as Escrituras? À simples vista, parece haver uma distância enorme entre ambos. Mas, segundo Clemente, um estudo cuidadoso das Escrituras nos levará às mesmas verdades que os filósofos ensinaram. <br />Isto se deve a que todas as Escrituras estão escritas em alegorias ou, como diz Clemente, em parábolas. O texto sagrado tem sempre mais de um sentido. O sentido literal não deve ser desprezado. Mas quem fica ali é como o menino que se contenta em beber leite e nunca chega a ser adulto. <br />Além do sentido literal, encontram-se outros sentidos que o verdadeiro sábio descobrirá. A relação entre a fé e a razão é muito estreita, pois uma não pode funcionar sem a outra. A razão sempre constrói seus argumentos sobre a base de certos princípios que ela mesma não pode demonstrar, mas que aceita pela fé. <br />Para o sábio, a fé há de ser, então, o primeiro princípio, o ponto de partida, sobre o qual a razão há de construir seu edifício. Mas o cristão que permanece na fé, semelhantemente ao que não vai além do sentido literal das Escrituras, é como um menino de leite, que não pode crescer por falta de alimento sólido.<br />Diante de tais pessoas, que se contentam com os rudimentos da fé, se encontra o sábio ou, como diz Clemente, o "verdadeiro gnóstico". O sábio vai mais além do sentido literal das Escrituras e dos rudimentos da fé. <br />O próprio Clemente concebe, então, sua própria tarefa, não como a do pastor que guia o rebanho, mas como a do "verdadeiro gnóstico" que dirige outros de inclinações semelhantes. <br />Naturalmente, isto tende a produzir uma teologia do tipo elitista, e Clemente tem sido criti-cado, frequentemente, por essa tendência em seu pensamento.<br />Quanto ao conteúdo da teologia de Clemente, diremos pouco. Ainda que ele pense estar simplesmente interpretando as Escrituras, sua exegese alegórica torna possível encontrar na Bíblia ideias e doutrinas que vêm antes da tradição platónica. <br />Deus é o Um Inefável, acerca do qual é impossível dizer qualquer coisa em sentido correto. Tudo o que podemos dizer de Deus consiste em negar-lhe todo limite. O mais é linguagem metafórica, que nos é útil porque não temos outra, mas que, entretanto, não descreve verdadeiramente Deus.<br />Este Ser Inefável dá-se a conhecer no Verbo, que revelou aos filósofos e aos profetas toda a verdade que souberam, e que ultimamente se encarnou em Jesus Cristo. <br />Em tudo isto. Clemente segue a Justino e, em certa medida, ao filósofo judeu alexandrino Filo, a quem já nos referimos anteriormente. Mas sua ênfase na encarnação do Verbo faz que sua teologia seja cristocêntrica.<br />Por outro lado, a importância de Clemente não está no que ele tenha dito sobre tal ou qual doutrina, mas no modo em que seu pensamento é característico de todo um ambiente e tradição que se forjaram na cidade de Alexandria, e que seria de grande importância para o curso posterior da teologia. <br />Mais adiante, ao tratarmos sobre Orígenes, vere¬mos o conteúdo desta teologia em toda sua maturidade e, por¬tanto, não é necessário que nos detenhamos aqui para expô-lo. Basta-nos dizer que se trata de um tipo de teologia cuja preocupação fundamental consiste em construir pontes entre a fé cris¬tã e a cultura que a rodeia. <br />É uma teologia construída mais para as pessoas cultas do que para as massas.<br />Tertuliano de Cartago<br />Todo o contrário sucede no caso de Tertuliano. Ao que parece, Tertuliano nasceu na cidade africana de Cartago por volta do ano 150, mas foi em Roma, quando contava uns qua¬renta anos, que se converteu ao cristianismo. <br />Algum tempo depois, regressou à sua cidade natal, onde se dedicou a escrever em defesa da fé contra os pagãos, e em defesa da ortodoxia contra os hereges. <br />Já que, ao que parece, era advogado — ou ao menos havia sido adestrado na ciência retórica, e nos procedimentos que usavam os advogados — toda sua obra leva o selo de uma mente legal. <br />Anteriormente, citamos seu comen¬tário sobre a "sentença injusta" de Trajano. Ao lermos aquelas linhas, vem-nos à mente a imagem de um advogado que apela a um tribunal superior contra a sentença injusta de um tribunal inferior. <br />Em outro tratado, escrito também contra os pagãos, e que leva o título de "O testemunho da alma", Tertuliano coloca a alma pagã no banco das testemunhas e, depois de interrogá-la no estilo de um advogado em um tribunal, chega à conclu¬são de que até uma alma pagã é "por natureza cristã" e que, se persiste em rejeitar o cristianismo, isto se dá por obstinação e cegueira.<br />Entretanto, a obra em que deveras pode-se ver o espírito legal de Tertuliano é sua "Prescrição contra os hereges". Na linguagem legal da época, o termo "prescrição" tinha pelo me¬nos dois sentidos. <br />Em primeiro lugar, uma "prescrição" era um argumento legal que se apresentava antes do caso mesmo, para demonstrar que o julgamento não devia existir. <br />Se, ainda antes de começar a debater o que se pleiteava, uma das partes podia provar que a outra não tinha direito de apresentar demanda, ou que a demanda não estava correta, ou que o tribunal não tinha jurisdição, cancelava-se o julgamento. <br />O outro sentido da palavra "prescrição" aparecia em geral na frase "prescrição de longo tempo". O que isto queria dizer era que, se alguém havia estado de posse de uma propriedade, ou de urn direito por certo tempo, e ninguém o havia disputado, essa pessoa ficava de posse legal da propriedade, ou do direito em questão, ainda que aparecesse depois quem o reclamasse.<br />Tertuliano utiliza o termo em ambos os sentidos, como se tratasse de um pleito entre a igreja ortodoxa e os hereges. Seu propósito é demonstrar, não simplesmente que os hereges não tem razão, ou que estão equivocados, mas, ainda mais, que nem sequer têm direito a entrar em discussão com os ortodoxos. <br />Com efeito, as Escrituras são propriedade da igreja. Durante várias gerações, a igreja as utilizou sem que ninguém as disputasse. Ainda quando não fossem originalmente sua propriedade, já de fato o são. Portanto, os hereges não têm direito algum ao utilizá-las. <br />Os hereges chegaram de última hora e pretendem mudar o que, por sua origem e por prescrição de longo tempo, per¬tence à igreja.<br />Que as Escrituras são propriedade da igreja, pode-se demons¬trar facilmente, bastando para isso olhar as igrejas apostólicas, onde essas Escrituras foram lidas e interpretadas de igual modo desde os tempos dos apóstolos. <br />Roma, por exemplo, pode mostrar uma linha ininterrupta de bispos que se remontam até os apóstolos Pedro e Paulo. E o mesmo se pode dizer de Antioquia e de várias outras igrejas. <br />Todas essas igrejas apostólicas concordam no uso e interpretação das Escrituras, segundo vieram fazendo desde os seus primórdios. Ademais, por suas próprias origens, os escritos dos apóstolos são propriedades dessas igrejas, pois foi a elas que os apóstolos os legaram.<br />Tudo isto quer dizer que, se as Escrituras são propriedade da igreja, os hereges não têm direito de discutir com os orto¬doxos sobre a base das Escrituras. <br />Aqui aparece a "prescrição" no outro sentido. Se os hereges não têm direito a interpretar as Escrituras, toda discussão com eles acerca dessa interpretação é desnecessária. A igreja, dona das Escrituras, é a única que tem o direito de utilizá-las e empregá-las.<br />Este argumento contra os hereges, utilizado pela primeira vez por Tertuliano, foi empregado, repetidamente, em ocasiões posteriores contra toda classe de dissidentes. <br />Por certo, foi um dos principais argumentos utilizados pelos católicos contra os protestantes a partir do século XVI. No caso de Tertuliano, entretanto, devemos notar que a razão última pela qual a igreja tem direito às Escrituras é que pode mostrar uma uniformidade, não só de sucessão formal, mas também de doutrina, através de todas as gerações a partir dos apóstolos. <br />Isto era precisamente o que se discutia no século XVI, pois os protestantes diziam que a igreja católica se havia desviado de sua própria doutrina inicial.<br />Mas o espírito legalista vai muito mais além destes argumentos. Com efeito, Tertuliano pensa que a promessa bíblica, no sentido de que quem busca há de achar, quer dizer que, uma vez que alguém encontrou a fé cristã, toda busca deve cessar. Para o cristão, então, toda busca é uma falta de fé.<br />Buscarás até que encontres, e uma vez que o hajas encontrado, hás de crer. A partir de então, tudo o que tens de fazer é guardar o que tens crido. E ademais crerás que nada mais há que tenha de ser crido, nem nada mais tenha de se buscar. (Prescrição, 9).<br />Isto quer dizer que basta a "regra de fé" da igreja e que toda outra busca é perigosa. Naturalmente, Tertuliano permite que os cristãos tratem de aprender mais sobre essa regra de fé. <br />Mas tudo o que sai dela, ou que venha de outras fontes, deve ser rejeitado. Isto é particularmente certo na filosofia pagã, ante a qual Tertuliano toma uma posição radicalmente oposta à de Clemente. <br />Anteriormente, citamos suas palavras contrastando Atenas com Jerusalém. A mesma ati-tude prevalece em sua opinião sobre a dialética, isto é, sobre o método da filosofia.<br /><br />Miserável Aristóteles, que lhes deu a dialética! Deu-lhes a arte de construir para derribar, uma arte de sentenças escorregadias e de argumentos crus, (...) que serve para rejeitar tudo, e que, no final das contas, não trata de nada (Prescrição, 7).<br />Em resumo, Tertuliano opõe-se a toda especulação. Falar, por exemplo, do que Deus pode fazer baseando-se em sua onipotência, é perder tempo e arriscar-se a cair em erro. <br />O que devemos nos perguntar não é o que Deus pode fazer, mas sim, o que de fato Deus já fez. Isto é o que ensina a igreja. Isto é o que se encontra nas Escrituras. O mais é curiosidade ociosa e por demais perigosa.<br />Mas isto não implica que Tertuliano não seja capaz de utilizar argumentos lógicos contra seus adversários. Ao contrário, a lógica de Tertuliano é frequentemente esmagadora, como vimos no caso da "Prescrição". <br />Mas o vigor de seus argumentos se encontra, mais que em sua lógica, em sua habilidade retó¬rica, que chega até ao sarcasmo. A Márciom, por exemplo, Tertuliano diz que o Deus da igreja criou todo este mundo com suas maravilhas, e então desafia o seu contendor a mostrar-lhe um insignificante vegetal feito por Deus. <br />E logo lhe pergunta sarcasticamente em que se ocupava seu deus antes de se revelar há uns poucos anos atrás. Será que não amava a humanidade até a última hora?<br />Deste modo, mediante uma inigualável combinação de ironia mordaz com uma lógica inflexível, Tertuliano se converteu na chibata aos hereges e campeão da ortodoxia.<br />Entretanto, por volta do ano 207, aquele rude inimigo dos hereges, aquele tenaz defensor da autoridade da igreja, uniu-se ao movimento montanista, que o resto dos cristãos considerava herético. <br />Esse passo dado por Tertuliano é um dos misté¬rios insolúveis da história da igreja, pois seus próprios escritos e os demais documentos da época nos dizem pouco sobre as suas motivações. <br />Portanto, é impossível dizer, com segurança, por que Tertuliano se fez montanista. Mas podemos, mediante o estudo do montanismo e do caráter de Tertuliano, ver algo da afinidade que existia entre ambos.<br />O montanismo recebe esse nome do seu fundador, Montano, que havia sido sacerdote pagão até a sua conversão por volta do ano 155. Algum tempo depois, Montano começou a profetizar, dizendo que havia sido possuído pelo Espírito Santo. <br />Logo se uniram duas mulheres, Priscila e Maximila. Isto em si não era novo, pois nessa época ainda continuava a prática de permitir a quem recebesse esse dom que profetizasse nas igrejas. <br />E um costume corrente, desde o princípio, era assegurar-se de que o que tais profetas diziam concordava com a doutrina cristã. No caso de Montano e seus seguidores, logo as autoridades eclesiásticas começaram a ter dúvidas, pois os montanistas diziam que com eles havia começado uma nova era. <br />Do mesmo modo que em Jesus Cristo se havia iniciado uma nova idade, agora estava sucedendo o mesmo com a dádiva do Espírito Santo aos montanistas. <br />Essa nova idade se caracterizava por uma vida moral mais rigorosa, do mesmo modo que o Sermão da Montanha tinha ensinado uma doutrina mais rigorosa que a do Antigo Testamento.<br />A razão pela qual o resto da igreja se opôs à pregação dos montanistas não foi sua ênfase nas profecias, mas a sua pretensão de que agora começava uma nova era, o fim da história. <br />De acordo com o Novo Testamento, os últimos tempos começaram com a advento e a ressurreição de Jesus Cristo, e com a dádiva do Espírito Santo. <br />Com o correr dos anos, isto foi sendo esquecido, até ao ponto que a nós, hoje, torna-se difícil concebê-lo assim. Mas no século II a igreja seguia afirmando que o fim havia começado em Jesus Cristo. <br />Portanto, afirmar, como o faziam os montanistas, que o fim havia começado agora, com a dádiva do Espírito a Montano e aos seus, era diminuir a importância dos acontecimentos do Novo Testamento e pretender que o evangelho não era senão uma etapa a mais na história da salvação. Tais doutrinas a igreja não podia aceitar.<br />Tertuliano, entretanto, parece haver sentido atração pelo rigorismo dos montanistas. Sua mente legalista exigia uma ordem perfeita, em que tudo se fizesse como era devido. <br />Na igreja, apesar de todos seus esforços para cumprir a vontade de Deus, haviam demasiadas imperfeições que não se enquadravam com o legalismo de Tertuliano. <br />O único modo de explicar essas imperfeições, e de sobrepor-se a elas, consistia em crer que a igreja era só uma etapa intermediária, e que, agora, havia começado uma nova era do Espírito, em que todas essas imperfeições ficavam para trás. <br />Naturalmente, tais esperanças foram frustradas, e o fato é que, até o fim de seus dias, Tertuliano parece haver fundado a seita dos "tertulianistas", provavelmente um grupo de pessoas que cria que até os montanistas se haviam tornado demasiadamente flexíveis. <br />Em todo caso, o fenômeno que vemos em Tertuliano aparece repetidamente na história da igreja em dois sentidos: Primeiro, uma ou outra vez, vemos o conflito entre pessoas que insistem que a igreja deve ser uma comunidade absolutamente pura, e outras que respondem que há de ser antes de tudo uma comunidade de amor, em que todos encontrem aceitação. <br />Segundo, repetidamente, vemos que existe uma relação paradoxal entre a busca da "liberdade" do Espí¬rito e a insistência no rigor da lei. Tertuliano é exemplo característico de tudo isto.<br />Mesmo depois de fazer-se montanista, Tertuliano não deixou de atacar aqueles que, a seu parecer, torciam a fé cris¬tã. Várias de suas obras do período montanista foram de grande importância no desenvolvimento posterior da teologia. E nenhu¬ma o foi tanto como seu tratado "Contra Práxeas".<br />O que sabemos acerca da pessoa de Práxeas é pouco ou nada. Alguns eruditos pensam que nunca houve tal pessoa, e que "Práxeas" é simplesmente o bispo de Roma, Calixto, a quem, por alguma razão, Tertuliano evita chamar pelo nome. <br />Em todo caso, torna-se claro que o tal Práxeas havia chegado a ter certo poder na igreja de Roma, e que ali havia utilizado esse poder para se opor ao montanismo e para propor a sua própria interpretação acerca das relações entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. <br />Segundo Práxeas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram três modos em que Deus se manifestava, de maneira que Deus às vezes era Pai, outras Filho e outras Espírito. Esta é a doutrina que recebe o nome de "Patripassionismo". Segundo esta doutrina o Pai sofreu a paixão, pois o Filho é o Pai.<br />Tertuliano começa seu tratado "Contra Práxeas" com sua mordacidade característica:<br />Práxeas serviu ao diabo em Roma de dois modos: expulsando a profecia e introduzindo a heresia, expul¬sando o Espírito e crucificando o Pai ("Contra Práxeas", 1).<br />Mas logo Tertuliano deixa este tom para propor sua própria fórmula a respeito do modo em que se deve entender a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. <br />Essa fórmula é que há em Deus "uma substância e três pessoas". A importância disso é enorme, pois Tertuliano foi a primeira pessoa a referir-se à Trindade mediante o uso desta fórmula, que depois chegaria a ser aceita de um modo geral. <br />Isto não quer dizer, naturalmente, que Tertuliano "inventou" a doutrina da Trindade, mas sim, que ele foi a pessoa que criou o vocabulário que, com o correr do tempo, se tornou comum.<br />De igual modo, e também em resposta a outras opiniões de Práxeas, Tertuliano disse que há em Cristo "uma pessoa" e "duas substâncias ou naturezas": a divina e a humana. <br />Também esta fórmula, utilizada pela primeira vez por Tertuliano, veio a ser a fórmula geralmente aceita para expressar a relação entre a divindade e a humanidade em Jesus Cristo.<br />Por todas estas razões, Tertuliano é um personagem único na história da igreja. Ardente defensor da ortodoxia diante de toda classe de heresias, terminou por se unir a um dos movimentos que o resto da igreja considerava herético. <br />E, ainda de¬pois de herege, continuou produzindo obras e fórmulas teológicas que seriam de grande importância no curso futuro da igreja. Além disso, foi ele o primeiro teólogo cristão que escreveu em língua latina, que era a língua comum na metade ocidental do Império e, portanto, seu pensamento influiu notavelmente sobre toda a teologia ocidental.<br />Orígenes de Alexandria<br />O mais importante discípulo de Clemente de Alexandria, e o último dos quatro grandes mestres da igreja que discutiremos agora, é Orígenes. <br />Diferentemente de seu mestre Clemente, Orígenes era filho de pais cristãos. Durante a perse¬guição de Sétimo Severo — a mesma que obrigou Clemente a abandonar Alexandria — o pai de Orígenes foi feito prisioneiro e sofreu o martírio. <br />Orígenes, que na época era ainda um jovenzinho, quis se unir a seu pai no cárcere para sofrer o martírio junto com ele. Mas sua mãe escondeu suas roupas, e Orígenes viu-se obrigado a permanecer em casa, onde dedicou a seu pai um tratado em que o exortava a ser fiel até a morte.<br />Pouco tempo depois destes acontecimentos, Demétrio, o bispo de Alexandria, pôs sobre os ombros de Orígenes, que apenas contava com dezoito anos de idade, a tarefa de preparar os candidatos ao batismo: os "catecúmenos". <br />Esta era uma grande responsabilidade, e o jovem Orígenes, que sem dúvida alguma era um gênio excepcional, chegou a ser famoso como mestre da fé cristã. <br />Depois de alguns anos de ensino aos catecúmenos, Orígenes viu a necessidade de se dedicar a discí¬pulos mais adiantados, pois muitas pessoas cultas vinham pedir sua instrução. <br />Então deixou o ensino aos catecúmenos nas mãos de alguns de seus discípulos, e dedicou-se por inteiro ao trabalho docente em uma escola cristã organizada no estilo que os grandes filósofos pagãos haviam tido anteriormente. <br />Ali vinham escutá-lo, não só cristãos de diversas partes do Império, mas também pagãos como a mãe do imperador e o governador da Arábia.<br />Por diversas razões, entre as quais não faltaram ciúmes, houve conflitos entre Orígenes e o bispo de Alexandria. O resultado desses conflitos foi que Orígenes viu-se obrigado a abandonar Alexandria e ir viver em Cesaréia, onde continuou se dedicando ao estudo e ao ensino por vinte anos mais.<br />Por fim, no tempo da perseguição de Décio, Orígenes teve ocasião de mostrar a firmeza de sua fé. Dado o caráter dessa perseguição, Orígenes não foi morto, mas torturado até o ponto em que, posto em liberdade, morreu em pouco tempo. <br />Morreu na cidade de Tiro quando tinha uns setenta anos de idade. A obra literária de Orígenes foi imensa. Uma vez que seus conhecimentos bíblicos eram enormes e estava consciente de que o texto das Escrituras continham ligeiras variantes, compôs a "Hexapla". <br />Esta era uma coleção, em seis colunas, do Antigo Testamento em diversas formas: o texto hebraico, uma transliteração em letras gregas desse mesmo texto — de modo que o leitor que desconhecia o hebraico, pudesse conhecer o som do hebraico, sobre a base do grego — e quatro versões distintas do grego. <br />Ademais, dedicou-se a comparar os diversos textos do Antigo Testamento, e produziu toda uma série de símbolos para designar variantes, omissões e adendos. <br />Além disso, Orí¬genes compôs comentários e sermões sobre boa parte do texto bíblico. E a isto devem ser acrescentados sua apologia "Contra Celso", que já citamos, e sua grande obra sistemática, "Dos primeiros princípios", mais conhecida como "De principiis". <br />O modo pelo qual Orígenes pôde escrever tantas obras dá-nos a idéia do seu gênio, pois boa parte de sua produção literária foi ditada diretamente ao discípulo ou ao escriba. E até conta-se que, em algumas ocasiões, ele chegou a ditar obras diferentes a sete amanuenses simultaneamente.<br />A teologia de Orígenes segue um espírito muito parecido ao de seu mestre Clemente. Trata-se de uma tentativa de relacionar a fé cristã com a filosofia que estava em voga em Alexandria nessa época. <br />Essa filosofia era o que os historiadores chamam "o neoplatonismo". Mas Orígenes está muito mais consciente que Clemente da necessidade de assegurar-se que esse interesse filosófico não o leve a negar alguma das doutrinas fundamentais do cristianismo. <br />De acordo com ele, "nada que difira da tradição dos apóstolos e da igreja deve ser aceito como verdadeiro" (De Principiis, prefácio, 2). <br />Essa tradição inclui, antes de tudo, a doutrina segundo a qual há um só Deus, criador e ordenador do universo e, portanto, as especulações gnósticas que pretendem que outro criou este mundo devem ser rejeita¬das. <br />Em segundo lugar, a doutrina apostólica nos ensina que Jesus Cristo é o Filho de Deus, nascido antes que todas as cria¬turas, e que se encarnou de tal modo, que, ao mesmo tempo que se fez homem, continuou sendo Deus. <br />Sobre o Espírito Santo, segundo Orígenes, a tradição apostólica não está de todo clara, exceto no sentido de que sua glória é a mesma do Pai e do Filho. <br />Por último, essa tradição afirma que a alma vai rece¬ber recompensa, ou castigo, segundo sua vida neste mundo e que, no final, haverá uma ressurreição do corpo, que se levantará incorruptível.<br />Uma vez afirmado isto, entretanto, Orígenes se sente livre para alçar-se em altos vôos especulativos. Por exemplo, desde que a tradição dos apóstolos e da igreja não nos dá detalhes acerca do modo como o mundo foi criado, Orígenes lança-se a investigar esta questão. <br />Nos primeiros capítulos de Génesis, há duas histórias da criação, fato este que conheciam os sábios judeus mesmo antes dos tempos de Orígenes, o que o deve ficar claro a quem quer que leia esses capítulos com atenção. <br />Em uma dessas histórias, a primeira, conta-se que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, e que "homem e mulher os criou". <br />Na segunda, conta-se que Deus fez primeiro Adão, de cuja costela formou depois Eva, Na primeira história, o verbo grego que se utiliza para a ação de Deus corresponde ao nosso verbo "criar", enquanto que o que aparece na segunda corresponde ao nosso "plasmar". Como explicar estas diversidades? <br />Naturalmente, Orígenes não pode recorrer, como o fazem os eruditos modernos, à explicação de acordo com a qual o que temos aqui é a conjunção de duas tradições distintas. Segundo ele, se há duas histórias da criação, isto se deve a que houve duas criações.<br />A primeira criação, segundo Orígenes, foi puramente espiritual. Os seres que Deus fez eram espíritos carentes do corpo. É por isso que o texto diz que eram "varão e fêmea", isto é, sem distinções sexuais. Também é por isso que se utiliza o verbo "criar" antes que "plasmar".<br />O propósito de Deus era que os espíritos que havia criado se dedicassem à sua contemplação. Mas alguns deles se apartaram da vista do Criador, e por isso caíram. <br />Foi então que Deus produziu a segunda criação. Esta criação é material, e foi posta como refúgio, ou lar provisório, para os espíritos caídos. <br />Desses espíritos, os que caíram mais baixo se tornaram demônios, e os demais se tornaram seres humanos. Foi para estes seres humanos que Deus criou os corpos que agora possuímos, dos quais se diz que os "plasmou" do pó da terra, e que uns são varões e outros fêmeas.<br />Naturalmente, isto quer dizer que todos os seres humanos existiam antes de nascer neste mundo, e que a razão pela qual estamos aqui é que pecamos nessa existência anterior e puramente espiritual. <br />É interessante notar que, embora Orígenes creia derivar suas ideias do texto bíblico, na realidade elas derivam de Platão, que havia ensinado que as almas se acham nesse mundo porque caíram do mundo superior das ideias puras.<br />Neste mundo, o diabo e seus demónios nos têm submetidos, e Jesus Cristo veio, portanto, para destruir o poder do diabo e para nos mostrar o caminho que devemos seguir em nosso regresso ao mundo espiritual. <br />Mas, segundo Orígenes, desde que afinal de contas o diabo é também um espírito como o nosso, e desde que Deus é amor, ao final, até o diabo se salvará, e toda a criação regressará ao seu estado inicial, quando tudo era espírito. <br />Entretanto, os espíritos seguirão sendo livres e, portanto, nada impede que haja uma nova queda, um novo mundo material e uma nova história e que, portanto, o ciclo de queda-restauração-queda continua para sempre.<br />Ao tratar de julgar tudo isto, o primeiro que temos de fazer é render tributo à amplitude de horizontes que Orígenes trata de englobar. Isto é o que tem ganho admiradores nas diversas gerações. <br />Além disso, devemos recordar que Orígenes propõe tudo isto, não como a verdade que tem de ser aceita por todos, nem como algo que será substituto, ou superará as doutrinas da igreja, mas como suas próprias especulações, que nunca deverão ter a mesma autoridade da tradição apostólica.<br />Mas, uma vez dito isto, é necessário assinalar que em muitos pontos Orígenes parece ser mais platônico do que cristão. Assim, por exemplo, Orígenes nega a doutrina dos gnósticos e de Márciom segundo a qual este mundo teria sido criado por um ser inferior. <br />Mas, no final das contas, chega à conclusão de que a existência do mundo material é o resultado do pecado, e que os propósitos iniciais de Deus não incluíam a existência deste mundo, nem da história. <br />Nisto, Orígenes contrasta com Irineu, para quem a história era parte fundamental do plano de Deus. E no que se refere à preexistência das almas e o ciclo eterno da quedas e restaurações, não há dúvidas de que Orígenes se aparta do que foi sempre a doutrina da igreja.<br />Conclusão geral<br />Vimos três tendências teológicas distintas. Irineu é o defensor da doutrina tradicional da igreja, o pastor que se preocupa em que prevaleça a sã doutrina na sua igreja. <br />Tertuliano é também defensor da doutrina tradicional, mas seu próprio legal ismo nessa defesa o leva com o tempo a romper com a mesma igreja que pretendia defender. <br />Clemente e Orígenes são mais pensadores do que pastores e, ainda que se ocupem de defender a fé diante dos pagãos, sua verdadeira preocupação está em descobrir os segredos mais elevados de Deus e de sua criação. <br />Das três correntes teológicas, é provavelmente Irineu quem mais se aproxima do espírito original do evangelho. Infelizmente, com o correr dos séculos a teologia de Irineu ficou relativamente esquecida, enquanto que o influxo dos outros dois tipos de teologia se fez sentir cada vez mais.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-79771607030069944362007-06-12T11:31:00.000-07:002007-06-12T12:04:21.883-07:00História da Igreja - Parte 8A defesa da fé<br />(texto extraído e adaptado da obra de Justo L. Gonzales, Uma História Ilustrada do Cristianismo)<br />Durante todo o século 2, e boa parte do século 3 , não houve uma perseguição sistemática contra os cristãos. Ser cristão era ilícito: mas só eram castigados quando por alguma razão os cristãos eram levados diante dos tribunais. <br />A perseguição e o martírio pendiam constantemente sobre os cristãos, como uma espada de Dâmocles. Mas que essa espada caísse, ou não, sobre suas cabeças, dependia das circunstâncias do momento, e acima de tudo da boa vontade das pessoas. <br />Se por alguma razão alguém queria destruir algum cristão, tudo o que tinha de fazer era levá-lo diante dos tribunais. Tal parece ter sido o caso de Justino, acusado por seu rival Crescente. Em outras ocasiões, como no martírio dos cristãos de Leão e Viena, era a populaça que, instigada por toda classe de rumores sobre os cristãos, exigia que fossem presos e castigados.<br />Em tais circunstâncias, os cristãos se viam na necessidade de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para dissipar os rumores e as falsas acusações que circulavam a respeito de suas crenças e de suas práticas. <br />Se conseguissem que seus concidãos tivessem um conceito mais elevado da fé cristã, ainda que não chegassem a convencê-los, pelo menos conseguiriam diminuir a ameaça da perseguição. <br />A esta tarefa se dedicaram alguns dos mais hábeis pensadores e escritores entre os cristãos, aos quais é dado o nome de "apologistas", isto é, defensores. E alguns dos argumentos em prol da fé cristã que aqueles apologistas empregaram vêm sendo utilizados na defesa da fé através dos séculos.<br />Mas, antes de passar a expor algo da obra dos apologistas, é necessário que nos detenhamos para resumir os rumores e acusações de que eram objeto os cristãos, e que os apologistas intentaram refutar.<br /><br />As acusações contra os Cristãos<br />O que se dizia sobre os cristãos pode ser classificado em duas categorias > os rumores populares e as críticas por parte da classe culta.<br />Os rumores populares se baseavam geralmente em algo que os pagãos ouviam dizer, ou viam os cristãos fazer, e então os interpretavam erroneamente. Por exemplo, os cristãos se reuniam todas as semanas para celebrarem uma refeição a que frequentemente chamavam “festa de amor". Essa refeição era celebrada privadamente, e somente eram admitidos os que haviam sido iniciados na fé, isto é, os batizados. <br />Além disso, os cristãos se chamavam "irmãos" entre si, e não faltavam casos em que homens e mulheres diziam estar casados com seus "irmãos" e "irmãs". Baseados nestes fatos, foram se tecendo rumores cada vez mais exagerados, e muitos chegaram a crer que os cristãos se reuniam para celebrar uma orgia em que se davam uniões incestuosas. <br />Segundo os rumores, os cristãos comiam e bebiam até embriagarem-se, e então apagavam as luzes e davam curso às suas paixões. O resultado era que muitos se uniam sexualmente a seus parentes mais próximos.<br />Também baseado na comunhão surgiu outro rumor. Já que os cristãos falavam de comer a carne de Cristo, e já que também falavam do menino que havia nascido em um estábulo, alguns pagãos chegaram a crer que o que os cristãos faziam era esconder um menino recém-nascido dentro de um pão, e o colocarem diante de uma pessoa que desejava ser cristã. Os cristãos então ordenavam que cortasse o pão, e logo devoravam o corpo ainda palpitante do menino. O neófito, que se havia feito participante de tal crime, ficava assim comprometido a guardar o segredo.<br />Outra estranha opinião que alguns sustentavam era que os cristãos adoravam a um asno crucificado. Algum tempo antes, haviam dito que os judeus adoravam a um asno. Agora, começaram a transferir essa opinião aos cristãos, a quem se fazia então objeto de zombaria.<br />Todas estas idéias — e muitas outras — que circulavam sobre os cristãos eram todas falsas, e para refutá-las os cristãos deviam apenas apontar para sua própria vida e conduta, cujos princípios eram muito mais restritos do que os dos pagãos. <br />Mas havia outras acusações que se faziam contra os cristãos, não pelo vulgo mal informado, mas por pessoas cultas, muitas das quais conheciam algo das doutrinas cristãs. Sob diversas formas, todas estas acusações podiam ser resumidas em uma > os cristãos eram pessoas ignorantes cujas doutrinas, pregadas sob um verniz de sabedoria, eram em realidade néscias e contraditórias. <br />Em geral, esta era a atitude que adotavam os pagãos cultos e de boa posição social, para quem os cristãos eram uma gentalha desprezível.<br />Na época de Marco Aurélio, um autor erudito, do qual só sabemos que se chamava Celso, compôs contra os cristãos um tratado que chamou "A palavra verdadeira". Ali Celso expressa o sentimento dos que, como ele, se consideravam sábios e refinados:<br />"Em algumas casas privadas encontramos com pessoas que trabalham com lã e com trapos, e como sapateiros, isto é, as pessoas mais incultas e ignorantes. Diante dos chefes de família, esta gente não se atreve a dizer uma só palavra. Mas assim que conseguem apartar-se com os me¬inos da casa, ou com algumas mulheres tão ignorantes como eles, começam a lhes dizer maravilhas. (. . .) Os que deveras queiram saber a verdade, que deixem seus mestres e seus pais, e que se juntem com as mulheres e os meninos às habitações das mulheres, ou à oficina do sapateiro, ou à selaria, e ali aprenderão a vida perfeita. É assim que estes cristãos encontram pessoas que lhes dão crédito" (Orígenes, Contra Celso, 3:55).<br />Pela mesma época, Cornélio Fronton, que havia sido mestre de Marco Aurélio, compôs outro ataque contra os cristãos que, infelizmente, se perdeu. Entretanto, é possível que o autor cristSo Minúcio Félix esteja citando a obra de Fronton ao pôr nos lábios do um pagão as seguintes palavras:<br />"Se vos permanece um ápice de sabedoria ou de vergo¬nha, deixai de investigar o que sucede nas regiões celestiais, e os destinos e segredos do mundo. Basta que olheis onde pondes os pés, sobretudo as pessoas como vós, sem educação nem cultura, as pessoas rústicas e rudes" (Otávio, 12). <br />Logo, a inimizade contra os cristãos, que muitas vezes pretendia se basear só em questões de religião e doutrinas, também tinha muito a ver com preconceitos de classe. As pessoas supostamente refinadas não podiam ver com bons olhos que essa gentalha, pobre e inculta, pretendesse conhecer uma verdade que elas não conheciam.<br />Em todo caso, as pessoas cultas atacavam o cristianismo, dizendo acima de tudo que era uma religião de bárbaros. Boa parte do que os cristãos ensinavam não havia sido descoberto pelos gregos, nem pelos romanos, mas sim pelo inculto povo judeu, cujos supostos sábios nunca se elevaram à altura dos filósofos gregos. E o pouco de bom que pode ser encontrado nas Escrituras dos Judeus deve-se provavelmente, a que fosse copiado dos gregos.<br />Além disso — seguem dizendo as pessoas como Celso, Fronton e outros — o Deus dos judeus e cristãos é um Deus ridículo. Por um lado dizem que é onipotente, e que é o ser supremo que se encontra acima de tudo. Mas por outro, o descrevem como um ser curioso, que se imiscui com todos os assuntos humanos, que está em todas as casas, vendo o que se diz e até o que se cozinha. <br />Esse modo de conceber a divindade é uma irracionalidade. Ou se trata de um ser onipotente, por cima de todos os outros seres e, portanto, apartado deste mundo, ou se trata de um ser curioso e intrometido, para quem as pequenezas humanas são interessantes.<br />Em todo caso, seja qual for esse Deus dos cristãos, o fato é que seu culto destrói a própria fibra da sociedade, pois torna as pessoas que o seguem abstêmios de toda classe de atividades sociais, sob pretexto de que participar nelas seria adorar a deuses que não existem. <br />Mas, se em verdade tais deuses não existem, para que temê-los? Por que não participar de seu culto junto a pessoas sensatas, mesmo que a gente não creia neles?<br />O fato parece ser que os cristãos, que dizem que os deuses pagãos são falsos, entretanto continuam temendo a esses deuses. Quanto a Jesus, basta recordar que foi um malfeitor condenado pelas autoridades romanas. <br />Celso chega até a dizer que era filho ilegítimo de Maria com um soldado romano. Se de fato era Deus ou Filho de Deus, porque permitiu que o crucificassem? Por quê não fez que caíssem mortos seus inimigos? Por quê não desapareceu quando iam cravá-lo no madeiro? <br />E supondo que de fato Deus veio à terra em Jesus, pergunta Celso: De que pode servir tal visita de Deus à terra? Será talvez para averiguar o que se passa entre os seres humanos? Não sabe ele já de tudo? Ou será que sabe, mas não pode corrigi-lo se não vem ele pessoalmente fazê-lo? (Con¬tra Celso, 4:2).<br />Por último, esses cristãos andam pregando e crendo que hão de ressuscitar. Baseados nessa fé, é que enfrentam o martírio com uma obstinação quase incrível. Mas não é coisa de pessoa sensata deixar esta vida, que é coisa segura, por outra vida, supostamente superior que, no melhor dos casos, é coisa duvidosa.<br />E isso de ressurreição é o cúmulo das idiotices cristãs. Como ressucitarão aqueles corpos destruídos por fogo, ou devorados por peixes ou pelas feras? Irá Deus por todo o mundo recolhendo e unindo os pedaços de cada corpo? Como se arranjará Deus, no caso daquelas porções de matéria que pertenceram primeiro a um corpo, e depois a outro? Será que o primeiro dono adjudicará esse pedaço do seu corpo? Em tal caso, ficará um buraco no corpo ressucitado do dono posterior?<br />Como vemos, todas estas observações, comentários e perguntas se dirigiam ao cerne da fé cristã. Já não se tratava de rumores infundados sobre orgias incestuosas, nem de práticas de canibalismo, mas se tratava, antes, de doutrinas do cristianismo. A tais zombarias e ataques não se podia responder com uma mera negação. Era necessário, antes, oferecer argumentos sólidos que respondessem às objeções que se apresentavam. Tal foi a obra dos apologistas.<br /><br />Os principais apologistas<br />A tarefa de defender a fé, diante desta classe de ataques, produziu algumas das mais notáveis obras teológicas do século segundo. E ainda no terceiro e quarto, não faltou quem continuasse essa tradição. De nossa perspectiva, entretanto, os autores que nos interessam no momento são os que primeiro enfrentaram essa tarefa, isto é, os que escreveram durante o século 2 e os primeiros anos do século 3.<br />Possivelmente uma das mais antigas apologias que chegaram a nossos dias é o "Discurso a Diogneto", cujo autor anônimo — talvez Quadrato — parece ter vivido nos princípios do século segundo. <br />Pouco depois, antes do ano 138, Aristides compôs outra apologia que parecia ter sido perdida, mas foi descoberta em data recente. Mas o mais famoso dos apologistas foi Justino, o Mártir, a cujo martírio já nos referimos na aula anterior. <br />Justino tinha seguido uma longa peregrinação espiritual, indo de doutrina em doutrina, até que se convenceu de que o cristianismo era a "verdadeira filosofia". <br />Dele se conservam três obras: duas apologias e o "Diálogo com Trifon", que consiste em uma discussão com um rabino judeu. Um discípulo de Justino, Taciano, compôs outra apologia sob o título de "Discurso aos gregos". <br />Pela mesma época, Atenágoras escreveu uma "Defesa dos cristãos" e outro tratado "Sobre a ressurreição dos mortos". Por volta do ano 180, o bispo de Antioquia, Teófilo, escreveu "Três livros a Autólico", que tratavam sobre a doutrina cristã de Deus, a interpretação das Escrituras, e a vida cristã, nos quais refuta as objeções dos pagãos sobre cada um destes pontos.<br />Todas as obras mencionadas foram escritas em grego, e no século 2. No século 3, o grande mestre alexandrino, Orígenes, escreveu uma refutação "Contra Celso", que já citamos mais acima, e que foi também escrita em grego.<br />Na língua latina, os últimos anos do século 2 e os primeiros do século 3 nos deixaram dois escritos apologéticos, parecidos entre si, e sobre os quais os eruditos não concordam acerca de qual teria sido escrito primeiro: a "Apologia" de Tertuliano e o "Otávio" de Minúcio Félix, que também foi citado antes.<br />Todas estas obras são importantes porque é quase exclusivamente através delas que conhecemos os rumores e as críticas dos quais os cristãos eram objeto, e também porque nelas vemos a igreja enfrentando, pela primeira vez, a tarefa de responder à cultura que a rodeia.<br /><br />Fé cristã e cultura pagã<br />Os cristãos do segundo 2 eram acusados de ser gente bárbara e inculta, portanto, eles se viram obrigados a discutir a questão das relações entre sua fé e a cultura pagã. <br />Naturalmente, dentro da igreja, todos concordavam em que tudo aquilo que se relacionasse com o culto dos deuses devia ser rejeitado. Por esta razão. os cristãos não participavam de muitas cerimônias civis, nas quais se ofereciam sacrifícios e juramentos aos deuses. <br />Também lhes era proibido serem soldados, em parte porque poderiam se ver obrigados a matar alguém e, em parte, porque os soldados deviam fazer juramentos e oferecer sacrifícios a César e aos deuses. <br />De igual modo, haviam muitos cristãos que pensavam que as letras clássicas não deviam ser estudadas, pois nelas se contava toda a sorte de superstição e até de imoralidade acerca dos deuses. <br />Para ser cristão era necessário se comprometer com o culto único a Deus e a Jesus Cristo, e qualquer concessão em sentido contrário equivalia a renegar Jesus Cristo que, por sua vez, renegaria o apóstata no dia do juízo.<br />Mas, se todos concordavam quanto à necessidade de se abster da idolatria, nem todos concordavam quanto a postura que devia ser adotada diante da cultura clássica pagã. <br />Essa cultura incluía a obra e o pensamento de sábios, tais como Platão, Aristóteles e os estóicos, cuja sabedoria tem recebido a admiração de muitos até os nossos dias. Rejeitá-la equivalia a rejeitar muito do melhor que o espírito humano havia produzido. Aceitá-la poderia parecer como uma concessão ao paganismo e como o começo de uma nova idolatria. Diante desta alternativa, os cristãos dos séculos 2 e 3 seguiram dois caminhos.<br />De um lado, alguns não viam senão uma oposição radical entre a fé cristã e a cultura pagã. Esta postura foi expressada nos princípios do século 3 por Tertuliano, em uma frase que se fez famosa: "Que tem Atenas a ver com Jerusalém? Ou que tem a ver a Academia com a Igreja?" <br />Tertuliano escreveu estas linhas porque, como veremos mais adiante, em seu tempo, circulavam muitas histórias evasivas sobre o cristianismo, e ele estava convencido de que estas heresias se deviam ao fato de que al¬guns haviam tratado de combinar a fé cristã com a filosofia pagã.<br />Mas ainda antes de tais heresias se constituirem numa preocupação fundamental para os cristãos, já havia quem adotasse uma postura semelhante frente à cultura clássica. <br />Talvez o melhor exemplo disso possa ser visto no "Discurso aos gregos" composto por Taciano, o mais famoso discípulo de Justino. Esta obra é um ataque frontal contra tudo o que os gregos consideravam valioso, e uma defesa dos "bárbaros", isto é, dos cristãos.<br />Os gregos chamavam "bárbaros" a todos os que não falavam como eles, e, portanto, o primeiro fato que Taciano lhes atira na cara é que eles mesmos não se puseram de acordo quanto a como se devia falar o grego, pois em cada região se falava de um modo diferente. <br />Além disso, essas pessoas que pen¬sam que sua língua é a suprema criação humana inventaram a retórica, que não é senão a arte de vender as palavras por ouro, oferecendo-lhes ao melhor licitador, mesmo que com isso se perca a liberdade de pensamento e se defenda a injustiça e a mentira.<br />Tudo o que há de valioso entre os gregos — prossegue Taciano — eles o tomaram dos bárbaros. Assim, por exemplo, a astronomia aprenderam dos babilónios, a geometria dos egípcios, e a escrita dos fenícios. E o mesmo pode se dizer sobre a filosofia e a religião, pois os escritos de Moisés são muito mais antigos que os de Platão, e até mais antigos que os de Homero. <br />Se Homero e Platão eram realmente pessoas cultas, segundos os próprios gregos dizem, era de se supor que conhecessem os escritos de Moisés. Portanto, qualquer coincidência entre a cultura supostamente grega e a religião dos "bárbaros" hebreus e cristãos deve-se a que os gregos aprenderam sua sabedoria dos báraros. <br />Mas, em todo caso, o certo é que os gregos, ao lerem a sabedoria dos "bárbaros", não a entenderam e, portanto, adulteraram a verdade que os hebreus conheciam. Assim, a suposta abedoria grega não é senão um pálido reflexo e uma caricatura da verdade que Moisés conheceu e que os cristãos agora pregam. <br />Se isso é certo com relação ao melhor da cultura pagã, podemos advinhar o que Taciano dirá sobre os deuses dos gregos. A respeito dos deuses, Homero e os demais poetas gregos contam coisas dignas de vergonha, pois entre eles se pratica a mentira, o adultério, o incesto e o infanticídio. Como então podem nos pedir que honremos a tais deuses, se são, sob todas as formas, inferiores a nós? <br />Por último, acrescenta Taciano, não esqueçamos que muitas das esculturas que os gregos adoram são na realidade estátuas de mulherzinhas e prostitutas a quem os escultores tomaram por modelos. Portanto, os mesmo gregos que criticam os cristãos por serem de baixa classe social, na realidade adoram pessoas dessa mesma classe.<br />Mas nem todos os cristãos adotavam essa postura totalmente negativa ante a cultura pagã. O exemplo mais claro de uma atitude muito mais positiva em relação a essa cultura nós encontraremos em Justino, o mestre de Tacíano. Justíno é, sem dúvida alguma, o mais distinto pensador cristão dos meados do século 2.<br />Antes de se tornar cristão, Justino tinha estudado as diversas filosofias que em sua época se ofereciam como sendo as mais acertadas, e havia chegado, por fim, à conclusão de que o cristianismo era "a verdadeira filosofia". <br />Ao se conver¬ter ao cristianismo, Justino não deixou de ser filósofo, mas dedicou-se a fazer "filosofia cristã", e boa parte dessa filosofia consistia em descobrir e explicar as relações entre o cristianismo e a sabedoria clássica. <br />Portanto, Justino não nutria, em relação a essa filosofia, os mesmos sentimentos radicalmente negativos de seu discípulo Taciano. Isto não quer dizer, entretanto, que Justino tenha comprometido sua fé, ou que fosse um cristão de escassa convicção, pois, quando chegou o momento de testificar de Cristo diante das autoridades imperiais, ele o fez com toda firmeza e, portanto, a posteridade o conhece com o honroso nome de "Justino, o Mártir".<br />Justino vê vários pontos de contato entre o cristianismo e a filosofia pagã. Os melhores filósofos, por exemplo, falaram de um ser supremo que se encontra acima de todos os demais seres, e do qual todos derivam sua existência. <br />Sócrates e Platão sabiam que existe a vida além da morte física. Sócrates mostrou a força dessa crença em sua morte exemplar. Platão também sabia que este mundo não esgota toda a realidade, mas que há outro mundo de realidades eternas. <br />Em tudo isto, os filósofos tinham razão. Justino não está completamente de acordo com eles, pois ele sabe, por exemplo, que o centro da esperança cristã não é a imortalidade da alma, mas a ressurreição do corpo. Mas, apesar desta e de outras diferenças, há nos filósofos traços da verdade que não é possível explicar como uma mera coincidência.<br />Como explicar, então, esse acordo parcial entre os filósofos a fé cristã? Justino o explica recorrendo à doutrina do "Logos" O termo grego "logos” quer djzer tanto "palavra" como "razão". <br />Segundo os filósofos gregos, tudo o que nossa mente consegue compreender o faz porque, de algum modo, participa do "logos" ou razão universal. Por exemplo, se podemos compreender que dois mais dois são quatro, isto se deve ao fato de que, tanto em nossa mente, como no universo, existe um "logos", uma razão, ou ordem, segundo o qual dois mais dois são quatro. <br />Ora, o que os cristãos crêem é que, em Jesus Cristo, esse Logos — e esta é a palavra que aparece no prólogo do Quarto Evangelho — se fez carne. O que João 1:14 nos diz é que a razão fun¬amental do universo, o verbo, ou palavra (logos) de Deus, se fez carne em Jesus Cristo.<br />Agora vejamos, o próprio Evangelho de João nos diz que este mesmo verbo, ou logos, é a luz que ilumina a todo aquele que vem a este mundo. Isto quer dizer que ele é a fonte de todo conhecimento verdadeiro, mesmo antes de sua encarnação. <br />Já Paulo havia dito (1 Co 10:1-4) que os antigos hebreus não tinham crido em outro senão em Cristo, pois de um modo misterioso Cristo lhes fora revelado ainda antes de sua encar¬nação. <br />Agora, Justino acrescenta que entre os pagãos também houve pessoas que conheceram o mesmo verbo, ou logos, ao menos em parte. O que há de certo nos escritos de Platão, deve-se a que o verbo de Deus — o mesmo verbo que se encarnou em Jesus Cristo — se deu a conhecer. Portanto, em certo sentido, Sócrates, Platão e os demais sábios da antiguidade "eram cristãos", pois sua sabedoria lhes vinha de Cristo, ainda que só conhecessem o verbo parcialmente, enquanto nós, os cristãos, o conhecemos agora tal qual ele é, em virtude de sua encarnação e sua vida entre nós.<br />Deste modo, Justino abriu o caminho para que o cristianismo pudesse reclamar tudo quanto de bom pudesse encontrar na cultura clássica, apesar de ser uma cultura pagã. <br />Seguindo sua inspiração, logo apareceram outros cristãos que se dedicaram a construir pontes entre sua fé e a cultura da antiguidade. Mas suas obras - e os perigos que acarretaram — correspondem a outro capítulo desta história.<br /><br />Os argumentos dos apologistas<br />Nos parágrafos anteriores, mostramos alguns dos argumentos que os apologistas empregaram para enfrentarem a questão das relações entre sua fé e a cultura que os rodeava. <br />Agora, ainda que sumariamente, devemos resumir alguns dos elementos com os quais tentaram responder às principais críticas que se faziam às doutrinas do cristianismo.<br />À acusação de serem ateus, os cristãos respondiam dizendo que, se eles eram ateus, também o haviam sido alguns dos mais famosos filósofos e poetas gregos. <br />Para fundamentar este argu¬mento, não tinham senão que recorrer a algumas das obras da literatura grega, em que se dizia que os deuses eram invenção humana, que seus vícios eram piores que os que se praticavam na sociedade humana, e outras coisas desse estilo. <br />Aristides sugere que a razão pela qual os gregos inventaram tais deuses foi para que eles mesmos pudessem dar vazão aos seus mais baixos apetites, tendo nos deuses o exemplo. <br />Taciano diz que toda a criação foi feita por Deus, por amor a nós e que, portanto, é um erro adorar a uma parte qualquer dessa criação. E, no mesmo sentido, Atenágoras diz: "eu não adoro a um instrumento, mas aquele que produz a música". <br />Além disso, vários dos apologistas atiram aos rostos dos pagãos que seus deuses são feituras de mãos, e há até alguns que têm necessidade de guardas, para protegê-los de quem, de outro modo, tentaria roubá-los. Que classe de deuses é esta que necessita proteção humana? Que poderes teriam para cuidar de nós?<br />E quanto a ressurreição, os apologistas respondem apelando à onipotência divina. Com efeito, se cremos que Deus fez todos os corpo do nada, porque não haveríamos de crer que possa reconstruí-los novamente, mesmo depois de mortos e decompostos?<br />Às acusações de imoralidade, os apologistas respondem a um tempo com uma negativa rotunda e com uma acusação contra o paganismo. Como pensar que em nosso culto se dão orgias e uniões ilícitas, quando nossos princípios de conduta são tais que até mesmos os maus pensamentos devem ser descartados? <br />São os pagãos que, baseados no que eles mesmos contam de seus deuses, e até às vezes sob pretexto de adorá-los, cometem as mais baixas imoralidades. <br />E, como pensar que comemos meminos, nós, a quem todo homicídio nos está proibido? São os senhores, os pagãos, os que costumam deixar os filhos indesejados expostos aos elementos, para que ali pereçam de fome e de frio.<br />Por último, acusavam aos cristãos de serem pessoas subversivas, que se negavam a adorar o imperador e que, portanto, destruíam o próprio vínculo da sociedade. <br />A tal acusação, os apologistas respondem dizendo que, com efeito, se negam a adorar o imperador. ou qualquer outra criatura. mas que, apesar disto, são súditos leais do Império. <br />O que o imperador neces¬sita não é ser adorado, mas ser servido, e quem melhor o serve são aqueles que rogam ao único Deus verdadeiro pelo bem-estar do Império e de César. <br />Em conclusão, mesmo quando se negam a adorá-lo, os cristãos são os melhores súditos com quem o imperador pode contar, pois constantemente apresentam as necessidades do Império ante o trono celestial, e por isso são, como diz o Discurso a Diogneto, "a alma do mundo".<br />Em resumo, os apologistas dão testemunho da tensão em que vivem os cristãos dos primeiros séculos. Ao mesmo tempo que rejeitam o paganismo, têm de enfrentar o fato de que esse paganismo produziu uma cultura valiosa. <br />Ao mesmo tempo que aceitam a verdade que encontram nos filósofos, jinsístem na superioridade da revelação cristã. Ao mesmo tempo que se negam a adorar ao imperador, e esse mesmo imperador os persegue, continuam orando por ele e admirando a grandeza do Império Romano. <br />As seguintes linhas do "Discurso a Diogneto" descrevem admiravelmente essa tensão: <br />"Os cristãos não se diferenciam dos demais por sua nacionalidade, por sua linguagem, nem por seus costumes (. . .). Vivem em seus próprios lugares, mas como transeuntes, peregrinos. Cumprem todos os seus deveres de cidadãos, mas sofrem como estrangeiros. Onde quer que estejam, encontram sua pátria, mas sua pátria não está em nenhum lugar (. . .). Se encontram na carne, mas não vivem segundo a carne. Vivem na terra, mas são cidadãos dos céu. Obedecem todas as leis, mas vivem acima daquilo que as leis requerem. Amam a todos, mas todos os perseguem" ("Discurso a Diogneto", 5:1-11).Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-11609320063686588682007-06-12T08:34:00.001-07:002007-06-12T08:50:42.790-07:00História da Igreja - Parte 7Os primeiros conflitos com o estado<br /><br />Desde os seus inícios, a fé cristã não foi coisa fácil nem simples. O próprio Senhor a quem os cristãos serviam havia morrido na cruz, condenado como um malfeitor qualquer. Logo em seguida, Estevão sofreu uma sorte semelhante, ao ser morto apedrejado, depois de dar seu testemunho diante do conselho dos judeus. <br />Algum tempo mais a frente, o apóstolo Tiago era morto por ordem de Herodes. E a partir de então, até os nossos dias, sempre existiram pessoas colocadas em situações nas quais tiveram de selar o testemunho com seu sangue.<br />Mas, nem sempre as razões e as condições da perseguição foram as mesmas. Já nos primeiros anos de vida da igreja pode-se ver certa evolução neste sentido.<br /><br />A nova seita judaica<br />Os primeiros cristãos não criam que pertenciam a uma nova religião. Eles eram judeus, e a principal diferença que os separava do resto do judaísmo era que criam que o Messias tinha vindo, enquanto que os demais judeus ainda aguardavam o seu advento. <br />Sua mensagem aos judeus não era, portanto, que tinham de deixar de ser judeus, mas ao contrário, agora que a idade messiânica havia sido inaugurada, eles deviam ser melhores judeus. <br />De igual modo, a primeira pregação aos gentios não foi um convite para aceitarem uma nova religião recém criada, mas foi o convite para fazerem-se participantes das promessas feitas a Abraão e à sua descendência.<br />Convidaram os gentios a se fazerem filhos de Abraão segundo a fé, já que não podiam sê-los segundo a carne. E a razão para que este convite fosse possível era que, desde os tempos dos profetas, o judaísmo havia crido que, com o advento do Messias, todas as nações seriam trazidas a Sião. <br />Para aqueles cristãos, o judaísmo não era uma religião rival do cristianismo, mas sim a mesma religião, muito embora os que a seguiam não entendessem que as profecias já se ha¬viam cumprido.<br />Do ponto de vista dos judeus não-cristãos, a situação era a mesma. O cristianismo não era uma nova religião, mas sim uma seita herética dentro do judaísmo. <br />Já vimos que o judaísmo do século primeiro não era uma unidade monolítica, mas que havia diversas seitas e opiniões. Portanto, ao aparecer o cristianismo, os judeus não o viam senão como mais uma seita.<br />A conduta daqueles judeus em relação ao cristianismo pode ser compreendida se nos colocarmos em seu lugar e procurarmos ver o cristianismo, a partir do seu ponto de vista, como uma nova heresia que ia de cidade em cidade tentando os bons judeus a se tornarem hereges. <br />Além disso, naquela época - e não sem fundamentos bíblicos — muitos judeus criam que a razão pela qual haviam perdido sua antiga independência e haviam sido reduzidos ao papel de súditos do Império Romano, era que o povo não havia sido suficientemente fiel à fé de seus antepassados.<br />Portanto, o sentimento nacionalista e patriótico se exacerbava diante da possibilidade de que estes novos hereges pudessem uma vez mais provocar a ira de Deus sobre Israel.<br />Por estas razões, em boa parte do Novo Testamento, os judeus perseguem os cristãos, que por sua vez encontram refúgio nas autoridades romanas. Isto se pode ver, por exemplo, quando alguns judeus em Corinto acusam Paulo diante do Procônsul Gálio, dizendo que "este persuade os homens a adorar a Deus de modo contrário à lei", e Gálio responde: "Se fosse, com efeito, alguma injustiça, ou crime da maior gravidade, ó judeus, de razão seria atender-vos, mas se é questão de palavra, de nomes, e de vossa lei, tratai disso vós mesmos; eu não quero ser juiz destas cousas" (Atos 18:14-15). <br />E mais tarde, quando se pro¬duz um motim no Templo porque alguns acusam Paulo de haver introduzido um gentio no recinto sagrado, e os judeus tratam de matá-lo, são os oficiais romanos que salvam a vida do apóstolo.<br />Logo, os romanos concordavam com os primeiros cristãos e com os judeus de que se tratava aqui de um conflito entre judeus. E, sempre que não se produzisse um alvoroço excessivo, os romanos preferiam que os próprios judeus resolvessem esse tipo de problema. <br />Entretanto, quando o tumulto era demasiado, os romanos intervinham para restaurar a ordem e às vezes para cas¬tigar os culpados. Um caso que ilustra esta situação é a expulsão dos judeus de Roma pelo imperador Cláudio, por volta do ano 51. Atos 18:2 menciona esta expulsão, ainda que sem explicar suas razões. <br />Mas o historiador romano Suetônio nos oferece um dado intrigante, ao nos dizer que os judeus foram expulsos de Roma porque estavam causando distúrbios constantes "por causa de Cresto". A maioria dos historiadores concorda em que "Cresto" é o próprio Cristo, cujo nome teria sido mal escrito. <br />Portanto, o que sucedeu em Roma parece ter sido que, como em tantos outros lugares, a pregação cristã causou tantas desordens entre os judeus, que o imperador decidiu expulsar todos eles. <br />Em Roma, naquele tempo, a disputa entre judeus e cristãos parecia ser uma questão interna dentro do judaísmo. Entretanto, à medida que o cristianismo foi se estendendo cada vez mais entre os gentios, e a proporção de judeus dentro da igreja foi diminuindo, tanto cristãos como judeus e romanos foram estabelecendo distinções cada vez mais claras entre o judaísmo e o cristianismo. <br />Há também certas indicações de que, em meio ao crescente sentimento nacionalista que levou os judeus a se rebelarem contra Roma e que culminou na destruição de Jerusalém, os cristãos — especialmente os gentios entre eles — trataram de mostrar claramente que eles não faziam parte daquele movimento. <br />O resultado de tudo isto foi que as autoridades romanas enfrentaram, pela primeira vez, o cristianismo como uma religião separa do judaísmo. Foi então que começou história dos dois séculos e meio de perseguições por parte do Império Romano. <br />Nesse contexto, a perseguição sob Nero foi de enorme importância, não tanto por sua magnitude, mas por ter sido a primeira de uma larga série de crueldade sempre crescente.<br />Mas, antes de passar a discutir a perseguição sob Nero, devemos assinalar um fato que teve consequências fatídicas para as relações entre os cristãos e os judeus através dos séculos. <br />Durante os primeiros anos do cristianismo, este existiu dentro do marco do judaísmo. Nessa situação, o judaísmo tratou de extirpá-lo, e disso há abundantes provas no livro de Atos e em outros livros do Novo Testamento. <br />Mas a partir de então, nunca mais esteve o judaísmo em posição de perseguir os cristãos, enquanto que muitas vezes estes tenham estado em posição de perseguir os judeus. <br />Quando o cristianismo veio a ser a religião da maioria, e os judeus se tornaram uma minoria dentro de toda uma sociedade que se chamava cristã, foram muitos os cristãos que, levados pelo que se diz no Novo Testamento a respeito da oposição dos judeus ao cristianismo, fomentaram o sentimento anti-judaico, chegando até o extremo de participarem de matanças de judeus. <br />Portanto, é de suma importância que nos apercebamos de que aqueles judeus que perseguiram aos cristãos no século primeiro o fizeram crendo servir a Deus, e que os cristãos que hoje tornam a situação ao reverso, e praticam o anti-judaísmo, estão fazendo precisamente o mesmo que condenam naqueles judeus do passado.<br /><br />A perseguição sob Nero<br />Nero chegou ao poder em outubro do ano 54, graças às intrigas de sua mãe Agripina, que não vacilou ante o assassinato em seus esforços para assegurar a sucessão do trono em favor de seu filho. <br />A princípio, Nero não cometeu os crimes pelos quais depois ficou famoso. Ainda mais, várias das leis dos primeiros anos de seu governo foram de benefício para os pobres e os despojados. <br />Mas pouco a pouco, o jovem imperador se deixou levar por seus próprios afãs de grandeza e poder, e por uma corte que se desdobrava por satisfazer seus mínimos caprichos. <br />Dez anos depois de chegar ao trono, Nero já era desprezado por boa parte do povo, e também pelos poetas e literatos, a cujo número Nero pretendia pertencer sem ter os dons necessários para isso.<br />Todos que se opunham à sua vontade, ou morriam misteriosamente, ou recebiam ordens de se suicidar. Quando a esposa de um de seus amigos lhe agradou, simplesmente enviou seu amigo a Portugal, e tomou a mulher para si. <br />Todos estes fatos — e muitos rumores - corriam de boca em boca e faziam com que o povo sempre esperasse o pior de seu soberano.<br />Assim estavam as coisas quando, na noite de 18 de julho do ano 64, ocorreu um enorme incêndio em Roma. Ao que parece, Nero se encontrava, na ocasião, em sua residência de Antium, a umas quinze léguas de Roma, e assim que soube o que sucedia correu a Roma, onde tratou de organizar a luta contra o incêndio. <br />Para os que haviam ficado sem refúgio, Nero fez abrir seus próprios jardins e vários outros edifícios públicos. Mas tudo isto não bastou para afastar as suspeitas que logo caíram sobre o imperador a quem muitos já tinham por louco. <br />O fogo durou seis dias e sete noites e depois voltou a se acender em diversos lugares durante mais três dias. Dez dos catorze bairros da cidade foram devorados pelas chamas. <br />Em meio a todos seus sofrimentos, o povo exigia que se descobrisse o culpado, e não faltava quem se inclinasse a pensar que o próprio imperador havia ordenado o incêndio da cidade para poder reconstruí-la a seu gosto, como um grande monumento à sua pessoa. <br />O historiador Tácito, que provavelmente se encontrava então em Ro¬ma, conta vários dos rumores que circulavam, e ele mesmo parece dar a entender a sua opinião, pela qual o incêndio havia começado acidentalmente num depósito de azeite.<br />Mas, cada vez mais, as suspeitas recaíam sobre o imperador. De acordo com os rumores, Nero havia passado boa parte do incêndio no alto da torre de Mecenas, no cume do Palatino, vestido como um ator de teatro, tangendo sua lira e cantando versos acerca da destruição de Tróia. <br />Logo começou a propalar-se que o imperador, em seus desatinos de poeta louco, havia incendiado a cidade para que o sinistro lhe servisse de inspiração. <br />Nero fez todo o possível para afastar as suspeitas de sua pessoa. Mas todos os seus esforços seriam inúteis enquanto não se fizesse recair a culpa sobre alguém. <br />Dois dos bairros que NÃO haviam queimado, eram as zonas da cidade em que havia mais judeus e cristãos. Portanto, o imperador pensou que seria mais fácil culpar os cristãos.<br />O historiador Tácito parecia crer que o fogo fora um acidente, portanto, a acusação feita contra os cristãos seria falsa. Ele mesmo nos conta o sucedido:<br />— Apesar de todos os esforços humanos, da liberalidade do imperador e dos sacrifícios oferecidos aos deuses, nada bastava para apartar as suspeitas, nem para destruir a crença de que o fogo havia sido ordenado. Portanto, para destruir esse rumor, Nero fez aparecer como culpados os cristãos, uma gente odiada por todos por suas abominações, e os castigou com mui refinada crueldade. Cristo, de quem tomam o nome, foi executado por Pôncio Pilatos durante o reinado de Tibério. Detida por um instante, esta superstição daninha apareceu de novo, não somente na Judéia, onde estava a raiz do mal, mas também em Roma, esse lugar onde se narra e encontram seguidores de todas as coisas atrozes e abomináveis que chegam des¬de todos os rincões do mundo. Portanto, primeiro fo¬ram presos os que confessaram (ser cristãos), e baseadas nas provas que eles deram foi condenada uma grande multidão, ainda que não os condenaram tanto pelo in¬cêndio, mas sim pelo seu ódio à raça humana. (Anais, 15:44).<br /><br />Estas palavras de Tácito são valiosíssimas, pois constituem um dos mais antigos testemunhos que chegaram até nossos dias do modo como os pagãos viam os cristãos. Ao ler estas linhas, torna-se claro que Tácito não cria que os verdadeiros culpados de terem incendiado Roma fossem os cristãos.<br />Ainda mais, a "refinada crueldade" de Nero não recebe sua aprovação. Mas, ao mesmo tempo, este bom romano, pessoa culta e distinta em sua época, crê muito daquilo que dizem os rumores acerca das "abominações" dos cristãos, e de seu "ódio pela raça hu-mana". <br />Tácito e seus contemporâneos não nos dizem em que consistiam estas "abominações" que supostamente praticavam os cristãos. Teremos que esperar até o século segundo para encontrar documentos em que se descrevem esses rumores maliciosos. <br />Mas seja o que for, o fato é que Tácito crê nesses rumores e pensa que os cristãos odeiam a humanidade. Isto se compreende se recordarmos que todas as atividades da época — o teatro, o exército, as letras, os esportes, e tudo o mais. — estavam tão ligadas ao culto pagão que os cristãos se viam obrigados a se ausentarem delas. <br />Portanto, diante dos olhos de um pagão que amava a sua cultura e sua sociedade, os cristãos pareciam ser misantropos (aquele que tem aversão à sociedade ) que odiavam toda a raça humana.<br />Mas Tácito prossegue, contando-nos o sucedido em Roma por causa do grande incêndio:<br />— Além de matá-los (aos cristãos) fê-los servir de diversão para o público. Vestiu-os em peles de animais para que os cachorros os matassem a dentadas. Outros foram crucificados. E a outros acendeu-lhes fogo ao cair da noite, para que a iluminassem. Nero fez que se abrissem seus jardins para esta exibição e, no circo, ele mesmo ofereceu um espetáculo, pois se misturava com as multidões, disfarçado de condutor de carruagem, ou dava voltas em sua carruagem. Tudo isto fez com que desper¬tasse a misericórdia do povo, mesmo contra essas pessoas que mereciam castigo exemplar, pois via-se que eles não eram destruídos para o bem público, mas para satisfazer a crueldade de uma pessoa (Anais 15:44). <br /><br />Uma vez mais, vemos que este historiador pagão, sem mostrar simpatia alguma pelos cristãos, dá a entender que o castigo era excessivo, ou ao menos que a perseguição teve lugar, não em prol da justiça, mas por capricho do imperador. <br />Além disso, nestas linhas temos uma descrição, escrita por uma pessoa que não foi cristã, das torturas a que foram submetidos aqueles mártires.<br />Do número dos mártires sabemos pouco. Além do que nos diz Tácito, há alguns documentos cristãos dos fins do século primeiro, e do século segundo, que recordam com terror aqueles dias de perseguição sob Nero. Também existem indícios que dão a entender que Pedro e Paulo estavam entre os mártires de Nero. <br />Por outro lado, todas as notícias que nos chegam referem-se à perseguição na cidade de Roma e, portanto, é muito provável que a perseguição, embora muito cruel, tenha sido local, e não se estendesse às províncias do império.<br />Ainda que, a princípio, os cristãos fossem acusados de incendiários, tudo parece indicar que logo começou a haver perse¬guição pelo simples fato de serem cristãos — e por todas as supostas abominações que iam unidas a esse nome. <br />O próprio Nero deve ter se apercebido de que o povo sabia que se perseguia os cristãos não pelo incêndio, mas por outras razões. E Tácito também nos diz que no final das contas "não se lhes condenou tanto pelo incêndio e sim pelo seu ódio à raça humana". <br />Em vista de tudo isto, e a fim de justificar sua conduta, Nero promulgou contra os cristãos um édito que infelizmente não chegou a nossos dias. <br />Provavelmente, os planos de Nero incluíam estender a perseguição nas províncias, se não para destruir os cristãos nelas, ao menos para conseguir novas fontes de vítimas para seus espetáculos. <br />Mas no ano 68, boa parte do império se rebelou contra o tirano, e o senado romano o depôs. Prófugo (fugitivo, desertor ) e sem ter para onde ir, Nero se suicidou. <br />À sua morte, muitas de suas leis foram abolidas. Mas seu édito contra os cristãos continuou em vigor. Isto queria dizer que, enquanto ninguém se ocupasse em persegui-los, os cristãos podiam viver em paz; mas tão logo algum imperador, ou outro funcionário, decidisse fazer a perseguição, poderia sempre apelar à lei promulgada por Nero.<br />De imediato, ninguém se ocupou em perseguir os cristãos. Após a morte de Nero, seguiu-se um período de desordem tão grande que os historiadores chamam o ano 69 "o ano dos quatro imperadores". <br />Por fim Vespasiano pode tomar as rédeas do Estado e logo o sucedeu seu filho Tito, o mesmo que no ano 70 havia tomado e destruído Jerusalém. Em todo este período, o Império parece ter esquecido os cristãos, cujo número continuava aumentando silenciosamente.<br /><br />A perseguição sob Domiciano<br />No ano 81, Domiciano sucedeu ao imperador Tito. A princípio, seu reino foi tão benigno à nova fé como o haviam sido os de seus antecessores. Mas no final do seu domínio iniciou-se novamente a perseguição.<br />Não sabemos com certeza por que Domiciano perseguiu os cristãos. Sabemos, sim, que Domiciano amava e respeitava as velhas tradições romanas, e que boa parte de sua política imperial consistiu em restaurar essas tradições. <br />Portanto, era de se esperar que se opusesse ao cristianismo, que em algumas regiões do Império havia ganho muitíssimos adeptos, e que em todo caso se opunha tenazmente à antiga religião romana. Além disso, agora que já não existia o Templo de Jerusalém, Domiciano decidiu que todos os judeus deviam enviar às arcas imperiais a oferta anual que antes mandavam a Jerusalém. <br />Quando alguns judeus negaram-se a fazê-lo, ou mandavam o dinheiro ao mesmo tempo que deixavam bem claro que Roma não havia ocupado o lugar de Jerusalém, Domiciano começou a perseguí-los e a exigir o pagamento da oferta. Já que ianda não estava total-mente delimitada a relação do judaísmo com o cristianismo, os funcionários imperiais começaram a pressionar todos os que praticavam "costumes judaico". <br />Assim, começou uma nova perseguição que parece haver sido dirigida não somente contra os cristãos, mas também contra os judeus.<br />Como no caso de Nero, parece que a perseguição não foi igualmente severa em todo o Império. De fato, é só de Roma e da Ásia Menor que temos notícias fidedignas acerca dessa perseguição.<br />Em Roma, o imperador fez executar o seu parente Flávio Clemente e sua esposa Flávia Domicila. Foram acusados de "ateísmo" e de "costumes judaicos". <br />Já que os cristãos adoravam um Deus invisível, em geral os pagãos os acusavam de serem ateus. Portanto, é muito provável que Flávio Clemente e sua esposa tenham sido mortos por serem cristãos. Estes são os únicos dois mártires romanos no tempo de Domiciano que conhecemos pelo nome. <br />Mas vários escritores antigos afirmam que foram muitos, e uma carta escrita pela igreja de Roma à de Corinto pouco depois da perseguição se refere a "os males e provas inesperadas e seguidas que sobrevieram a nós" (l Clemente 1).<br />Da perseguição na Ásia Menor sabemos mais, graças ao Apocalipse, que foi escrito em meio a essa dura prova. João, o autor do Apocalipse, havia sido deportado à ilha de Patmos, e, portanto, sabemos que nem todos os cristãos eram condenados à morte. Mas há muitas outras provas de que foram muitos os que sofreram e morreram em tal ocasião.<br />Em meio à perseguição, o Apocalipse mostra uma atitude muito mais negativa contra Roma do que o resto do Novo Testamento. Paulo havia ordenado aos romanos que se submetessem às autoridades, que haviam sido ordenadas por Deus. <br />Mas, agora, o vidente de Patmos descreve Roma em termos nada elogiosos, como "A grande rameira ... ébria do sangue dos santos, e do sangue dos mártires em Jesus" (Apocalipse 17:1, 6). E Pérgamo, a capital da região, é o lugar "onde está o trono de Satanás" (Ap 2:13).<br />Felizmente, quando se iniciou a perseguição o reinado de Domiciano chegava ao fim. Como Nero, Domiciano havia recebido fama de tirano e, por fim, foi assassinado em seu próprio palácio, e o senado romano fez com que se apagasse o seu nome de todas as inscrições e monumentos em sua honra.<br />Uma vez mais, o Império parece ter esquecido os cristãos. Assim, a nova fé pôde continuar se espalhando pelo Império, gozando de um período de relativa paz.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-19042387314098838332007-06-12T08:22:00.000-07:002007-06-12T08:29:19.128-07:00História da Igreja - Parte 6A igreja de Jerusalém<br />(texto extraído e adaptado da obra de Justo L. Gonzales, Uma História Ilustrada do Cristianismo)<br />O livro de Atos nos dá a entender que houve, desde os inícios, uma forte igreja em Jerusalém. Mas, depois dos primeiros capítulos, esse mesmo livro nos diz muito pouco a respeito daquela comunidade original. Isto se entende, porque o propósito do autor de Atos não é escrever toda uma história da igreja, mas antes mostrar como, por obra do Espírito Santo, a nova fé foi se estendendo até chegar à capital do Império.<br />O resto do Novo Testamento nos diz ainda menos sobre a igreja de Jerusalém, pois a maior parte dos livros do novo Testamento trata a respeito da vida da igreja em outras partes do Império.<br />Isto quer dizer que, ao tentarmos reconstruir a vida e a história daquela primeira igreja, nos encontramos com uma enorme escassez de dados. Entretanto, lendo cuidadosamente o Novo Testamento, e acrescentando alguns pormenores que nos oferecem outros autores dos primeiros séculos, podemos fazer uma idéia aproximada do que foi aquela primeira comunidade cristã.<br />Unidade e diversidade<br />É um erro comum entre muitas pessoas idealizar a igreja do Novo Testamento. A firmeza e a eloquência de Pedro no dia de Pentecoste fazem com que nos esquessamos de suas dúvidas e vacilações a respeito do que se devia fazer com os gentios que eram acrescentados à igreja. <br />E o fato de que os discípulos possuíam todas as coisas em comum, frequentemente, esconde as dificuldades que essa prática acarretou, como se pode ver no caso de Ananias e Safira, e na "murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária" (Atos 6:1).<br />Este último episódio, que se menciona como que de pas¬sagem em Atos, nos indica que já na igreja primitiva começavam a se refletir algumas das divisões que existiam entre os judeus em Jerusalém. <br />Conforme já falamos na aula anterior, durante vários séculos a Palestina havia estado dividida entre os judeus mais puristas e aqueles de tendências mais helenizantes. É a isso que se refere Atos 6:1 ao falar dos "gregos" e dos "hebreus". Não se trata aqui verdadeiramente de judeus e de gentios — pois ainda não havia gentios na igreja, segundo nos dá a entender mais adiante o próprio livro de Atos — mas sim, trata-se de dois grupos entre os judeus. <br />Os "hebreus" eram os que conservavam todos os costumes e o idioma de seus antepassados, enquanto que os "gregos" eram os que se mostravam mais abertos com relação às influências do helenismo. É possível que alguns deles tenham sido judeus que haviam regressado a Jerusalém depois de viverem em outros lugares, talvez em alguns casos por várias gerações. <br />Em todo caso, a maior parte deles levava nomes gregos e é de se supor que, além do aramaico da região, falavam também o grego. Logo, a disputa a que se refere Atos é uma desavença entre cristãos de origem judaica, mas uns, por assim dizer, mais judeus do que os outros. Como resultado desse conflito, os apóstolos convocaram uma assembleia que elegeu sete pessoas "para servir as mesas". O sentido exato desta função não está de todo claro, porém nâo há dúvida de que os doze esperavam que os sete se dedi-cassem a trabalhos administrativos, enquanto eles seguiam pre¬gando. <br />Mas duas coisas são claras ao lermos todo o livro de Atos. A primeira delas é que, os sete eram representantes do grupo dos "gregos" — todos eles tinham nomes gregos — e que o propósito de sua eleição era então proporcionar uma certa representação desse grupo. A segunda coisa é que, desde muito cedo, pelo menos alguns dos sete se dedicaram também à pregação e à tarefa missionária!<br />O capítulo 7 de Atos está dedicado a Estevão, um dos sete, que "fazia grandes prodígios e sinais entre o povo" (Atos 6:8). Ao ler o testemunho de Estevão diante do concílio, percebemos que sua atitude em relação ao templo não é muito positiva (At 7:47-48). <br />O concílio, composto principalmente por judeus anti-helenistas, nega-se a escutá-lo e o apedreja. Isto contrasta com o modo pelo qual o mesmo concílio havia tra¬tado Pedro e João, que foram postos em liberdade depois de serem açoitados (Atos 5:40). <br />Além disso, é notável o fato de que quando eclodiu a perseguição e os cristãos foram obrigados a fugir de Jerusalém, os apóstolos puderam permanecer na Cidade Santa. E quando Saulo sai em direção a Damasco para perseguir os cristãos que encontraram refúgio naquela cidade, os apóstolos ainda estavam em Jerusalém, e pelo que parece Saulo não se preocupa com isso.<br />Tudo isso nos leva a concluir que os membros do con¬cílio e o sumo sacerdote se preocupavam mais pelos cristãos "gregos" do que pelos "hebreus". Como dissemos anteriormente, tanto uns como os outros eram de origem judaica. E não há dúvidas de que os membros do concílio viam no cristianismo uma heresia que era necessário combater. <br />Mas, no princípio, essa oposição parece ter sido dirigida principalmente contra os judeus "gregos" que se haviam feito cristãos. É posteriormente, no capítulo 12 de Atos, que a perseguição desaba contra os apóstolos. Imediatamente, depois de narrar o testemunho e a morte de Estevão, o livro de Atos passa a nos contar a atividade missionária de Filipe, outro dos sete. Filipe funda uma igreja em Samaria, e os apóstolos enviam Pedro e João para supervisionar o trabalho de Filipe. <br />Logo, fica evidente que já vai começando a se formar uma igreja fora do âmbito da Judéia. Essa igreja não foi fundada pelos apóstolos, mas, apesar disso, os doze prosseguem gozando de certa autoridade sobre toda a igreja.<br />Depois disso, no capítulo 9, Atos começa a falar de Paulo, e a igreja fora da Palestina vai se tornando cada vez mais o centro da narração. Isso não é de se estranhar, pois o que sucedeu foi que os judeus "gregos" que se haviam feito cristãos serviram de ponte através da qual a nova fé passou ao mundo gentio, e logo a igreja contou com mais membros entre os gentios do que entre os judeus. <br />Portanto, a maior parte de nossa história versa sobre o cristianismo entre os gentios. Mas apesar disso não podemos esquecer aquela primeira igreja, da qual chegam até nós apenas traços limitados.<br /><br />A vida religiosa<br />Os primeiros cristãos não criam que pertencessem a uma nova religião. Eles haviam sido judeus durante toda sua vida, e conti¬nuavam sendo. Isto é certo, não só em relação a Pedro e aos doze, mas também aos sete, e até mesmo em relação a Paulo. A fé desses primeiros cristãos não consistia em uma negação do judaísmo, mas consistia antes em uma convicção em que a idade messiânica, tão esperada pelo povo hebreu, havia chegado. <br />Conforme Paulo expressa aos judeus em Roma no final de sua carreira: "pela esperança de Israel estou preso com esta cadeia" (Atos 28:20). Isto é, a razão pela qual Paulo e os demais cristãos são perseguidos não é porque se opunham ao judaísmo, mas porque criam e pregavam que em Jesus cumpriram-se as promessas feitas a Israel.<br />Por esta razão, os cristãos da igreja de Jerusalém conti¬nuavam guardando o sábado e assistindo o culto no Templo. Mas, uma vez que o primeiro dia da semana era o dia da ressurreição do Senhor, reuniam-se nesse dia para "partir o pão" em comemoração a essa ressurreição. <br />Aqueles primeiros cultos de comunhão não se centralizavam sobre a paixão do Senhor, mas sobre sua ressurreição e sobre o fato de que ela havia inaugu¬rado uma nova era. Foi só muito mais tarde — séculos mais tarde, como veremos — que o culto começou a centralizar sua atenção sobre a crucificação e não sobre a ressurreição. Naquela igreja primitiva, o partir do pão era celebrado "com alegria e singeleza de coração" (Atos 2:46).<br />Havia sim, naturalmente, outros momentos de recolhimento. Esses eram principalmente os dois dias de jejum semanais. Era costume entre os judeus mais devotos jejuar dois dias por semana, e os primeiros cristãos seguiam o mesmo costume, ainda que muito cedo começassem a observar dois dias dife¬rentes. <br />Enquanto os judeus jejuavam segundas e quintas, os cristãos jejuavam quartas e sextas, provavelmente em memória da traição de Judas e a crucificação de Jesus.<br />Na igreja primitiva, os dirigentes eram os doze, em¬bora tudo pareça indicar que Pedro e João eram os principais. Pelo menos, é sobre eles que se centraliza a atenção em Atos, e Pedro e João são dois dos "pilares" a quem se refere Paulo em Galatas 2:9.<br />Além dos doze, entretanto, Tiago, irmão do Senhor, gozava também de grande autoridade. Ainda que Tiago não fosse um dos doze, Jesus havia se manifestado a ele pouco depois da ressurreição (l Co 15:7). E Tiago havia se unido ao número dos discípulos, onde logo gozou de grande prestígio e autoridade. Segundo Paulo, ele era o terceiro "pilar" da igreja de Jerusalém e, portanto, em certo sentido, parece haver estado acima de alguns dos doze. <br />Por esta razão, quando mais tarde se pensou que a igreja era governada por bispos desde o começo, surgiu a tradição segundo a qual o primeiro bispo de Jerusalém foi Tiago, irmão do Senhor. <br />Esta tradição, errônea, porquanto atribui a Tiago o título de bispo, parece estar correta em afirmar que ele foi o primeiro chefe da igreja de Jerusalém.<br /><br />O ocaso da igreja judaica<br />Logo, entretanto, aumentou a perseguição contra todos os cristãos em Jerusalém. O imperador Calígula havia dado o título de rei a Herodes Agripa, neto de Herodes o Grande. <br />Se¬gundo Atos 12.1-3, Herodes mandou matar Tiago, o irmão de João - que não deve ser confundido com Tiago, o irmão de Jesus - e ao ver que isto agradou a seus súditos fez encarcerar também Pedro, que escapou milagrosamente. <br />No ano 62, Tiago, chefe da igreja, foi morto por iniciativa do sumo sacerdote e ainda contra a oposição de alguns fariseus. Ante tais circunstâncias, os chefes da igreja de Jerusalém decidiram mudar-se para Pela, uma cidade em sua maioria gentia no outro lado do Jordão. Ao que parece, parte do propósito nessa mudança, era não só fugir da perseguição por judeus, mas também evitar as suspeitas por parte dos romanos. <br />De fato, nessa época o nacionalismo judeu estava em ebulição, e logo eclodiria a rebelião que culminaria a destruição de Jerusalém pelos romanos no ano 70. Os cristãos confessavam-se seguidores de alguém que havia sido morto e crucificado pelos romanos, e que pertencia à linhagem da Davi. Ainda mais, depois da morte de Tiago, o irmão do Senhor, aquela antiga igreja continuou sendo dirigida pelos parentes de Jesus, e a chefia passou a Simeão, que pertencia à mesma linhagem. <br />Diante do nacionalismo que florescia na Palestina, os romanos suspeitavam de qualquer judeu que pretendesse ser descendente de Davi. Portanto, este movimento judeu, que seguia a um homem condenado como malfeitor, e dirigido por pessoas da linhagem de Davi, tinha de parecer suspeito diante dos olhos romanos. <br />Pouco tempo depois, alguém acusou Simeão como descendente de Davi e como cristão, e este novo dirigente da igreja judaica sofreu o martírio.<br />Diante dos escassos dados que sobreviveram à passagem dos séculos, é impossível saber até que ponto os romanos condenaram Simeão por ser cristão, e até que ponto condenaram por pretender pertencer à casa de Davi. <br />Mas, em todo caso, o resultado de tudo isso foi que a velha igreja de origem judaica, rejeitada tanto por judeus como por gentios, viu-se relegada cada vez mais às regiões mais escondidas e desoladas.<br />Naquelas paragens distantes, o cristianismo judeus entrou em contato com vários outros grupos que, em datas anteriores, haviam abandonado o judaísmo ortodoxo e se haviam refugiados além do Jordão. <br />Carente de relações com o resto do cristianismo, aquela igreja de origem judaica seguiu seu próprio curso, e em muitos casos sofreu o influxo de diversas seitas entre as quais ela existia. <br />Quando, em ocasiões posteriores, os cristãos de origem gentia ofereceram algum traço daquela comunidade esquecida, nos falam de hereges e de seus estranhos costumes, mas raramente nos oferecem dados de valor positivo sobre a fé e a vida daquela igreja que perdurou pelo menos até o século V.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-80254972603457867362007-06-12T07:43:00.000-07:002007-06-12T08:00:44.224-07:00História da Igreja – Parte 5(texto extraído e adaptado da obra de Justo L. Gonzales, Uma História Ilustrada do Cristianismo)<br /><br /><strong>O mundo greco-romano</strong><br />Entretanto, nessa disseminação, a nova fé teve de abrir o seu caminho através de situações políticas e culturais que, às vezes, lhe facilitaram a passagem, e em outras lhe serviram de obstáculo. <br />A fim de compreender a vida cristã nesses primeiros séculos, devemos nos deter, ainda que de maneira breve, nessas circunstâncias políticas e culturais.<br />O Império Romano havia dado à bacia do Mediterrâneo uma unidade política nunca antes vista. Ainda que, em cada região, se mantivessem alguns velhos costumes e leis, a política do Império foi fomentar a maior uniformidade possível, sem promover excessiva violência aos costumes de cada região.<br />Esta havia sido antes também a política de Alexandre. Em ambos os casos o êxito foi notável, pois pouco a pouco foi se criando uma base comum que perdura até nossos dias. <br />Essa base comum, tanto política como culturalmente, foi de enorme importância para o cristianismo dos primeiros séculos. A unidade política da bacia do Mediterrâneo permitiu aos primeiros cristãos viajar de um lugar a outro sem temor de se verem envolvidos em guerras ou assaltos. <br />De fato, ao ler a respeito das viagens de Paulo, vemos que o grande perigo da navegação naquela época era o mau tempo. Alguns séculos antes, os piratas que infestavam o Mediterrâneo eram muito mais terríveis do que qualquer tempestade. <br />Os caminhos romanos, que uniam até as mais distantes províncias, e alguns dos quais ainda existem, não foram alheios aos pés dos cristãos que iam de um lugar a outro, levando a mensagem da redenção em Jesus Cristo. <br />Uma vez que o comércio florescia, os povos iam de um lugar a outro, e assim, o cristianismo chegou muitas vezes a alguma nova região, não levado por missionários, ou pregadores itinerantes, mas sim, por mercadores, escravos e outras pessoas que por diversas razões se viam obrigadas a viajar. <br />Neste sentido, as condições políticas da época foram benéficas para a disseminação da nova fé. Mas também houve outros aspectos dessa situação que serviram de desafio e ameaça aos primeiros cristãos. <br />Reparem, já que o Império buscava alcançar a maior uniformidade possível entre seus súditos de diversas origens, parte da política imperial consistia em fomentar a uniformidade religiosa. Isto se fazia mediante o síncretísmo e o culto ao imperador.<br />O sincretismo, que consiste na mistura indiscriminada de religiões, foi característica da bacia do Mediterrâneo a partir do século III a.C. Dentro de certos limites, Roma o incentivou, pois o Império tinha interesse em que seus diversos súditos pensassem que, ainda que seus deuses tivessem diferentes nomes e atributos, no final das contas eram todos os mesmos deuses. <br />Ao Panteão Romano foram se acrescentando deuses provenientes das diversas regiões. A palavra Panteão quer dizer precisamente "templo de todos os deuses". <br />Pelos mesmos caminhos pelos quais transitavam os mercadores e missionários cristãos, transitavam também pessoas das mais variadas religiões, e todas essas religiões se entremesclavam e se confundiam nas praças e nos foros das cidades. O sincretismo era a moda religiosa da época.<br />Em tal ambiente, tanto os judeus como os cristãos pareciam ser pessoas intransigentes, que insistiam em seu Deus único e diferente de todos os demais deuses. <br />Por esta razão, muitos viam no judaísmo e no cristianismo um quisto que devia ser extirpado da sociedade romana. Mas foi o culto ao imperador o ponto nevrálgico que desencadeou a perseguição. Muitas vezes, essas perseguições tinham características políticas. O culto ao imperador era um dos meios que Roma utilizava para fomentar a unidade e a lealdade ao império. <br />Negar-se a render esse culto era visto como sinal de traição ou, pelo menos, de deslealdade. Logo, não são poucos os casos em que fica patente que, ao mesmo tempo que um mártir morria por sua fé, quem o condenava o fazia levado por sentimentos de lealdade política.<br />Por outro lado, o sincretismo da época também se manifestava no que os historiadores de hoje chamam "religiões de mistério", ou simplesmente "mistérios". <br />Estas religiões não centralizavam sua fé nos velhos deuses do Olimpo — Zeus, Poseidon, Afrodite, etc. — mas em outros deuses de caráter mais pessoal. <br />Nos séculos anteriores, antes que se espalhasse o espírito sincretista e cosmopolita, cada indivíduo era devoto aos deuses do país em que havia nascido. <br />Mas agora, em meio a confusão criada pelas conquistas de Alexandre e de Roma, cada pessoa tinha de decidir a que deuses ia prestar a sua devoção. Cada um desses deuses dos "mistérios" tinha seus próprios devotos, ou seja, todos aqueles que haviam sido iniciados.<br />Em geral, cada uma destas religiões baseava-se em um mito acerca das origens do mundo, ou da história do deus em questão. Do Egito provinha o mito de Isis e Osíris, segundo o qual o deus Seth havia matado e esquartejado Osíris, e depois havia espalhado seus membros por todo o Egito. <br />Isis, a esposa de Osíris, os havia recolhido e dado nova vida a Osíris. Mas os órgãos genitais de Osíris haviam caído no Nilo, e por essa razão é que o Nilo é a fonte de fertilidade para todo o Egito. <br />Também por essa razão, alguns dos devotos mais fervorosos desse culto se mutilavam a si mesmos, cortando os próprios testículos e oferecendo-os em sacrifício. <br />Entre os soldados era muito popular o culto a Mitra, um deus de origem persa, cujos mitos incluíam uma série de combates contra o sol e contra um touro de caráter mitológico. <br />Na Grécia, existiam desde tempos imemoriais, os mistérios de Eleusis, perto de Atenas. Os mistérios de Átis e Cibeles incluíam um ritual de iniciação chamado "taurobolia", no qual se matava um touro e se banhava o neófito com seu sangue. <br />Pois bem, dado o caráter sincretista de todos estes cultos, logo uns se misturaram com outros, até o ponto em que, hoje, torna-se difícil distinguir as características, ou as práticas, de um deles em particular.<br />Além disso, esses deuses não eram zelosos entre si, como o Deus dos judeus e dos cristãos e, portanto, houve quem se dedicasse a colecionar mistérios, fazendo-se iniciar nesses cultos, um após o outro. <br />Todas estas tendências sincretistas, em que se entrelaçavam os velhos deuses, com as religiões de mistério e com o culto ao imperador, apresentaram um forte desafio ao cristianismo nascente. <br />Já que os cristãos se negavam a participar de tudo isto, frequentemente eram acusados de incrédulos e ateus. Diante de tais acusações, os cristãos podiam recorrer a certos aspectos da cultura da época que pareciam prestar-lhes apoio. <br />Veremos isso mais aprofundadamente algumas aulas mais à frente. Mas já podemos indicar que existiram duas tradições filosóficas em que os cristãos encontraram um nutrido arsenal para a defesa de sua fé. Uma delas foi a tradição platónica, e a outra o estoicismo.<br />O mestre de Platão, Sócrates, havia sido condenado a morrer bebendo cicuta porque ele era considerado incrédulo e corruptor da juventude ateniense. <br />Platão havia escrito vários diálogos em sua defesa, e já no século primeiro de nossa época Sócrates era tido como um dos homens mais sábios e mais justos da antiguidade. <br />Ora, Sócrates, Platão, e toda a tradição de que ambos eram parte, haviam criticado os deuses pagãos, dizendo que eram criação humana, e que segundo os mitos clássicos eram mais perversos do que os seres humanos.<br />E acima de tudo isso, Platão falava de um ser supremo, imutável, perfeito, que era a suprema bondade e beleza. E ainda, tanto Sócrates como Platão criam na imortalidade da alma, e portanto na vida depois da morte. <br /> Platão afirmava que além deste mundo sensível e passageiro havia outro de realidades invisíveis e permanentes. Tudo isto foi de grande valor e atratividade para aqueles primeiros cristãos que se viam perseguidos e acusados de serem ignorantes e ingénuos. <br />Por estas razões, a filosofia platónica exerceu uma influência muito grande no pensamento cristão daquela época e que ainda hoje perdura.<br />Algo semelhante sucedeu com o estoicismo. Esta escola filosófica — algo superior ao platonismo — ensinava doutrinas de alto caráter moral. Segundo os estóicos, há uma lei natural impressa em todo o universo e na razão humana, e essa lei nos diz como devemos nos comportar. <br />Se alguns não vêem essa lei e não a seguem, isto se deve ao fato de que são néscios, pois quem é verdadeiramente sábio conhece essa lei e a obedece. Além disso, já que nossas paixões lutam contra nossa razão, e tratam de dominar nossas vidas, a meta do sábio é fazer com que sua razão domine toda paixão, até o ponto de não senti-la. <br />Esse estado de não sentir paixão alguma é a "apatia", e nisto consiste a perfeição moral segundo os estóicos. Também, nesse caso, podemos imaginar o atrativo desta doutrina para os cristãos, que se viam obrigados a enfrentar repetidamente os costumes corruptos de sua época e a criticá-los.<br />Já que os estóicos haviam feito o mesmo, em suas idéias e escritos, os cristãos encontravam apoio para sua defesa e propaganda. Igualmente ao platonismo, isso acarretava o perigo de que se chegasse a confundir a fé cristã com estas doutrinas filosóficas, e que assim se perdesse algo do caráter único do evangelho. <br />Não faltaram aqueles que, em um aspecto ou noutro, sucumbissem diante dessa tentação. Mas isso não há de ocultar o grande valor que estas doutrinas tiveram na primeira expansão do cristianismo.<br />Segundo o apóstolo Paulo, o cristianismo penetrou no mundo "quando veio a plenitude, do tempo". Talvez alguém entendesse isto no sentido de que Deus facilitara o caminho àqueles primeiros cristãos. <br />E não há dúvidas de que muito do que estava acontecendo no século primeiro facilitou o avanço da nova fé. Mas também é certo que esses mesmos acontecimentos colocavam diante da igreja desafios difíceis que exigiam enorme valor e audácia. <br />A "plenitude do tempo" não quer dizer que o mundo estivesse pronto a se tornar cristão, como uma fruta madura pronta para cair da árvore, mas quer dizer que, nos desígnios inescrutáveis de Deus, havia chegado o momento de enviar o seu Filho ao mundo para sofrer morte de cruz, e de espalhar os discípulos por esse mesmo mundo, a fim de que eles também dessem o testemunho de sua fé no Crucificado.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-11357303446213599792007-06-12T07:27:00.000-07:002007-06-12T07:42:13.442-07:00História da Igreja – Parte 4(texto extraído e adaptado da obra de Justo L. Gonzales, Uma História Ilustrada do Cristianismo)<br /><br /><strong>O judaísmo da dispersão</strong><br />Como já falamos na aula anterior, durante os séculos que precederam a primeira vinda de Jesus, houve um número cada vez maior de judeus que viviam fora da Palestina. Alguns desses judeus eram descendentes dos que haviam ido para exílio na Babilónia e, portanto, naquela cidade, como em toda a região da Mesopotâmia e da Pérsia, havia grandes contingentes de judeus. <br />No época do Império Romano, os judeus haviam se espalhado por diversas razões, e já no século primeiro as colónia judaicas em Roma e em Alexandria eram muitas. <br />Em quase todas as cidades do Mediterrâneo oriental havia pelo menos uma sinagoga. No Egito, chegou-se até a construir um templo por volta do século VII a.C. na cidade de Elefantina, e houve outro no Delta do Nilo no século II a.C. <br />Mas, em geral, estes judeus da "Dispersão" ou da "Diáspora" não construíram templos nos quais podiam oferecer sacrifícios, mas antes sinagogas nas quais estudavam as Escrituras.<br />O judaísmo da Diáspora é de grande importância para a história da igreja cristã, pois foi através dele, como veremos, que mais rapidamente se propagou a nova fé pelo Império Romano. Além disso, esse judaísmo da Diáspora proporcionou à igreja a tradução do Antigo Testamento para grego que foi um dos principais veículos de sua propaganda religiosa.<br />Este judaísmo se distinguia de seu congênere na Palestina principalmente por duas características > o uso do idioma grego, e seu contato inevitavelmente maior com a cultura helenista.<br />No século primeiro, eram muitos os judeus, na Palestina, que já não usavam o antigo idioma hebreu. Mas, enquanto que na Palestina e em toda a região do oriente desse país falava-se o aramaico, os judeus que se achavam dispersos por todo o resto do Império Romano falavam o grego. <br />Depois das conquistas de Alexandre, o grego veio a ser a língua comum da bacia oriental do Mediterrâneo. Judeus, egípcios, cipriotas, e até romanos, utilizavam o grego para se comunicar entre si. Em algumas regiões — especialmente no Egito — os judeus perderam, assim, o uso da língua hebraica, e foi necessário traduzir as Escrituras para o grego.<br />Essa versão do Antigo Testamento para o grego recebe o nome de "Septuaginta", que se abrevia frequentemente mediante o número romano LXX, conforme vimos no semestre passado. Assim, a importância da Septuaginta foi enorme para a igreja cristã primitiva. Esta é a Bíblia que a maioria dos autores do Novo Testamento cita, e exerceu uma influência muito grande sobre a formação do vocabulário cristão dos primeiros séculos. <br />Além disso, quando aqueles primeiros crentes se espalharam por todo o Império com a mensagem do evangelho, encontraram na Septuaginta um instrumento útil para sua propaganda. <br />De fato, o uso que os cristãos fizeram da Septuaginta foi tal e tão efetivo que os judeus se viram obriga¬dos a produzir novas versões - como a de Aquila - e a deixar os cristãos na posse da Septuaginta.<br />A outra marca distinta do Judaísmo da Dispersão foi o seu inevitável contato com a cultura helenista. Em certo sentido, pode-se dizer que a Septuaginta é também resultado desta situação. Em todo caso, fica claro que os judeus da Dispersão não podiam subtrair-se ao contato com os gentios, como podiam fazer, em certa medida, seus correligionários da Palestina. <br />Os judeus da Dispersão viam-se obrigados, em consequência, a defender sua fé a cada passo diante daquelas pessoas de cultura helenista para quem a fé de Israel era ridícula, antiquada ou ininteligível.<br />Diante desta situação, e especialmente na cidade de Alexandria, surgiu entre os judeus um movimento que tratava de mostrar a compatibilidade entre o melhor da cultura helenista e a religião hebraica. <br />No século III aC., Demétrio narrou a história dos reis de Judá, seguindo os padrões da historiografia pagã. Mas foi na pessoa de Filo de Alexandria, contemporâneo de Jesus, que este movimento alcançou seu ponto alto. Uma vez que os argumentos de Filo — ou outros muito parecidos — foram utilizados depois por alguns cristãos, na própria cidade de Alexandria, vale a pena resumi-los aqui. <br />O que Filo intenta fazer é mostrar a compatibilidade entre a filosofia platónica e as Escrituras hebraicas. Segundo ele, já que os filósofos eram pessoas cultas, e as Escrituras hebraicas são ante¬riores a eles, é de se supor que qualquer concordância entre ambos se deve a que os gregos copiaram dos judeus, e não vice-versa. <br />E, então, Filo procura mostrar essa concordância, inter¬pretando o Antigo Testamento como uma série de alegorias que apontam em direção às mesmas verdades eternas a que os filósofos se referem de maneira mais literal.<br />O Deus de Filo é absolutamente transcendente e imutável, no estilo de "Um deus inefável" dos platónicos. Portanto, para se relacionar com este mundo de realidades transitórias e imutá¬veis, esse Deus faz uso de um ser intermediário, a quem Filo dá o nome de Logos, isto é, Verbo ou Razão. <br />Este Logos, além de ser um intermediário entre Deus e a criação, é a razão que existe em todo o universo, e da qual a mente humana participa. Em outras palavras, é este Logos que faz com que o universo possa ser compreendido pela mente humana. <br />Alguns pensadores cristãos adotaram estas ideias propostas por Filo, com todas as suas vantagens e seus perigos.<br />Como vemos, portanto, em sua dispersão por todo o mundo romano, em sua tradução da Bíblia, e ainda em seus intentos de dialogar com a cultura helenista, o judaísmo havia preparado o caminho para o advento e a disseminação da fé cristã. Dai a expressão plenitude do tempo.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-46658238830634097272007-06-12T07:18:00.000-07:002007-06-12T07:27:16.441-07:00História da Igreja – Parte 3A política dos romanos era, em geral, tolerante em relação à religião e aos costumes dos povos conquistados. Pouco tempo depois da deposição de Aristóbulo, os romanos devolveram aos descendentes dos Macabeus certa medida de autoridade, dando-lhes os títulos de sumo-sacerdote e etnarca (Governador de província). <br />Herodes, nomeado rei da Judéia pelos romanos no ano 40 a.C., foi o último governante com certa ascendência macabéia, pois sua esposa era dessa linhagem. Mas, até a própria tolerância dos romanos não podia compreender a obstinação dos judeus, que insistiam em render culto somente a seu Deus e se rebelavam ante a menor ameaça contra sua fé. <br />Herodes fez todo o possível para introduzir o helenismo no país. Com esse propósito fez construir templos em honra a Roma e a Augusto em Samaria e Cesaréia. Mas, quando se atreveu a colocar uma águia de ouro na entrada do Templo, os judeus se sublevaram e Herodes teve de recorrer à violência. <br />Seus sucessores seguiram a mesma política helenizante, fazendo construir novas cidades de estilo helenista e trazendo gentios para viverem nelas.<br />Por esta razão, as rebeliões aconteciam quase ininterruptamente. Jesus era menino quando os judeus se rebelaram contra o etnarca Arquelau, que teve de recorrer às tropas romanas. Essas tropas, sob o comando do general Varo, destruíram a cidade de Séforis, capital da Galiléia e vizinha de Nazaré, e crucificaram dois mil judeus. <br />É a esta rebelião que se refere Gamaliel ao dizer que "levantou-se Judas, o galileu, nos dias do recenseamento, e levou muitos consigo" (Atos 5:37). O partido dos zelotes, que se opunha tenazmente ao regime romano, continuou existindo depois das atrocidades de Varo, e cumpriu um papel importante na grande rebelião que eclodiu no ano de 66 d.C. <br />Essa rebelião foi, talvez, a mais violenta de todas, e conduziu à destruição de Jeru¬salém no ano de 70 d.C., quando o general — e depois imperador — Tito conquistou a cidade e derrubou o Templo.<br />Em meio a tais lutas e tentações, não é de se estranhar que o judaísmo se tenha tornado cada vez mais legalista. Era necessário que o povo tivesse diretrizes claras acerca de qual deveria ser sua conduta em diversas circunstâncias. <br />Os preceitos detalhados dos fariseus não tinham o propósito de fomentar uma religião puramente externa - ainda que às vezes tenham tido esse resultado — mas, antes, procuravam aplicar a Lei às circunstâncias que o povo vivia no dia-a-dia.<br />Os fariseus eram o partido do povo que não gozava das vantagens materiais oriundas do regime romano e helenista. Para eles, o importante era assegurar-se de cumprir a Lei, mesmo nos tempos difíceis em que estavam vivendo. Além disso, os fariseus criam em algumas doutrinas que não tinham apoio nas mais antigas tradições dos judeus, tais como a ressurreição e a existência de anjos.<br />Os saduceus, por outro lado, eram o partido da aristocracia, cujos interesses os levavam a colaborar com o regime romano. Uma vez que o sumo-sacerdote pertencia geralmente a essa classe social, o culto do Templo ocupava para os saduceus a posição central que a Lei tinha para os fariseus. Além disso, aristocratas e conservadores como eram, os saduceus rejeitavam as doutrinas da ressurreição e a da existência dos anjos, que segundo eles eram meras inovações.<br />Portanto, devemos nos cuidar de não exagerar a oposição de Jesus e dos primeiros cristãos ao partido dos fariseus. De fato, quase todos eles estavam mais perto dos fariseus do que dos saduceus. <br />A razão pela qual Jesus os critica não é, então, por terem sido maus judeus, mas porque, em seu afã de cumprir a Lei ao pé da letra, os fariseus se esqueciam às vezes dos seres humanos a quem a Lei fora dada.<br />Além desses partidos, que ocupavam o centro da cena religiosa, haviam outras seitas e bandos no judaísmo do século primeiro. Já mencionamos os zelotes. Havia também os essênios, a quem muitos autores atribuem os famosos "Rolos do Mar Morto", que eram um grupo com ideias puristas, que se apartava de todo contato com o mundo dos gentios, a fim de manter sua pureza ritual. <br />Segundo o historiador Josefo, esses essênios sustentavam, além das doutrinas tradicionais do judaísmo, certas doutrinas secretas que lhes estavam vedadas revelar a quem não fosse membro de sua seita.<br />Por outra parte, toda esta diversidade de tendências, partidos e seitas não eclipsava os pontos fundamentais que todos os judeus sustentavam em comum > o monoteísmo ético e a esperança escatológica. O monoteísrno ético sustentava que há um só Deus e que este Deus requer, além do culto apropriado, a justiça entre os seres humanos. Os diversos partidos podiam estar em desacordo com respeito ao que essa justiça queria dizer em termos concretos. Mas quanto a necessidade de honrar ao Deus único com as suas vidas, todos concordavam.<br />A esperança escatológica era a outra nota comum da fé de Israel. Todos, desde os saduceus até aos zelotes, guarda¬vam a esperança messiânica e criam firmemente que o dia chegaria em que Deus interferiria na história para restaurar Israel e cumprir suas promessas de um Reino de paz e justiça.<br />Alguns criam que seu dever estava em acelerar a chegada desse dia recorrendo às armas. Outros diziam que tais coisas deviam ser deixadas, exclusivamente, nas mãos de Deus. Mas todos concordavam em sua visão dirigida em direção ao futuro quando se cumpririam as promessas de Deus.<br />De todos esses grupos, o mais apto para sobreviver depois da destruição do Templo era o grupo dos fariseus. Os fariseus tinham suas raízes na época do Exílio, quando os judeus não podiam chegar ao Templo para adorar, e portanto sua fé se centralizava na Lei. <br />Durante os últimos séculos antes do advento de Jesus, o número dos judeus que viviam em terras longínquas havia aumentado constantemente. Tais pessoas, que não podiam visitar o Templo senão em raras ocasiões, viam-se obrigadas a centralizar sua fé na Lei e não no Templo. <br />No ano de 70 d.C., a destruição de Jerusalém deu o golpe de misericórdia ao partido dos saduceus e, portanto, o judaísmo que o cristianismo conheceu através de quase toda a sua história — assim como o judaísmo que existe em nossos dias — vem da tradição farisáica.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-36084281104250018852007-06-12T07:13:00.000-07:002007-06-12T07:17:38.130-07:00História da Igreja – Parte 2A PLENITUDE DO TEMPO<br />(texto extraído e adaptado da obra de Justo L. Gonzales, Uma História Ilustrada do Cristianismo)<br />Os primeiros cristãos não criam que o tempo e o lugar do nascimento de Jesus fosse algo ao acaso. Pelo contrário, aqueles cristãos viam a mão de Deus, pre¬parando o advento de Jesus em todos os acontecimentos ante¬riores ao Natal, e em todas as circunstâncias históricas que o rodearam. <br />O mesmo pode ser dito com relação ao nascimento da igreja, que é o resultado da obra de Jesus. Deus havia preparado o caminho para que os discípulos, uma vez recebido o poder do Espírito Santo, pudessem ser testemunhas de Cristo "em Jerusalém, em toda Judéia e Samaria, e até aos confins da terra" (At 1:8).<br />Portanto, a igreja cristã nunca foi uma comunidade desprovida de todo contato com o mundo exterior. Os primeiros cristãos eram judeus do século primeiro, e foi como judeus do século 1 que escutaram e receberam o evangelho.<br />Depois, a nova fé foi se propagando, tanto entre os judeus que viviam fora da Palestina como entre os gentios que viviam no Império Romano e também fora dele. <br />Em consequência, a fim de compreender a história da igreja em seus primeiros séculos, devemos primeiro dar uma olhada neste mundo em que a igreja se desenvolveu.<br />1. O judaísmo na Palestina<br />Palestina, a região onde o cristianismo deu os seus primei¬ros passos, foi sempre uma terra sofrida. Em tempos antigos, isso se deveu principalmente a sua posição geográfica, que a colocava na encruzilhada das grandes rotas comerciais que uni¬am o Egito à Mesopotâmia, e a Arábia com a Ásia Menor. <br />E, através de toda a história do Velho Testamento, esta estreita fai¬xa de terra se viu cobiçada e invadida, algumas vezes pelo Egito, outras vezes pelos grandes impérios que surgiram na região da Mesopotâmia e da Pérsia (Iraque). <br />(ilustração) > O Iraque<br />1. O jardim do Éden era no Iraque. <br />2. Mesopotâmia, onde agora é o Iraque, foi o berço da civilização.<br />3. Noé construiu a Arca no Iraque. <br />4. A torre de Babel ficava no Iraque.<br />5. Abraão era de Ur, que ficava no sul do Iraque. <br />6. A esposa de Isaac, Rebeca, era de Nahor, que ficava no Iraque. <br />7. Jacó encontrou-se com Raquel no Iraque.<br />8. Jonas rezou em Nínive, que ficava no Iraque.<br />9. Assíria, que ficava no Iraque, conquistou as dez tribos de Israel. <br />10. Babilônia, que ficava no Iraque, destruiu Jerusalém. <br />11. Daniel esteve na cova dos leões. Onde? No Iraque!<br />12. Baltazar, rei de Babilônia, viu a "escrita na parede" no Iraque.<br />13. Nabucodonosor, rei da Babilônia, carregou os judeus prisioneiros através do Iraque. <br />14. Ezequiel fez suas orações no Iraque.<br />15. Os Reis Magos eram do Iraque.<br />16. Pedro também fez orações no Iraque.<br />17. O "império do homem", descrito em Apocalipse era a chamada Babilônia, uma cidade do Iraque. <br />E vocês, provavelmente, não sabem esta:<br />Israel é a terra mais mencionada na Bíblia. Mas vocês sabem qual é a segunda? <br />Isso mesmo! IRAQUE, que, na Bíblia, corresponde a nomes como Babilônia, terra de Shinar (ou Sinear), Mesopotâmia. <br />A palavra Mesopotâmia significa "entre dois rios", mais exatamente entre os Rios Tigre e Eufrates. O nome Iraque significa "País com Raízes Profundas". Certamente o Iraque é um país com raízes profundas e de enorme importância na Bíblia. Exceto Israel, nenhuma outra nação tem mais história e profecias associadas a ela do que o Iraque.<br />Agora, uma informação no mínimo curiosa: Sabendo que a América é representada por uma águia, como será que o Bin Laden interpretou o seguinte trecho do Corão: <br />" aquele descrito como o filho da Arábia será acuado por uma águia amedrontadora. As garras da águia serão sentidas por todas as Terras de Alá e Lot, quando alguns dos povos tremerão no desespero e no júbilo. Quando as garras da águia limparem as terras de Alá, haverá Paz. " Corão 9:11. <br />Prestou atenção no número do verso do Corão? > 9:11 (setembro,11). Não é interessante?<br /><br />Mas, vamos voltar ao nosso estudo ><br />No século IV a.C., com Alexandre e suas hostes macedônicas, um novo contendente entrou na arena. Ao derrotar os persas, Alexandre se fez dono da Palestina. Alexan¬dre morreu no ano 323 a.C., e seguiram então longos anos de instabilidade política. <br />A dinastia dos Ptolomeus, fundada por um dos generais de Alexandre, se apoderou do Egito, enquanto que os Selêucidas, de mesma origem, se fizeram donos da Síria. De novo a Palestina se tornou a maçã da discórdia nas lutas entre os Ptolomeus e os Selêucidas.<br />As conquistas de Alexandre tiveram uma base ideológica. O propósito de Alexandre não era simplesmente conquistar o mundo, mas unir toda a humanidade sob uma mesma civili¬zação de tonalidade marcadamente grega. O resultado disso foi o helenismo, que tendia a combinar elementos puramente gre¬gos com outros tomados das diversas civilizações conquistadas. <br />Ainda que o caráter preciso do helenismo tenha variado de re¬gião para região, em termos gerais foi a bacia oriental do Mediter¬râneo que lhe deu uma unidade que serviu primeiro à expansão do Império Romano e depois à pregação do evangelho.<br />Mas, para os judeus, o helenismo não era uma bênção. Uma vez que parte da ideologia helenista consistia em equiparar e con¬fundir os deuses de diversos povos, os judeus viam no helenismo uma séria ameaça à fé no Deus único de Israel. <br />Por isso, a his¬tória da Palestina, desde a conquista de Alexandre até a destrui¬ção de Jerusalém, no ano de 70 d.C., pode ser vista como um con¬flito constante entre as pressões do helenismo de um lado, e, por outro lado, a fidelidade dos judeus a Deus e a suas tradições.<br />O ponto culminante dessa luta foi a rebelião dos Maca¬beus. Primeiro, o sacerdote Matatias e, depois, seus três filhos Jônatan, Judas e Simeão, se rebelaram contra o helenismo dos Selêucidas, que pretendia impor deuses pagãos aos ju¬deus. <br />O movimento teve algum êxito. Mas João Hircano, o filho de Simeão Macabeu, neto de Matatias, já começou a se amoldar aos costumes dos povos circunvizinhos e a favorecer as tendências helenistas. <br />Quando alguns dos judeus mais restritos se opuseram a essa política, começou a perseguição. Por fim, no ano de 63 a.C. o romano Pompeu conquistou o país e depôs o último dos Macabeus, Aristóbulo II.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6626639324525353437.post-49798931419633867962007-06-11T12:17:00.000-07:002007-06-11T12:39:06.818-07:00História da Igreja – Parte 1Cristianismo e História<br />(texto extraído e adaptado da obra de Justo L. Gonzales, Uma História Ilustrada do Cristianismo)<br />Introdução<br />Em certo sentido, a história do cristianismo é uma autobiografia. Só que esta história, em vez de começar com o nosso nascimento, começa muitos séculos antes, e narra toda uma série de acontecimentos que, no final, seriam determinantes na nossa vida. <br />Assim, sem esses séculos passados de história, o nosso nascimento e a nossa vida como crentes iriam flutuar no vazio. Daí porque a importância de conhecermos essa história. A história do cristianismo é, portanto, a biografia do povo de Deus chamado igreja, onde a nossa fé foi formada e foi nutrida. Desta maneira, sem compreender a história do cristianismo, não podemos compreender a nós mesmos. <br />Portanto, nós não estamos aqui apenas com aquela curiosidade de conhecer os tempos passados que nunca voltarão, mas, isto SIM, estamos aqui com uma necessidade urgente de conhecer esses tempos passados que continuam ainda presentes em nós — limitando nossas opções, determinando nossas perspectivas, e assinalando o nosso caminho em direção ao futuro.<br />Neste sentido, reparem, desde as suas próprias origens, o cristianismo se inseriu na história humana. Na verdade, isso é o próprio Evangelho, ou seja, as boas novas de que, em Jesus Cristo, Deus se introduziu na nossa história, em favor da nossa redenção.<br />Os autores bíblicos não deixam lugar a dúvidas a respeito dis¬to. O Evangelho de Lucas, por exemplo, nos diz que o nascimento de Jesus teve lugar na época de César Augusto, e "sendo Quirino, governador da Síria" (Lc 2:2). Pouco antes, o mesmo evan¬gelista coloca sua narração dentro do marco da história da Pales¬tina, dizendo-nos que estes fatos sucederam "nos dias de Herodes, rei da Judéia" (Lc 1:5). <br />O Evangelho de Mateus começa com uma genealogia que enquadra Jesus dentro da história e das esperanças do povo de Israel, e quase imediata¬mente nos diz também que Jesus nasceu "nos dias do rei Herodes" (Mt 2:1). <br />Marcos nos dá menos detalhes, mas não dei¬xa de assinalar que seu livro trata do que "aconteceu naqueles dias" (Mc 1:9). O Evangelho de João assegura que todas estas narrativas não têm unicamente interesse transitório, e por isso começa afirmando que o Verbo que foi feito carne no decurso da história humana (Jo 1:14) é o mesmo que "estava no princípio com Deus" (Jo 1:2). <br />Mas, depois de tudo, o restante destes evangelhos se apre¬senta como uma narrativa da vida de Jesus. Por último, um inte¬resse semelhante podemos ver na Primeira Epístola de João, cujas primeiras linhas declaram que "o que era desde o princí¬pio" é também "o que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos apalparam" (l Jo 1:1).<br />Além disso, esta importância da história para compreender o sentido da nossa fé não se limita à vida de Jesus, mas engloba toda a mensagem bíblica. <br />No AT, boa parte do texto sagrado é de caráter histórico. Não só os livros que geralmente chamamos "históricos", mas também os livros da Lei – como por exemplo, Génesis e Êxodo — e os livros dos profetas nos narram uma história em que Deus se revelou ao seu povo. Ou seja, se não conhecermos esta his¬tória, é impossível conhecer a própria revelação de Deus.<br />Igualmente, no NT encontramos o mesmo inte¬resse pela história. Lucas, depois de completar seu evangelho, prosseguiu narrando a história da igreja cristã no livro de Atos. Lucas não fez isso por simples curiosidade pelas coisas antigas. Não! Ele fez isso, principalmente, por fortes razões teológicas. <br />De acordo com o NT, a presença de Deus entre nós não ter¬minou com a ascensão de Jesus. Ao contrário, o próprio Senhor Jesus prometeu aos seus discípulos que não os deixaria sós, mas que lhes enviaria outro Consolador (Jo 14:16-26). <br />E, no princípio do livro de Atos, imediatamente antes da ascensão, Jesus lhes disse que receberiam o poder do Espírito Santo, e que em vir¬tude disso seriam suas testemunhas "até aos confins da terra" (At 1:8). <br />A vinda do Espírito Santo, no dia de Pentecoste, marca, portanto, o começo da vida da igreja. Assim, o que Lucas está narrando, no livro que chamamos "Atos dos Apóstolos", não é apenas os atos dos apóstolos, mas principalmente os atos do Espírito Santo através dos apóstolos. <br />Lucas escreve então dois livros, o pri¬meiro sobre os atos de Jesus Cristo e o segundo sobre os atos do Espírito Santo. O segundo livro, entretanto, quase parece ter ficado incompleto. No final de Atos, Paulo está ainda pregando em Roma, e o livro não nos diz o que aconteceu com ele ou com o resto da igreja. E isso tinha de ser assim, porque a história que Lucas está narrando, necessariamente, não há de ter um fi¬nal até que o Senhor venha.<br />Naturalmente, isso não quer dizer que toda a história da igreja tenha o mesmo valor e a mesma autoridade que o livro de Atos. Ao contrário, a igreja sempre creu que o Novo Testamen¬to e a era apostólica têm uma autoridade única. <br />Entretanto, do ponto de vista da fé, a história da igreja, ou do cristianismo, é muito mais que a história de uma instituição, ou de um movimento qualquer. A história do cristianismo é a história dos atos do Es¬pírito Santo entre os homens e as mulheres que nos precederam na fé.<br />Às vezes, no desenrrolar desta história haverá momentos em que é difícil para nós ver a ação do Espírito Santo. Ao estudarmos essa história, encontraremos, sempre, pessoas que se utili¬zam da fé da igreja para enriquecimento pessoal, ou para engrandecer o seu poder político. <br />Ao estudarmos essa historia, encontraremos, sempre também, pessoas que se esqueceram do manda¬mento do amor e perseguiram os seus inimigos com uma fúria indigna do nome de Cristo. <br />Em alguns períodos dessa história, parecerá que toda a igreja abandonou por completo a fé bíblica, e teremos que nos perguntar até que ponto tal igreja pode verdadeiramente ser chamada de cristã. <br />Em tais momentos, talvez nos convenha recor¬dar dois pontos importantes:<br />O 1º destes pontos é que a história que estamos narrando é SIM a história dos feitos do Espírito Santo, mas é, ao mesmo tempo, a história desses atos entre pessoas pecadoras como nós. <br />Podemos ver isso já no Novo Testamento, onde Pedro, Paulo e os de¬mais apóstolos são apresentados, ao mesmo tempo, como pes¬soas de fé e pecadores miseráveis. E, se esse exemplo não nos basta, olhemos para os "santos" de Corinto a quem Paulo dirige sua primeira epístola.<br />O 2º ponto que devemos recordar é que foi precisa¬mente através desses pecadores e dessa igreja, que aparece às vezes como totalmente descarrilhada, que o evangelho chegou até nós. Ou seja, através dos séculos mais escuros da vida da igreja, nunca faltaram cristãos que amaram, estudaram, conservaram e copiaram as Escrituras e, desse modo, as fizeram chegar aos nossos dias.<br />Além disso, segundo o que iremos ver no curso des¬ta história, nosso próprio modo de interpretar as Escrituras NÃO deixa de manifestar o impacto dessas gerações anteriores. Nós também somos parte dessa história, parte desses atos do Espírito Santo.Pastor Pedrohttp://www.blogger.com/profile/14959296050649164906noreply@blogger.com6